À medida que caem as antigas formas de produção física, o futuro parece brilhante para aqueles que se reinventam – e ameaçador para os que não podem se reinventar.
Como dizem as descrições do capitalismo, é certamente um dos melhores já escritos: poético, urgente e tem tanto que ver com metafísica quanto com economia. De acordo com o Manifesto Comunista: “O permanente revolucionamento da produção, o ininterrupto abalo de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento eternos distinguem a época da burguesia de todas as outras. Todas as relações fixas e enferrujadas, com o seu cortejo de vetustas representações e intuições, são dissolvidas, todas as recém-formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se.” E depois, pra matar: “Tudo o que era sólido se volatiliza.”
Sejam quais forem suas falhas como revolucionários e futurologistas, a visão de Marx e Engels de mudança incessante das economias e sociedades parece tão pertinente agora como 169 anos atrás, com uma ressalva particularmente surreal.
As concepções mais tradicionais do capitalismo foram fundadas em alguma noção de coisas materiais: propriedade física, instalações, máquinas, mercadorias. Mas as empresas na vanguarda da economia do século XXI têm uma forma muito diferente de funcionar, como evidencia um dos livros mais comentados do ano. Seu título, em algum lugar da eternidade socialista, deve ter sido saudado com alegria pelos fantasmas de Karl e Fred. Escrito pelo economista Jonathan Haskel e pelo pesquisador de inovação Stian Westlake, Capitalism Without Capital (Capitalismo sem capital, sem edição no Brasil) pode soar como um enigma, mas na verdade faz todo o sentido.
O Airbnb revolucionou o mercado de hospedagem, mas não possui nenhuma propriedade. O gigante chinês on-line Alibaba é reconhecido como o maior varejista do mundo, mas não tem estoque nenhum. Nem o sinônimo moderno para fazer compras, eBay. Enquanto isso, o Uber chegou para causar uma reviravolta no transporte pessoal, mas não tem nenhum carro. Essas são as estranhas formas do que está se popularizando como capitalismo de plataforma: um modelo que levou uma mudança que havia começado nos anos 70 à sua conclusão lógica. O capitalismo de ponta está cada vez mais leve. O que faz a diferença entre vencedores e perdedores não são as coisas materiais, mas estes commodities imprevisíveis, como ideias, conhecimento, pesquisa, software, marcas, redes e relacionamentos.
A história de Haskel e Westlake gira em torno de uma mudança de investimento de bens “tangíveis” para estes itens “intangíveis”. Nos Estados Unidos, a proporção do PIB dedicada a itens “intangíveis” deve ter ultrapassado os “tangíveis” em meados da década de 90; no Reino Unido, este marco foi alcançado no final daquela década. Em outros países – Itália e Espanha, por exemplo –, ainda prevalecem os investimentos em plantas e conjuntos antiquados. Mas em todas as estatísticas há um pressuposto claro: que à medida que nos aproximamos do futuro, os bens intangíveis vão reinar.
Isto corta muitas das leis e expectativas habituais da economia. Ativos físicos, mesmo no entendimento mais rudimentar, podem ser comprados e vendidos, os intangíveis são entidades muito mais difíceis. Como dizem os autores: “A Toyota investe milhões em seus sistemas de produção enxuta, mas seria impossível separar esses investimentos de suas fábricas e vendê-los de alguma forma.”
Os ativos intangíveis estão abertos a “transbordamentos”: a tendência de ideias e inovações de se espalharem, muitas vezes para além das intenções de quem inventou. Como parte do mesmo processo, tendem a estar em sinergia entre eles, muitas vezes de forma inesperada: “O protocolo de MP3, junto com o disco rígido miniaturizado e as habilidades de design da Apple, criou o iPod, uma inovação muito valiosa.”
E, livre de qualquer dependência sobre um estoque fixo de maquinaria, as criações desses ativos intangíveis podem se espalhar depressa e rapidamente dominar seu campo – é por isso que o Uber tornou-se incontornável em menos de uma década e que 13 anos após o lançamento do Facebook, a rede social de Mark Zuckerberg é central para a vida de um quarto da humanidade.
