Alfaiates e a política

Clemente Ganz Lúcio

A democracia é uma conquista em permanente construção e renovação. Dar a cada um o direito de, pelo voto, escolher o projeto econômico, político, cultural e social é fruto de muitas lutas e conquista que a esquerda fez ao longo dos últimos séculos. O resultado é o Estado, a política econômica e as diversas políticas públicas, a regulação da vida coletiva e a liberdade na dimensão privada da vida. Nesse processo os partidos são alfaiates políticos que cortam e costuram, junto ao tecido social, possibilidades de escolhas que caberá à sociedade fazer.

Os comunistas italianos desenharam sua costura ao cerzirem o Partido Comunista Italiano (PCI), um dos mais importantes da esquerda do ocidente. Lucio Magri (1932-2011), um dos mais brilhantes e apaixonados protagonistas da história do comunismo italiano, segundo Guido Liguori, faz uma bela reflexão da trajetória das lutas do movimento ao longo do século XX. No dizer de Lúcio, “sou, assim, um arquivo vivo, guardado no sótão”.

Nesse século a experimentação colocou em debate as possibilidades de transformação pela via democrática ou insurrecional. A reflexão militante que Magri traz a público recupera os dilemas vividos a partir da URSS, da China e na Europa, sistematizando e propondo inúmeras reflexões e abordando muitos embates históricos.

Entretanto, Magri coloca uma reflexão de enorme atualidade em relação aos desafios presentes. Destaco um exemplo: “Os jovens em especial não se sentiam atraídos, nem viam utilidade em um engajamento feito majoritariamente de reuniões, campanhas eleitorais e proselitismo… Falávamos de centralidade da classe operária, mas sem enxergar que cada vez menos operários se tornavam dirigentes do sindicato e do partido” (p. 187). Questões que estão nos desafiando hoje são tratadas nesta descida do sótão!

A reflexão segue caminhos para ir ao encontro de problemas, tais como: de que maneira relacionar a vida sindical e partidária, a luta reivindicatória, a disputa pelo poder, a capacidade de regular o mercado, bem como as contradições de administrar as crises do capitalismo, de encontrar meios de financiar o “Estado social”, a disputa sobre a política econômica como base para o desenvolvimento, entre muitos outros problemas a serem enfrentados. Está na nossa agenda cotidiana responder a esta declaração: “O poder não é feito apenas de votos, mas da solidez de quem o exerce, da mobilização das massas que suscita e que o sustenta, das relações de forças internacionais em que se insere” (p. 314).

“O caminho para a reconstrução de uma verdadeira esquerda é longo, um problema para muitas gerações”. No último capítulo Magri propõe uma série de questões que precisam ser enfrentadas no caminho de reconstrução de uma utopia prospectada a partir do mundo do trabalho, da igualdade, da justiça, da transformação, da liberdade e da democracia. A leitura de O Alfaiate de Ulm: uma possível história do Partido Comunista Italiano, de Lucio Magri (Boitempo Editorial), além do conhecimento histórico e político que proporciona, é um belo convite à reflexão e a um pensamento crítico e criativo.

Clemente Ganz Lúcio é sociólogo, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *