Laurie Jeanty inclina o dorso para frente e gesticula com convicção ao falar da diferença de tratamento dada por empregadores aos funcionários brasileiros e haitianos. “Não são todos, mas alguns manipulam os haitianos”. Ela não se conforma com as mentiras e golpes aplicados a imigrantes que abandonaram tudo para reconstruir a vida em um novo país. Laurie se refere aos contratos informais em que se promete um valor, mas se paga outro. Dos empregadores que mentem ao reter a carteira de trabalho e devolvem, meses depois, sem assinar ou pagar os benefícios. E dos casos de trabalho escravo envolvendo haitianos que já foram flagrados pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
“Precisamos de um lugar para continuar a vida, não parar”. Laurie resolveu correr atrás dos direitos dos conterrâneos ao ajudar a criar a União Social dos Imigrantes Haitianos (Usih), associação nacional da qual é tesoureira.
O coordenador é Fedo Bacourt, professor de história e de línguas que só conseguiu emprego na construção civil. Fedo se recente que essa seja a “única porta de entrada para os imigrantes no Brasil”. Ao andar pelos canteiros de obra onde trabalha, não se conforma ao encontrar pedreiros e ajudantes de obra que eram médicos, professores e advogados no Haiti.
Depois de uma reunião com mais de 150 haitianos, fundaram a Usih em setembro de 2014. Mas, por serem imigrantes, enfrentam uma série de dificuldades para formalizar o grupo. Com a ponte feita pela central sindical CSP-Conlutas, representantes da Usih fizeram uma reunião com deputados e senadores e participaram de uma audiência pública no Senado, onde pediram agilidade na emissão dos documentos. Os haitianos sem documento ficam mais vulneráveis às situações mais graves de exploração, como o trabalho escravo.
Uma das principais metas do grupo, hoje, é a conquista por direitos iguais aos dos brasileiros no ambiente de trabalho.
Leia, abaixo, a entrevista concedida por Fedo e Laurie à Repórter Brasil.
Como é a discriminação dos haitianos no ambiente de trabalho?
Laurie Jeanty – Alguns brasileiros usam os haitianos, eles não têm direitos iguais aos dos outros empregados. Nem todo mundo é assim, mas alguns [empregadores] manipulam bem. Alguns tratam os haitianos como escravos. Eles não conseguem fazer nada sobre isso, como vão conseguir ajuda, se não sabem falar bem a língua portuguesa? Não tem ninguém para interagir, não tem ninguém para falar por eles.
Fedo Bacourt – Tem alguns direitos do trabalho que os haitianos não recebem por falta de conhecer a lei do país. Nós temos que acessar os mesmos direitos.
Quais são os direitos que os brasileiros têm, mas os haitianos não acessam?
Fedo – São os direitos do trabalho. Tem haitiano fazendo o mesmo trabalho que um brasileiro, mas o brasileiro recebe até três vezes mais. E tem a carteira de trabalho: a lei no Brasil diz que, depois de 48 horas, tem que devolver a carteira assinada. Mas tem haitiano que passa de cinco a seis meses trabalhando e, quando vai pegar a carteira, ela foi assinada naquele mesmo dia. Esse tempo todo, a pessoa perdeu INSS e outros direitos.
Laurie – Alguns mentem mesmo, falam que vão assinar e não assinam. E tem haitianos que fazem hora extra, mas não recebem. Muitos não recebem assistência médica. Eles aproveitam por que os haitianos não sabem reivindicar.
Por isso a Usih foi criada?
Fedo – O objetivo da associação é melhorar as condições de vida dos haitianos em geral: os documentos, o trabalho, o direito à saúde, à educação. Os brasileiros falam em receber os imigrantes de braços abertos, então precisa de uma política migratória que permita a troca de conhecimento. Têm muitos haitianos e outros imigrantes aqui que são advogados, professores, médicos e que estão trabalhando na construção civil. Tem que ter uma política para que o Brasil se beneficie dos imigrantes, e os imigrantes também.
Laurie – Queremos fazer a integração, mas o racismo aqui é uma coisa que acontece todos os dias, todos os momentos, principalmente com os haitianos que sofrem preconceito no trabalho. Alguns brasileiros ajudam, mas os haitianos precisam de alguém da sua nação que fale a sua língua e que sabe o que eles estão passando, as dificuldades. E nós somos imigrantes temos experiência disso, o que permite que você saiba se colocar no lugar do outro para entender o que estão passando.
Quais os setores em que os haitianos encontram trabalho?
Fedo – Na construção civil, como ajudante ou pedreiro, e na limpeza. O problema é que muitos dos haitianos que estão no Brasil têm uma boa escolaridade, estudaram bastante. Essa adaptação é difícil, de como os empregadores tratam os haitianos. Nós recebemos [salário] diferente das outras pessoas aqui no Brasil.
