A volta do servidor público de cabresto

Fotografia: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Por meio da estabilidade do servidor público se constrói o sentimento do dever atrelado ao cargo e ao Estado, acima da vontade individual e dos partidos. A reforma administrativa vai no sentido contrário, o de forçar uma lealdade pessoal quase compulsória ao governo de passagem.

Rafael da Silva Barbosa

Fonte: Brasil Debate
Data original da publicação: 16/09/2020

O pai da sociologia e um dos maiores teóricos do Estado, Max Weber (1864-1920) identificou que uma das principais linhas divisórias que definem as nações é o modelo de Estado adotado pelos países. Segundo o intelectual, o poder do Estado moderno não se manifesta exclusivamente pela coação direta e ou nos discursos e declarações dos monarcas, como em estágios anteriores de organização e dominação das sociedades. Em suas palavras, o domínio efetivo no Estado moderno “encontra-se, necessária e inevitavelmente, nas mãos do funcionalismo”.   

Em sua clássica obra, “Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva[1]”, o autor afirma que, analogamente à empresa capitalista, cuja base de sustentação forja-se da separação entre o trabalhador e os seus meios de produção, a pedra angular do Estado racional moderno é justamente a separação do quadro administrativo dos meios administrativos em ambiente de alta impessoalidade racional. Ou seja, a separação deve vir acompanhada de maior racionalidade dos processos, com registro e análise das ações, num regime impessoal das relações. O funcionalismo especializado moderno surge exatamente desse processo de separação entre o comando e a execução, a partir da normalização da impessoalidade.

O rei não é mais o Estado, e o Estado não é do rei. Frases do tipo: “Eu sou o Estado”, remetem a um passado obscuro da história do ser humano, de alta irracionalidade objetiva e diversos abusos que estagnaram, por séculos, a sociedade. Como “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa[2]”, eis que surgem alguns fantoches do mal:

“Eu sou, realmente, a Constituição” (Jair Bolsonaro – 20 de abril de 2020)

A gestão impessoal da ordem pública pauta-se pelo ordenamento amplo de comando (executivo, legislativo e judiciário) dentro de um Pacto Social Nacional de uma Magna Carta – Constituição da Nação -, não é mais a vontade individual do monarca. A lei é para todos e está acima todos. Isto somente é possível com o surgimento do funcionário especializado moderno, o servidor público estável, cujas ações são executadas se e somente se estiverem dentro da legalidade burocrática do Estado. A estabilidade do servidor público é essencial para que o funcionário exerça suas funções de forma plena, sem chantagens ou coação.

Dentro da lógica burocrática moderna, o comprometimento as regras pelo servidor público estável (funcionário especializado) se equilibra com outro tipo de servidor, denominado funcionário político, aquele que diante da desejável rigidez do funcionário especializado, age e propõe novas formas e ações dentro das regras do Estado, garantindo mudanças sem grandes sobressaltados e atropelos. De tal modo que a profissionalização da política ganha freios e contra freios aos extremos.

Por isso, a estabilidade do servidor público é tão importante, através dela é possível construir o sentimento do dever atrelado ao cargo, estando acima da vontade individual e dos “partidos”. Isto é, fora da luta pelo poder próprio, como um verdadeiro funcionário público do Estado, e não necessariamente de um governo passageiro.

No Brasil, o processo de modernização do Estado replicou distorções ainda presentes na sociedade, como a forte desigualdade. Embora, seja aceitável uma certa diferença de rendimentos entres as categorias do funcionalismo público, no Estado brasileiro esse parâmetro ultrapassou todos os limites.

