Ao cobri-los de vantagens “compensatórias”, governo reconhece: “reforma” provoca graves perdas – de direitos e remuneração. É justo que os militares não percam. Mas por que só eles?
Paulo Kliass
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 27/03/2019
Demorou muito, mas Bolsonaro acabou cedendo às inúmeras pressões que vinha recebendo, inclusive da sua própria base aliada. Com isso, ele finalmente enviou um Projeto de Lei ao Congresso Nacional abordando o tema da previdência para as Forças Armadas. Ele recebeu a numeração de PL nº 1645/19 na Câmara dos Deputados. Na verdade, a proposta encaminhada pelo capitão é muito mais ampla do que simplesmente o tema previdenciário das três forças militares. Trata-se de um texto amplo, que modifica vários marcos legais já existentes sobre diferentes temas relacionados ao Exército, à Marinha e à Aeronáutica, além de promover uma reestruturação sobre o conjunto das carreiras militares.
Uma das referências legais atualmente existentes — e que está sendo objeto de mudança – é uma Medida Provisória enviada ainda no meio do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, em 2001. O que pouca gente sabe é que essa medida jamais foi votada pelo Congresso Nacional. Vai completar 18 anos de vigência e ainda nem sequer foi apreciada, pois naquele período as regras das medidas provisórias não previam que elas perderiam validade caso não fossem apreciadas em 120 dias. A chamada MP 2215-10/2001 mantém um conjunto extensivo de regras e detalhes que favorecem um conjunto de formas de remuneração e regras de aposentadoria/pensão dos integrantes das três Armas.
Outra lei que sofre mudanças vai atingir a idade de 60 anos. Trata-se da chamada Lei de Pensões Militares – Lei nº 3.765 de 1960. Ali estão presentes também as regras de concessão de benefícios para os militares que entram na inatividade e para os seus dependentes. Vale ressaltar que a Constituição Federal de 1988 terminou por não mexer em quase nada nesse tipo de assunto. No entanto, os dispositivos iniciais foram sendo alterados ao longo dos anos. Um dos mais simbólicos talvez tenha sido a eliminação da possibilidade de que as filhas dos militares tivessem direito à pensão desde que permanecessem solteiras. Em 2001 essa previsão extemporânea pouco ética foi retirada do texto.
Mas o ponto que vale ressaltar aqui é que esse Projeto de Lei, na direção contrária do discurso oficial e fiscalista que emana do Palácio do Planalto e do todo-poderoso Ministério da Economia, promove significativos aumentos nas despesas com remuneração dos militares na ativa e na inatividade. Apesar de incluir medidas como contribuição previdenciária que se tornam receitas, o fato concreto é que as melhorias salariais, os ganhos de progressão na carreira e nas regras de aposentadoria/pensão acabam por anular o tal do “sacrifício” exigido por Paulo Guedes na famigerada PEC 06/2019.
O PL reproduz para o interior dos integrantes das Forças Armadas o modelo de desigualdade social e econômica de nosso País. Dessa forma, os principais beneficiados são os postos do topo das carreiras, como: i) Almirante, Almirante de Esquadra, Vice-Almirante, Contra-Almirante, na Marinha; ii) Marechal, General de Exército, General de Divisão e General de Brigada, no Exército; e, iii) Marechal do Ar, Tenente-Brigadeiro, Major-Brigadeiro e Brigadeiro, na Aeronáutica.
O tempo de serviço/contribuição para esses postos, por exemplo, é de 35 anos contados desde o ingresso do interessado nas escolas de formação militar, que correspondem a um processo equivalente de formação universitária. Como não existe a situação de desemprego nesse tipo de opção de vida profissional, o futuro beneficiado tem assegurado que o tempo de serviço é o mesmo que o tempo de contribuição ao longo de toda a sua trajetória.
O soldo do militar que parte para a reserva é composto de uma série de adicionais e penduricalhos, tal como ocorreu ao longo de sua carreira. Assim, temos que somar todos os itens da seguinte composição para calcular o valor final do benefício previdenciário:
i) soldo ou quotas de soldo;
ii) adicional militar;
iii) adicional de habilitação;
iv) adicional de disponibilidade militar;
v) adicional de tempo de serviço;
vi) adicional de compensação orgânica; e
vii) adicional de permanência.
Como era de se esperar, os principais beneficiários são os integrantes do topo da carreira. É compreensível que o soldo de um general seja bem mais elevado do que um sargento ou um cabo. No entanto, as demais generosidades compõem uma forma pouco republicana de aprofundar essa desigualdade. Ao invés de deixar claro e de forma transparente esse reconhecimento de funções/posições diferenciadas na hierarquia meritocrática com soldos diferentes, o que se faz é incluir de forma transversa os tais adicionais.