O mundo, portanto, muda rapidamente. A produção física de que as empresas necessitam ainda é cada vez mais automatizada e terceirizada para países distantes, que pagam baixos salários.
Mesmo os empregos que consideramos “serviços” parecem assustadoramente vulneráveis à robótica e à inteligência artificial. Enquanto isso, bens intangíveis dominam não só o mundo dos negócios, mas as nossas vidas cotidianas. Desde a música até livros e carros, a centralidade das coisas físicas está diminuindo.
Portanto, surge uma pergunta inevitável: em economias e sociedades em que o intangível é rei, e ter uma habilidade específica ligada a uma determinada atividade parece ter muito menos valor do que um conjunto geral de atributos, quem vai prosperar? E quem corre risco de se afundar?
Para Haskel e Westlake, o futuro pertence às pessoas que podem prosperar em um mundo etéreo, imprevisível e adaptar-se infinitamente – “gerentes de produto, advogados, desenvolvedores comerciais, engenheiros de projetos, comerciantes, head hunters e assim por diante”. Ou, dito de outra forma, “pessoas que combinam excelentes habilidades de análise de dados com as habilidades necessárias para intermediar relações dentro e fora de sua própria empresa”.
Essas pessoas se aglomeram em cidades – onde, como evidenciado pelas cidades cada vez mais caras como Londres, Nova York e San Francisco, sua crescente presença está fazendo os preços dos imóveis aumentarem. O fato de que seu conjunto de aptidões pode facilmente parecer raro frequentemente promove um “culto de talentos” que leva salários à estratosfera. Eles vão para áreas urbanas, em partes buscando o tipo de “sinergia” e “transbordamento” mencionados acima e criar networking.
O velho mundo é uma cantina de fábrica na cidade operária, cheia de trabalhadores ansiosos, de cabeça baixa antes de trabalharem na linha de produção; a nova realidade é simbolizada por um café de esquina cheio de gente responsável numa mistura de patrões que podem estar trabalhando, socializando, ou ambos.
Eu conheço essa tribo de pessoas cada vez melhor. Há cerca de um mês, passei uma tarde na seção de tecnologia da gigante de seguros Aviva, no que eles chamam “oficina digital”. A primeira pessoa que encontrei foi o jovem de vinte e poucos anos que recentemente desenhou todos os aspectos visuais dos sites e aplicativos, advindo não do mundo dos serviços financeiros, mas da empresa de jogos Activision.
A alguns quilômetros de distância, alguns dos seus colegas estavam trabalhando num exemplo clássico de transbordamentos e sinergia, aperfeiçoando o software que vai permitir que as pessoas acessem aconselhamento financeiro oral através da Amazon Echo. Essa semana, eles estavam trabalhando em seguros. Na próxima, podem usar seus talentos numa parte completamente diferente da economia.
Obviamente, nem todos são assim. E como o trabalho consistente envolvendo coisas físicas cai em desuso cada vez mais, parece que o choque entre dois tipos diferentes de pessoas vai caracterizar as penosas dores do parto do nascimento de uma nova realidade.
Em uma seção frustrantemente breve do livro, Haskel e Westlake fizeram uma tentativa de colocar o Brexit e a eleição de Donald Trump neste contexto, o que parece absolutamente certo. De fato, é estender a noção de intangíveis para além de bens, em questões de cultura, para se ter uma ideia do que é tão inquietante em muitas sociedades ocidentais: de um lado estão as forças sociais que são legais a ideias como o lugar, a vocação e a família; e de outro lado está um grupo de pessoas felizes em aderir às exigências modernas da economia, reinventar-se sempre que necessário e livrar-se desta bagagem tão peculiar.
“A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”, diz o Manifesto Comunista. O futuro também será, com o tipo de virada irônica que os dois alemães do século XIX teriam achado deliciosa: tirar o capital do capitalismo provavelmente disseminará incerteza e agitação como nunca.
Fonte: IHU, com The Guardian
Texto: John Harris
Tradução: Luísa Flores Somavilla
Data original da publicação: 08/12/2017