Há 17 anos, auditores fiscais foram cruel e covardemente emboscados e assassinados durante investigação.
Noemia Porto e Marcus Barberino
Fonte: Jota
Data original da publicação: 28/01/2021
A questão do trabalho escravo envolve a concentração de propriedade e a sistemática degradação simbólica, social e econômica dos corpos e almas envolvidos na trama da sobrevivência, desde o início da ocupação e da colonização europeias.
Também trata das desigualdades de infraestrutura econômica e social do Brasil. Como se percebe, o problema é complexo. Mas, como é certo, sociedades que não fazem perguntas complexas não estão dispostas a viabilizar a convivência fraterna e solidária entre seus cidadãos e cidadãs.
O dia 28 de janeiro é uma das datas em que a sociedade deve sempre se perguntar o que ainda não fez para evitar que brasileiros e brasileiras sejam vítimas das redes de escravidão. A tragédia que cerca a data é pedagógica. E o exercício de memória sobre ela, uma necessidade.
Neste dia, em 2004, o Brasil que estuda, trabalha e busca se transformar numa sociedade mais justa e solidária encontrou o Brasil arcaico, com todo o seu poder político e econômico, derivados da extensão de suas terras.
A caminho da investigação nas propriedades de Antero e Norberto Mânica, os auditores fiscais do Trabalho Nélson José da Silva, João Batista Lage e Eratóstenes de Almeida Gonçalves e o motorista do veículo, Aílton Pereira de Oliveira, foram cruel e covardemente emboscados e assassinados em Unaí, Noroeste de Minas Gerais.
O ato ignominioso do assassinato revela problemas estruturais até hoje existentes: a sensação de poder que advém do exercício (supostamente absoluto) do direito sobre extensões de terra; a propensão à recusa da legalidade estatal; a sistemática negação do valor do trabalho, que leva a secundar até mesmo o direito à vida.
O poder simbólico do Estado, de que estavam metaforicamente armados os quatro servidores públicos, não foi suficiente para enfrentar esses problemas e fazer prevalecer o sistema jurídico de proteção ao trabalho.
O Brasil civilizado ainda luta para impor a lei aos executores do crime – os mandantes agora se valem de um pretenso apego à legalidade para se furtar ao cumprimento das penas. Também nesse aspecto, os desdobramentos do assassinato cometido em 2004 são representativos: o Estado brasileiro vem e continua progressivamente falhando no combate ao trabalho escravo contemporâneo.
A Constituição de 1988, além de servir de parâmetro à atuação estatal, confere sentido às diversas dimensões de cidadania, incluindo o trabalho. O texto constitucional é, ao mesmo tempo, um diagnóstico dos nossos problemas estruturais e um convite para resolvê-los.
Para o trabalho escravo, a estratégia de combate envolve o poder público, a sociedade civil organizada e as cadeias produtivas. Mas, aqui, o Brasil civilizado da Constituição de 1988 se depara com o Estado privatizado, omisso e conivente com as práticas, rurais e urbanas, de escravização contemporânea da força de trabalho.
São sintomáticas a contínua redução das verbas estatais necessárias à fiscalização laboral e a falta de expropriação das propriedades em que encontrado trabalho escravo.
Certamente, não terão morrido em vão aqueles brasileiros se sempre rememorarmos o 28 de janeiro como o dia da ruptura com a mais degradante forma de riqueza, aquela que se faz com a negativa absoluta do trabalho e da condição humana dos que trabalham.
Porém, a ruptura só se aperfeiçoará com o cumprimento da Constituição por parte do Estado brasileiro. E, para além disso, e de forma combinada, quanto estivermos no caminho de construção de uma sociedade com pensamento, postura e ação abolicionistas.
Noemia Porto é Juíza do Trabalho (TRT/10). Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).
Marcus Barberino é Diretor de Cidadania e Direitos Humanos da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). Juiz titular da vara do trabalho de São Roque (SP), mestre em Economia Social do Trabalho pela Unicamp.