Anatomia e imagens do grande protesto global

Se não é possível ocultar um protesto, tente esvaziá-lo de sentido. A Greve Global pelo Clima estava convocada há dois meses, mas a velha mídia brasileira fez o possível para não vê-la – muito menos, narrá-la.

Agora que isso tornou-se impossível, pois milhões foram às ruas no primeiro dia da semana de ações, as fotos se espalharão pelos portais, jornais e noticiários de TV. Os textos tomarão, no entanto, o cuidado de omitir três pontos centrais. Primeiro: cresce, junto com as marchas, a consciência de que o planeta não é ameaçado “pelo ser humano” – mas por um sistema que obriga multidões a devastarem a natureza (ao privá-las de outro modo de subsistência) e que promove, em busca do lucro, o consumismo, o desperdício e a obsolescência programada. Segundo: esta consciência deixou de ser um fenômeno restrito às sociedades ricas ou às classes com mais acesso à informação. À medida em que as consequências do aquecimento global espalham-se, surgirá talvez um fenômeno oposto: as maiorias pobres, principais vítimas, podem converter-se na grande força a tomar as ruas e exigir mudança. Terceiro: a omissão dos políticos tem um preço. Embora tenha se difundido pelo mundo, os protestos foram e tendem a ser maiores e mais ácidos nos países cujos governantes desdenham da crise.

Oceania

A jornada desta sexta-feira começou na Oceania, quando o resto do planeta ainda dormia. Na Nova Zelândia, onde a primeira ministra Jacinta Ardern defende a imigração e a luta contra o aquecimento global, as manifestações ocorrerão no próximo dia 27. Mas a Austrália, onde governa Scott Morrison, um primeiro-ministro alinhado à direita e aos planos geopolíticos de Trump, viveu talvez os maiores protestos de rua de sua história. Multidões formaram-se nas principais cidades – Sidney, Camberra, Adelaide, Brisbane – e uma centena de centros urbanos menores. Reuniram 300 mil pessoas, num país de população nove vezes menor que a brasileira. Muitas portavam cartazes contra Morrinson. Outras lembravam: “negação não é política”, referindo-se ao fato de que o enorme litoral australiano e a concentração dos habitantes na costa torna o país especialmente vulnerável à elevação dos mares.

Situadas a Nordeste da Austrália, as Ilhas Salomão também foram palco manifestações. Lá, uma população de 560 mil pessoas está ameaçada de desaparecer rapidamente. A altitude média é de centímetros acima do mar. Muitas casas são montadas sobre palafitas fincadas diretamente no solo oceânico. Ciclones, antes inexistentes, estão se tornando cada vez mais comuns. Houve protestos em que se lia: “Não estamos afundando. Estamos lutando”.

Sudeste asiático

Filipinas e Indonésia, arquipélagos no Pacífico Sul, tiveram manifestações em condições difíceis. No primeiro país, apesar da feroz ditadura de Rodrigo Duterte, ocorreram 13 protestos. Na Indonesia, eles também ocorreram e lembraram uma tragédia real (e quase desconhecida em todo o mundo). A capital, Jakarta, está afundando – devido tanto à elevação dos mares quanto, em especial, ao esgotamento do lençol freático que, vazio, cede rapidamente ao peso da cidade. Em alguns bairros, o afundamento do solo chega a 20cm ao ano. Estima-se que, em 2030, 90% do território será inabitável. Há semanas, constrangido, o presidente Joko Widod anunciou a tranferência da capital para a ilha de Bornéu. Como Jakarta possui mais de 10 milhões de habitantes, teme-se que o colapso apenas seja transferido. Ainda houve manifestações na Tailândia, onde estudantes muito jovens cercaram a casa do ministro do meio-ambiente e simularam estar mortos.

Ásia das Monções

Na Índia, os protestos ocorreram em Dehli, Mumbai, Hyderabad, Guwahati e dezenas de outras cidades. Uma multidão de estudantes bloqueou ruas na capital, onde se prevê o esgotamento das águas subterrâneas em 2020. As monções, que marcam o clima do país e trazem as chuvas, agora falham.

Mas também Paquistão (34 cidades), Bangladesh e Afeganistão mobilizaram-se. Neste último país, vítima há 18 anos da mais longa guerra já realizada pelos Estados Unidos, soldados armados protegeram os jovens manifestantes.