Assim, por exemplo, um oficial do topo da carreira leva mais do que o dobro do soldo em sua remuneração na ativa e mantém a integralidade com esse ganho quando passa à reserva. O adicional de disponibilidade pode atingir 41% do soldo. O adicional de habilitação (formação) pode chegar a 30% do soldo e será aumentado até atingir 73% em quatro anos. Se imaginarmos que um oficial que cumpre o tempo previsto para se reformar, são adicionados ainda mais 35% sobre o soldo.
Por outro lado, as alíquotas de contribuição dos militares permanecem inferiores às deduções que incidem sobre os participantes do RGPS (trabalhadores do setor privado) e dos RPPs (servidores públicos civis). Além disso, as regras dos benefícios dos militares preveem que os oficiais de alta patente cheguem a receber o equivalente a oito vezes o valor da remuneração no momento em que partem para a inatividade. Ora, quem não gostaria?
Finalmente, o aspecto mais relevante das proposições é que elas mantêm os militares excluídos do sistema previdenciário que prevê a capitalização como regra geral de concessão dos futuros benefícios. Assim, eles permanecerão como a única categoria de servidores públicos que não dependerá de fundos de previdência complementar para assegurar valores de benefícios superiores ao teto do RGPS.
Não creio que caiba discutir as particularidades das Forças Armadas como carreira no interior da Administração Pública. A exemplo de outras categorias do interior do Estado e fora dele, os militares devem mesmo ter atendidas suas especificidades. Isso é normal e perfeitamente compreensível. No entanto, isso não pode ser feito às custas da destruição do RGPS e nem das maldades cometidas contra os setores mais pobres e desprotegidos de nossa população. Estimular o desmonte do regime de repartição previsto na Constituição e abrir a enorme avenida para o crescimento de modelos individuais de capitalização é uma loucura. Incluir no texto constitucional um dispositivo em que o Benefício de Prestação Continuada (BPC) será inferior a um salário mínimo mensal, com o valor expresso de R$ 400, é um crime.
Um dos argumentos utilizados para a não inclusão da questão militar na discussão sobre a Reforma Previdenciária é que não haveria propriamente um “regime previdenciário” dos militares e sim um “sistema de proteção social”. Questão semântica à parte, o fato é que existe uma série de outras categorias que também merecem um tratamento especial. Esse é o caso dos trabalhadores rurais e demais trabalhadores que exercem funções de alta periculosidade e insalubridade. Por que apenas os militares seriam beneficiados?
Os defensores das condições estabelecidas no PL mencionam o “risco de morte” inerente à função. Ocorre que, para um país de tradição pacifista como o nosso, esse risco de perder a vida é cada vez mais, infelizmente, generalizado para o conjunto da população. Integrante das Forças Armadas brasileiras raramente morre em operação. Nunca estamos em guerra. Na verdade, esse risco está muito mais associado àqueles indivíduos que habitam em grandes centros urbanos violentos ou ao uso de transporte rodoviário. Também estão nesse rol de maior risco de morte os integrantes de carreiras de servidores públicos que lidam permanentemente com esse fenômeno da violência, como os policiais civis e os policiais militares.
O governo do capitão marcou mais um gol contra com esse projeto. Talvez esteja ainda muito influenciado pelos generais em seu entorno. Afinal, há mais oficiais de alta patente no primeiro escalão de seu governo do que havia até mesmo na época da ditadura militar. Fica realmente muito difícil justificar esse tipo de tratamento privilegiado a uma elite das Forças Armadas, ao mesmo tempo em que pretende promove um verdadeiro esfacelamento dos demais regimes previdenciários existentes no País.
A primeira jornada de manifestações pelo Brasil afora contra a PEC 06/2019 já deu a linha do descontentamento da população para com a medida. Apesar de ignorados pelos grandes meios de comunicação, os atos de 22 de março marcaram o início de uma série de dias de luta que virão na sequência. Os próprios líderes e parlamentares da base aliada também se mostram desconfortáveis em levar a medida à frente.
Com essa proposta para os militares, o núcleo duro do governo nos oferece até mesmo uma saída. Que essas proposições sejam estendidas para o conjunto da população trabalhadora e para os demais servidores públicos. Os pontos são vários. Paridade entre ativos e inativos. Integralidade dos benefícios em relação aos últimos valores recebidos na ativa. Contribuições mais reduzidas do que os demais regimes. Não aplicação do modelo de capitalização. Enfim, o melhor dos mundos para a elite militar, ao passo que todos os demais setores sociais são chamados a dar sua cota de sacrifício.
Assim, a nossa palavra de ordem passa a ser uma só: “Somos todos generais!”.
Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.