País está num caminho (quase) sem volta em relação ao consumo de ultraprocessados.
João Peres
Fonte: O Joio e o Trigo
Data original da publicação: 09/06/2022
A má notícia é que, sim, provavelmente estamos num caminho sem volta em relação ao alto consumo de ultraprocessados no Brasil. A boa notícia é que ainda temos tempo, mas não muito, para mudarmos essa tendência. E por que isso é importante?
Porque os ultraprocessados são, sem dúvida, um fator de risco para doenças crônicas (diabetes, enfermidades cardiovasculares, câncer), responsáveis pela maior parte das mortes no Brasil.
Porque depois de um certo limite de consumo a cultura alimentar tradicional pode ser considerada morta. Ressuscitá-la é quase impossível.
Porque manter o rumo das coisas significa admitir que os pobres adoeçam de comida.
Porque manter o rumo das coisas significa admitir que comeremos mentiras, e não alimentos. Ultraprocessados são formulações criadas com ingredientes básicos (farinhas, açúcares e gorduras) que só têm algum sentido em termos de paladar, textura e volume porque estão repletas de aditivos.
De maneira geral, a discussão sobre ultraprocessados no Brasil tinha copos meio vazios e copos meio cheios. O índice de consumo vinha crescendo desde pelo menos os anos 1990. Mas o ritmo de crescimento entre as duas últimas edições da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE perdeu força. O patamar próximo a 30% significa que havia tempo para frear a tendência de substituição de alimentos in natura e minimamente processados por ultraprocessados.
E, grosso modo, pobres e moradores das regiões Norte e Nordeste tinham um menor consumo, o que demonstra uma resiliência das culturas tradicionais e como a renda ainda era uma barreira para o avanço de Doritos, Miojos, Danoninhos e companhia ilimitada. Em linhas gerais, estávamos melhor do que vários dos países ricos.
Tudo pode piorar
A tempestade mais do que perfeita dos últimos anos certamente agravou esse processo. O segundo semestre de 2022 pode marcar um momento tão histórico quanto previsível: os preços dos ultraprocessados se tornarão, na média, mais baratos do que os de alimentos in natura e minimamente processados. Vale pelo registro, mas acontecer em agosto de 2022 ou em janeiro de 2024 muda pouco em termos reais.
Pesquisadores da Federal de Minas e da USP estimavam que essa inversão se daria em 2026, mas não há nada que o governo Bolsonaro não consiga fazer para tornar pior o que era ruim.
Nos últimos meses, encontrar um padrão para a inflação tem sido um grande desafio para nossa equipe. A alta dos preços se dá sobre vários alimentos em simultâneo, ou seja, é uma inflação por dispersão. Essa modalidade de inflação torna mais desafiadora, também, a ação do poder público, já que é muito difícil conter altas que migram de um item a outro com grande rapidez – sem falar no efeito que a expectativa de inflação passa a ter sobre a remarcação de preços.
Mas um aspecto nunca foi difícil de enxergar: a inflação de ultraprocessados é consideravelmente mais baixa. Mesmo não sendo baixa per se, ainda assim não se compara às altas de cenoura, frutas, café, carnes, arroz, feijão.
Esperando de pé (e aflitos)
Saber com precisão qual o percentual de consumo de ultraprocessados da população brasileira é algo que pode demorar. Uma próxima edição da POF não acontecerá neste ano ou no próximo, salvo que haja alguma mudança nas decisões governamentais. Mas é sólido dizer que os indicadores que temos de maneira isolada não são nada tranquilizantes.
E é provável que esse consumo tenha se intensificado nos últimos dois anos. Um estudo realizado entre março e abril de 2021 pelo Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância, apontou um alto consumo de ultraprocessados entre crianças pobres durante a pandemia.
A pesquisa foi conduzida com 1.343 beneficiários do extinto programa Bolsa Família responsáveis por crianças de zero a cinco anos – e 80% dos entrevistados relataram que essas crianças comeram ao menos um ultraprocessado no dia anterior à enquete. O destaque ficou com biscoitos e bolachas recheadas (59%), bebidas açucaradas (41%) e doces e guloseimas (21%).
