Até os anos 90, emergia nas cidades setor médio proletário, com certa mobilidade social e qualidade de vida. Mas décadas neoliberais transformaram-no em precariado, desiludido e refém de elites que, cada vez mais, engordam suas riquezas.
Marcio Pochmann
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 14/06/2021
Assim como os Estados Unidos registraram, ao final do século 19, intensa e acelerada mobilidade no interior de sua estrutura social, o Brasil experimentou, entre as décadas de 1930 e 1980, o intenso e inebriante charme capitalista. Após cinco décadas, pouco restava da primitiva e relativamente estável carcaça social herdada do agrarismo, tendo em vista o apogeu da profunda e irreconhecível reconversão para a sociedade urbana e industrial conduzida pelo projeto político tenentista (de Getúlio a Geisel).
Entre 1920 e 1990, por exemplo, a população foi multiplicada por quase dez vezes, enquanto o conjunto dos residentes nas cidades saltou de menos de 20% para quase 80% do total dos brasileiros. Com a urbanização, a mudança no padrão de vida transcorreu por significativa mobilidade social marcada por iniquidades profundas, mais decorrentes de uma modernização capitalista descolada das reformas civilizatórias (fundiária, tributária e social) do que de uma revolução burguesa clássica.
Mesmo assim, o ingresso no padrão de vida urbana representou, em geral, a ascensão social frente à brutalidade e penúria da rígida estrutura social do passado agrarista. Estudos e pesquisas, bem como livros e filmes (Central do Brasil, 1998 e Lula, filho do Brasil, 2009) buscaram retratar como o movimento interno da migração demográfica, intrínseco ao deslocamento do pauperismo do campo para a cidade, esteve permeado por mobilidade social ascensionária, ainda que muito desigual.
Diante do inegável vigor econômico puxado pela industrialização e urbanização nacional, a estrutura social foi sendo rapidamente reconfigurada pela trajetória da estruturação do mercado de trabalho assalariado. A concreta constituição da classe média salarial não deixou de apontar para os demais segmentos sociais marginalizados, o poder de coesão que a mobilidade ascendente exalava pelo charme capitalista.
Longe de ser real expressão da meritocracia, conforme definido e difundido por ideólogos do capital, a montagem da classe média assalariada se deu no âmbito da Guerra Fria (1947-1991), apoiada no que Max Weber havia descrito pela formação dos monopólios sociais (Economia e Sociedade, 1922). Ou seja, um conjunto de facilidades para poucos e determinados agrupamentos sociais, proporcionado pela atuação do Estado justificando a prevalência duradora de relações assimétricas e hierárquicas em distintas identidades (branco/não branco, homem/mulher, urbano/rural, favelado/não favelado).
No ano de 1986, por exemplo, 49,2% da população brasileira podia ser enquadrada na condição de classe média proprietária e assalariada, se atribuída por perfil da formação educacional, profissional, ocupacional, status e remuneração. No período inferior a quatro décadas anteriores, a mesma definição de classe média não alcançava 12% do total da população brasileira.
Desde o ingresso passivo e subordinado na globalização conduzido pela Era dos Fernandos (Collor, 1990-1992 e Cardoso, 1995-2002), o capitalismo brasileiro perdeu e não mais recuperou sustentadamente o seu vigor econômico. No vácuo da desindustrialização, o reposicionamento do país na Divisão Internacional do Trabalho enquanto fazendão do mundo tem produzido o inchamento da sociedade de serviços.
Mesmo com a elevação do nível educacional da classe trabalhadora e maiores requisitos profissionais seletivos adotados pelo patronato, as ocupações seguem cada vez mais precárias, acompanhadas por status decadente e remunerações irrisórias. Salvam-se disso, contudo, específicos nichos ocupacionais que operam como se fossem estamentos sociais incrustados no interior do aparelho de Estado e do segmento rentista junto ao setor privado.
Com o desmonte da produção nacional de manufatura e a proliferação das atividades de sobrevivência no setor terciário da economia, a classe média assalariada refluiu, alcançando um pouco mais de 1/3 da população atual. Ou seja, quase 30% abaixo do que era quando havia iniciado o ciclo político da Nova República, em 1985.
Os governos do neoliberalismo nos anos 1990 iniciaram a ruína da classe média, sobretudo com a destruição dos empregos industriais e a conversão de postos do trabalho assalariado para os de empreendedores de si mesmo (“pejotização”, “mei”). Nos dias de hoje, a retomada acelerada do neoliberalismo com Temer e Bolsonaro abala ainda mais a classe média proprietária, impondo sufoco sem igual aos micro e pequenos negócios, o chamado empreecariado.
Sem mais o charme da mobilidade social ascendente, o declínio do capitalismo no Brasil cedeu à valorização da riqueza velha sobrante na ruína da sociedade industrial. Assim, ricos, poderosos e privilegiados conseguiram ficar ainda mais enriquecidos, mesmo que simultaneamente o país acumulasse o encolhimento de 7% no total da riqueza nacional somente nos últimos seis anos.
Marcio Pochman é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. Concorreu duas vezes a prefeitura de Campinas-SP (2012 e 2016). Publicou dezenas de livros sobre Economia, sendo agraciado três vezes com o Prêmio Jabuti.