Ao fazerem greve, professores ensinam a seus alunos o poder da mobilização

Leonardo Sakamoto

Fonte: Blog do Sakamoto
Data original da publicação: 30/03/2015

A frase sobre a “vagabundagem” nunca vem sozinha: passeata que atrapalha o trânsito? Cacete neles! Protesto em praça pública durante a semana? Cacete neles! Onde já se viu? Essas pessoas têm que saber seu lugar.

Pois bem, na última sexta (27/03), 60 mil desses “vagabundos” do ensino público estadual paulista se reuniram em uma manifestação no Centro de São Paulo, segundo o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial (Apeoesp). A Polícia Militar estimou em 10 mil – básico.

Reivindicavam um aumento de 75,33% – para equiparar à média salarial de outras categorias de funcionários públicos com ensino superior e redução de jornada, o que está previsto no Plano Nacional de Educação. Além de melhoria nas condições das escolas.

Professores e pais de alunos reclamam que falta até papel higiênico nos banheiros.

Mais do que discutir se o aumento no salário dos professores será suficiente para pagar uma esfiha ou um kibe extra no Habib’s, o que me interessa é a forma com a qual vemos suas reivindicações e as descolamos da melhoria da educação como um todo. Essa é uma batalha simbólica difícil de vencer.

Afinal muitos de nós levam para a rua cartazes de “Mais Educação” de forma vazia. Pois quando se deparam com as reivindicações reais dessa categoria essencial, que significam também a melhoria da educação, rangem os dentes, torcem o nariz e os insultam. Alguns gritam “vagabundos”. Outros pensam baixinho.

Sindicatos não são perfeitos, longe disso. Assim como ocorre em outras instituições, podem possuir atores que resolvam voltar-se para os próprios umbigos e tornar a busca pelo poder e sua manutenção de privilégio mais importante que os objetivos para os quais foram eleitos. Ou seja, hás sindicalistas pelegos ou picaretas, da mesma forma que empresários corruptos e sonegadores.

Contudo, graças à organização e pressão dos trabalhadores, importantes conquistas foram obtidas para civilizar minimamente as regras do jogo – não trabalhar até a exaustão, descansar de forma remunerada, ter salários (menos in)justos, garantir proteção contra a exploração infantil. Direitos estes que, mesmo incompletos, são chamados por alguns empregadores de “gargalos do crescimento”. Inclusive pelo próprio governo, ele um grande empregador.

É esquizofrênico reclamar que não há no Brasil quantidade suficiente de força de trabalho devidamente preparada para fazer frente às necessidades de inovação e produtividade e, ao mesmo tempo, chutar feito caixa de giz vazia as reivindicações de professores por melhores condições e remuneração.

Como vocês acham que o processo de formação ocorre? Por osmose? Cissipartição? Geração espontânea a partir de argumentos fedidos vomitados por aí?

Incrível como muitos colegas, ao tratarem sobre greve de professores, chamam sempre as mesmas fontes de informação que dizem, sempre, as mesmas coisas:

– É hora de apertar os cintos

– Os grevistas só pensam neles

– A economia não aguenta

– Bando de vagabundos

– Já para a senzala sem jantar

Não existe imparcialidade jornalística. Qualquer estudante de jornalismo aprende isso nas primeiras aulas. Quando você escolhe um entrevistado e não outro está fazendo uma opção, racional ou não, por isso a importância de ouvir a maior diversidade de fontes possível sobre determinado tema. Fazer uma análise ou uma crítica tendo uma posição não é o problema, desde que não se engane o leitor, fazendo-o acreditar que aquilo é a única intepretação possível da realidade. O problema do jornalismo não é a falta de imparcialidade e sim de transparência com relação ao ponto de vista.

Infelizmente, muitos veículos ou jornalistas que se dizem imparciais, optam sistematicamente por determinadas fontes, sabendo como será a análise de determinado fato. Parece até que procuram o especialista para que legitime um ponto de vista. Ou têm preguiça de ir além e fugir da agenda da redação, refrescando suas matérias com análises diferentes.

Apoio os professores. Apoio os metalúrgicos de fábricas de automóveis. Apoio os controladores de vôo. Apoio os cobradores e motoristas de ônibus. Apoio os bancários. Apoio os garis. Apoio os residentes médicos. Apoio o santo direito de se conscientizarem, reconhecerem-se nos problemas, dizer não e entrar em greve até que a sociedade pressione e os patrões escutem. Mesmo que a manifestação deles torne minha vida um absurdo.

O Brasil está conseguindo universalizar o seu ensino fundamental, mas isso não está vindo acompanhado de um aumento significativo na qualidade da educação. Mesmo que os dados para a evolução dos primeiros anos de estudo estejam além do que o governo esperava no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), grande parte dos jovens de escolas públicas têm entrado no ensino médio sabendo apenas ordenar e reconhecer letras, mas não redigir e interpretar textos. Enquanto isso, o magistério no Brasil continua sendo tratado como profissão de segunda categoria.

Uma educação de baixa qualidade, insuficiente às características de cada lugar, que passa longe das demandas profissionalizantes e com professores mal tratados pode mudar a vida de um povo?

Por fim, como sempre escrevo, estou farto daquele papinho cansativo de “self-made man” de que os professores podem fazer com que alunos vençam na vida apenas com seu esforço individual e apesar de toda a adversidade, tirando a responsabilidade do poder público e da sociedade.

Aí surgem as histórias do tipo “Joãozinho comia biscoitos de esterco com insetos e vendia ossos de zebu para sobreviver. Mas não ficou esperando o Estado, nem seus professores lhe ajudarem e, por conta, própria, lutou, lutou, lutou (às vezes, contando com a ajuda de um mecenas da iniciativa privada), andando 73,5 quilômetros todos os dias para pegar o ônibus da escola e usando folhas de bananeira como caderno. Hoje é presidente de uma multinacional”.

Passando uma mensagem “se não consegue ser como Joãozinho e vencer por conta própria sem depender de uma escola de qualidade e de um bom professor, você é um verme nojento que merece nosso desprezo”. Daí para tornar as instituições públicas de ensino e a figura do próprio professor cada vez mais acessórias é um passo.

Educação é a saída, mas qual educação? Aquela defendida pelo pessoal do “Amigos do Joãozinho”? Educar por educar, passar dados e técnicas, sem conscientizar o futuro trabalhador e cidadão do papel que ele pode vir a desempenhar na sociedade, é o mesmo que mostrar a uma engrenagem o seu lugar na máquina e ponto final.

Uma das principais funções da escola deveria ser produzir pessoas pensantes e contestadoras que podem colocar em risco a própria estrutura política e econômica montada para que tudo funcione do jeito em que está.

Educar pode significar libertar ou enquadrar. Que tipo de educação estamos oferecendo? Que tipo de educação precisamos ter? Para essa tarefa, professores bem formados e remunerados, com qualidade de vida, são fundamentais.

Em algumas sociedades, pessoas assim, que protestam, discutem, debatem, discordam, mudam são úteis para fazer um país crescer. Por aqui, são vistas com desconfiança e chamadas de mal-educadas e vagabundas. Ironia? Não, Brasil.

Um bom exercício seria tentar entender e relatar as greves de professores como algo que faz parte das necessárias disputas sociais e econômicas e não tema para página policial.

Ao organizarem uma greve e reivindicarem por uma vida melhor, os professores estão dando talvez uma das mais importantes aulas para seus alunos.

Porque nem tudo o que se ensina está em sala de aula.

Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.

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