Questionados sobre os motivos que explicam a presença desses produtos nas suas dietas, os entrevistados apontaram razões como sabor (46%), custo (24%) e praticidade (17%).
Outra pesquisa recente também olhou para o comportamento da população brasileira durante a pandemia. De acordo com o inquérito telefônico Covitel, se 45% das pessoas consumiam verduras e legumes cinco vezes por semana ou mais antes da pandemia, no 1º trimestre de 2022 esse número passou para 39,5% – uma queda de 12,5%.
Para os desempregados, a situação é bem pior. Nesse período, o consumo de frutas e legumes caiu 37%.
A taxa de pessoas nesta categoria que comia frutas cinco vezes por semana ou mais recuou de 42,6% para 26,7%. Já a queda no consumo de verduras e legumes entre os que perderam o trabalho teve comportamento parecido: de 44,2% para 27,6%, segundo reportagem do Estadão.
Tudo indica que Miojo e salsicha desbancaram o arroz com feijão, algo que diferencia o atual ciclo de insegurança alimentar e nutricional de um cenário que tínhamos décadas atrás
De acordo com a Abimapi, associação que reúne os fabricantes de massas alimentícias no país, as vendas das massas instantâneas cresceram quase 20% entre 2019 e 2020. Em comparação, as massas tradicionais tiveram crescimento de 13%.
Como morre uma cultura alimentar
Culturas alimentares mudam? Sempre. Mas, quando se trata de trocar alimentos por ultraprocessados, não estamos falando de uma mudança: estamos falando da extinção de uma cultura alimentar.
A história recente mostra que em torno de 50% da ingestão de calorias diárias provenientes de ultraprocessados são uma espécie de sentença de morte das culturas alimentares. Significa que imitações de comida já se tornaram a fonte predominante de energia, o que tem uma série de repercussões negativas do ponto de vista social e cultural. Quando essas formulações substituem a experiência de ir pra cozinha, dar volta atrás é bastante complicado, porque:
- Os alimentos in natura se tornam inacessíveis tanto do ponto de vista de preço como de proximidade física.
- O saber culinário se perde.
- A experiência individual substitui o hábito de compartilhar refeições
E esses são aspectos quase irreversíveis, como mostram as experiências de Estados Unidos e Reino Unido.
A disputa por espaços
Não precisamos tapar o sol com a peneira: a cultura alimentar brasileira foi importante para tornar mais lento o avanço dos ultraprocessados por aqui, mas a renda também foi um fator fundamental. Então, se tivéssemos arroz com feijão ainda custando barato, a situação seria menos pior.
Essa é uma tendência que poderia ser facilmente revertida, mas esse rio segue fluindo na direção contrária: há muito mais sinais de que soja e milho estejam avançando sobre os itens básicos da alimentação do brasileiro do que o contrário. As próprias estimativas do Ministério da Agricultura reforçam essa tendência. Ainda assim, bastaria um bocadinho de governo sensato para garantir arroz e feijão em abundância. É aí que mora o problema: não temos um governo sensato.
A anos-luz do paraíso
Como mostra a recente reportagem de Maíra Mathias no Joio, políticas públicas existem aos montes. Testadas e aprovadas em diferentes países do mundo. Mas mesmo no melhor dos cenários governamentais não há qualquer indicativo de que essa agenda completa para desestimular o consumo de ultraprocessados saia do papel. A candidatura de Lula não respondeu aos nossos questionamentos sobre a vontade política de:
- mexer em impostos para que os alimentos mais saudáveis sejam os mais baratos
- regular os espaços de consumo para que os alimentos mais saudáveis sejam os mais acessíveis
- restringir a publicidade de ultraprocessados
Temos ainda alguns meses de campanha eleitoral pela frente para entender o que pensam os candidatos. A partir de 2023, não temos muitos meses para agir: o quadro de fome e inflação demanda medidas urgentes. Inclusive para limitar o consumo de ultraprocessados. Desde 2006, a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional garante o “direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis”. Aceitar que os pobres adoeçam de comida não é apenas imoral.