Uma parte das categorias do Estado – congressistas, juízes e militares – se descolaram das demais categorias. Por exemplo, um funcionário público, em início de carreira numa posição básica, pode recebe algo em torno de R$ 1.200,00 ao mês. São funcionários que trabalham para atender a população em setores de alta demanda em hospitais, delegacias e escolas, além dos serviços sociais com transferência de renda, atendimento ao trabalhador no Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), limpeza e manutenção urbana, Procon e tantos outros serviços tão caros a sociedade. Enquanto, por outro lado, o topo do funcionalismo pode receber até 83 vezes mais, em postos militares ou do legislativo e do jurídico. O número de juízes que recebem acima do teto constitucional de R$ 39,2 mil é literalmente criminoso. Segundo reportagem da Folha de S. Paulo, cerca de 8.226 juízes receberam remunerações acima de R$ 100 mil.

Segundo a urbanista Ermínia Maricato, o Estado brasileiro é um animal exótico que pode ser chamado de “Elegarça”, ver figura 1. Esse tipo de Estado possui cabeça e corpo avantajados, mas com pernas raquíticas que não o deixa se movimentar direito, por isso ele sempre empaca.

É sabido que o Brasil tem um dos mais baixos índices de funcionário público por força de trabalho total no mundo, com apenas 12% de participação dos empregos totais no país. Diante das grandes necessidades do povo brasileiro, é nítida a escassez do funcionário público de base para atendimento aos serviços mais essenciais, o que gera, por sua vez, má qualidade no atendimento e longas filas.

E a tal famigerada Reforma Administrativa do Paulo Guedes busca aprofundar ainda mais este quadro. Se aprovada, a reforma vai elevar os privilégios no topo dos servidores com simultânea precarização do funcionalismo básico, reduzindo salários e postos de trabalhos de enfermeiras, policiais, professores e atendentes públicos. Isto porque a reforma exclui exatamente as categorias – magistrados, parlamentares, militares e membros do Ministério Público – que mais possuem privilégios. Em alguns casos os “penduricalhos” podem ultrapassar mais de R$ 10 mil.

O mote por detrás dessa reforma é trazer de volta o Servidor Público de Cabresto, aquele antigo sujeito cujas ações se orientavam pelos desejos pessoais dos seus superiores, e não pela lei. A ideia é forçar uma lealdade pessoal quase compulsória do servidor de base, evitando assim qualquer tipo de manifestação pela legalidade ou denúncia de corrupção, tal como a do peculato, da famosa “rachadinha”, um verdadeiro crime hediondo dentro da repartição pública.

Entende-se, então, que a burocracia moderna encarnada no funcionário público é imprescindível ao desenvolvimento das formas modernas dos Estados nacionais. Mas no Brasil, tal proposta foi subvertida no seio da máquina pública e exerce, ao lado da extrema direita, o sucateamento dos poucos avanços obtidos nas carreiras do funcionalismo básico do Estado, com estabilidade e planos de carreira.

Não deixa de ser curioso o fato de que, precisamente há 100 anos, Weber tenha falecido em função da maior Pandemia do século XX, em 1920, da Gripe Espanhola, e que todo seu trabalho tenha dado um peso positivo ao processo de profissionalização do funcionalismo, em que as ações do Estado devam estar distantes dos desejos pessoais de líderes oportunistas e extremamente aproveitadores. No entanto, não só no Brasil, o mundo assiste ao retorno de movimentos obscurantistas que subvertem o Estado a desejos pessoais que, dentre outros efeitos, sabotam medidas que poderiam salvar milhares de pessoas.

Referências

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. 4. ed. Brasília, DF: Editora UnB, 2014. 1v. 

Notas

[1] Não só pela temática, mas pelo contexto, não deixa ser curioso que sua maior obra tenha sido publicada pela sua esposa, em 1922, após sua morte, em 1920, em função da Gripe Espanhola. Foi a maior pandemia do século XX e matou aproximadamente 50 milhões de pessoas no mundo. Até o momento, a COVID-19 matou cerca 876 mil pessoas no mundo.

[2] Karl Marx, Dezoito Brumário de Louis Bonaparte, 1852.

Rafael da Silva Barbosa é economista, doutor (UNICAMP), pós- doutorando em Política Social (UFES) e colunista do Brasil Debate.

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