A maioria dos haitianos estão trabalhando de bico, sem carteira por que falta documento, RG. Tem alguns que só tem um protocolo[documento provisório enquanto o imigrante aguarda a emissão do CPF e carteira de trabalho]. Outros têm CPF e carteira de trabalho, mas não têm o RG. Isso aí para nós é muito complicado. A falta de documentos gera desemprego entre os imigrantes haitianos.
Como são as condições de trabalho na construção civil?
Fedo – É a única porta de entrada. Na construção em São Paulo eu só vejo imigrantes, imigrantes internacionais ou nacionais. São baianos, pernambucanos, maranhenses. Os companheiros que eu tenho são todos de fora de São Paulo.
Os haitianos precisam fazer hora extra porque ajudam as famílias lá no Haiti, aí algumas pessoas aproveitam disso. Não seguem a lei e fazem trabalhar até meia-noite. E ainda fazem pressão, dizendo que mandam embora se eles [haitianos] não ficarem [até tarde].
E tem o EPI [Equipamento de Proteção Individual] que é obrigatório para a proteção física da pessoa, mas tem empresa que não dá. A maioria dos haitianos que está aqui trabalha de bico. Por falta de conhecer os direitos, eles não recebem o EPI.
Já acompanhou acidentes com haitianos na construção civil?
Fedo – As vezes quando um haitiano é machucado, ele liga para a gente e nós acompanhamos. Primeiro buscamos a resolução com a empresa. Se a empresa não resolve, colocamos na justiça. Porque nossa meta é proteger o trabalho e o haitiano.
Nossa meta primeiro é tentar fazer paz, falar com a empresa. Porque nós estamos aqui para trabalhar, trabalhar sem ter problemas com as empresas. Mas as empresas também têm que respeitar o trabalhador.
Quais foram as dificuldades para criar a associação?
Laurie – Por ser uma associação de imigrantes, demora mais, não é igual o processo dos brasileiros. É mais difícil criar o estatuto, o CNPJ. Sem o CNPJ você não consegue nada. E aí não temos o resultado que queremos com a associação.
Essas dificuldades estão relacionadas com o fato de vocês serem imigrantes?
Laurie – Demora mais por que você não é brasileiro. No Brasil têm possibilidades, mas têm também obstáculos e barreiras. Os imigrantes não têm direito suficiente pra fazer tudo o que precisam.
Fedo – Tem coisa que é só burocracia, outras é mais difícil mesmo. Formar o comitê da associação, por que todos são imigrantes, demora mais por que o cartório e a justiça fizeram pesquisa, junto com a Polícia Federal, para ver se alguns de nós têm visto de turismo. Quem tem o RNE [Registro Nacional de Estrangeiros] como refugiados pode criar uma associação, quem tem visto de turismo não.
O que pensa sobre o entrave para os imigrantes que querem se sindicalizar?
Fedo – Esse entrave existe por que o Brasil não tem uma política imigratória que libere para o imigrante se associar, para se organizar, para se construir mesmo. Isso só cria barreiras. Mas eu prefiro falar de organizar associação do que de sindicato. O sindicato tem uma linha mais política, e, na política, nós imigrantes estamos limitados. Se no Brasil tivesse uma política imigratória, a gente podia participar mais. Mas como associação a gente pode se organizar.
Como avalia o Estatuto do Imigrante?
Fedo – Dizem que existe, mas é muito antigo, do tempo da ditadura. Nós haitianos temo cincos anos aqui no Brasil. E tem muitos outros chegando, africanos, sírios. Tem que ter uma política para isso, pois o Brasil, hoje, é um país de imigrantes.
Como vocês financiam as atividades da Associação?
Fedo – É difícil porque ainda estamos construindo, falta o registro legal. As vezes eu uso meu dinheiro, a Laurie a mesma coisa, e outros do Comitê. Quando tem uma saída que não dá para chamar a CSP-Conlutas, a gente usa o próprio recurso pessoal.
Como vocês chegaram à audiência pública no Senado?
Fedo – Primeiro a associação foi convidada pela CSP-Conlutas, a gente explicou nossa situação para o dirigente deles, o Zé Maria [José Maria de Almeida]. Depois o senador Paulo Paim convidou a gente para ir lá na Câmara dos Deputados. Fez uma primeira fala, a gente fez uma carta e ele respondeu que isso não ia parar lá. Depois ele chamou de novo para o Senado Federal [audiência pública em agosto de 2015]. A documentação foi um dos pontos que nós defendemos, e hoje podemos dizer que passos foram dados à frente na questão da documentação.
Fonte: Repórter Brasil
Entrevistadores: Ana Aranha e Luciano Onça
Data original da publicação: 31/01/2016