África

Das dezenas de países africanos onde houve manifestações, destacam-se África do SulNigériaQuênia, Uganda Senegal. Aqui, a injustiça climática é extrema. O continente todo produz apenas 7% das emissões globais de CO² – embora reúna 14% da população do planeta. Porém, será, segundo o IPCC-ONU, o mais atingido pela elevação das temperaturas. Haverá secas e inundações extremas. A agricultura tradicional, mais vulnerável e sem recursos, será dramaticamente atingida. O deslocamento de populações, fugindo das intempéries, tenderá a provocar tragédias sociais de grandes proporções, no continente e fora dele, se as sociedades de todo o mundo não multiplicarem sua pressão.

Leste europeu

O Leste Europeu foi às ruas. PolôniaRomêniaAlbânia e Ucrânia, onde o socialismo real também produziu desastres ambientais – por não ter se livrado das visões de mundo que enxergam a natureza como “recurso”, a ser domado e explorado pela humanidade. Em Cracóvia e Kiev, cidades cujos países são governados pela extrema direita, dezenas de milhares manifestaram-se.

Europa ocidental

Já na Europa Ocidental, destacaram-se FrançaReino Unido e, em especial, Alemanha – mas também houve protestos muito importantes na HolandaBélgica e Grécia. Na Espanha, onde manifestações igualmente gigantescas ergueram-se contra o feminicídio, Itália e Portugal, as manifestações ocorrerão no dia 27.

Dezenas de cidades alemãs encheram suas ruas contra o sistema que provoca o aquecimento global. Calcula-se que 1,4 milhões de pessoas manifestaram-se, em mais de cem cidades. A chanceler Angela Merkel, pressionada, anunciou um pacote de 54 bilhões de euros para medidas “ambientais”. A coalizão “Fridays for Future” respondeu de pronto, considerando as medidas pouco ambiciosas e afirmando: “Querida chanceler, isso não é uma ruptura, é um escândalo”.

Na Inglaterra, também governada por um primeiro-ministro de direita próximo a Trump (Boris Johnson) dezenas de cidades também protestaram. Em Londres, o líder do Partido Trabalhista, Jeremy Corbyn falou a cerca de 100 mil pessoas. Acenou com a hipótese de uma “revolução industrial ambientalista”, orientada para novo tipo de produção e de consumo. Em Paris, 10 mil pessoas, a grande maioria muito jovens, foram às ruas.

Brasil

O protesto em São Paulo estava se adensando, quando este texto foi fechado. Dez mil pessoas concentraram-se a partir das 17h na Avenida Paulista, diante do MASP. Destacou-se a presença de indígenas, de gente muito jovem e de um bloco de catadores. Havia centenas de cartazes de mão estampando o desejo político dos manifestantes. A maior parte condenava Bolsonaro e o capitalismo. Em mais 32 cidades brasileiras estavam previstas ações, de passeatas a pequenos atos. Entre elas, destacaram-se RioFortaleza e São Carlos-SP.

América latina

Na América Latina, também México, Bolívia, Colômbia, Chile El Salvador também tiveram protestos importante. Na Cidade do México, milhares de garotas e garotos marcharam até o Zócalo, centro da megametrópole, pedindo que o governo de Lopez Obrador decrete emergência climática.

Estados Unidos

Nada poderia fechar mais simbolicamente o início da semana de greve pelo clima que a vasta série de manifestações nos Estados Unidos. Em dezenas de cidades, multidões desafiaram Trump, expoente e principal articulador da onda de extrema direita que ameaça varrer o planeta. Multidões mostraram que há resistência; que ela é capaz de se tornar majoritária em breve e que se politiza rapidamente. O Green New Deal, proposta radical que articula defesa do ambiente com igualdade e vasta renovação da infraestrutura, foi abraçado pelos movimentos que articularam as manifestações.

A jornada foi encerrada por uma fala da garota sueca Greta Thunberg em Nova York. Disse ela, a uma multidão de mais de 150 mil pessoas: “Se você pertence àquele pequeno grupo de pessoas que se sente ameaçado por nós, temos algumas notícias muito más para você, porque é só o começo. A mudança está começando, queiram vocês ou não”.

Fonte: Outras Palavras
Texto: Antonio Martins
Data original da publicação: 20/09/2019

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