A Volks e a ditadura: trabalhadores tentam acordo ‘exemplar’

No lotado auditório do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo, uma plateia assiste atentamente ao documentário que conta a história do envolvimento da Volkswagen com a ditadura civil-militar. O silêncio só é quebrado quando a jornalista alemã Stefanie Dodt pergunta ao ex-executivo da empresa Jacy Mendonça como arquivos internos da Volks foram parar no Dops, a polícia política. “E eu que vou saber?”, reage Jacy, o suficiente para arrancar risadas e um longo murmúrio do público, formado por atuais funcionários da montadora.

O filme, lançado há dois anos, mostra evidência da colaboração da empresa com os órgãos de repressão – algo que está longe de se limitar à Volks e que mereceu capítulo no relatório da Comissão Nacional da Verdade. Mas, nesse caso específico, diversas entidades têm se empenhado para que a montadora se responsabilize por episódios ocorridos em suas dependências. Por enquanto, há uma tentativa de acordo, que pode resultar em um termo de ajustamento de conduta (TAC). Se não for possível, isso poderá ser feito via ação judicial.

No final de 2018, um acerto parecia encaminhado, até que, segundo alguns dos participantes das conversas, a empresa deu “meio passo atrás”. No último dia 11, com reunião com procuradores, pediu mais um mês para se posicionar. “A gente aposta no acordo”, diz Sebastião Neto, coordenador do IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas).

Em 2015, o Fórum de Trabalhadoras e Trabalhadores por Verdade, Justiça e Reparação, que reúne centrais, outras entidades sindicais e o IIEP protocolou representação no Ministério Público Federal sobre a relação entre a empresa e a ditadura. O documento foi assinada por todas as centrais. Ainda naquele ano, o MPF abriu inquérito civil para investigação.

Em evento na última sexta-feira no próprio MPF em São Paulo, sobre Justiça de Transição, Neto comentou que o caso envolvendo a Volks pode ser “exemplar”, envolvendo os MPs federal, estadual e do Trabalho (em São Bernardo). Mas observou que há muito o que avançar na recuperação da memória envolvendo a presença de trabalhadores e sindicalistas na ditadura.

“Não tem uma placa em Osasco com os 600 presos da greve”, exemplificou, citando a paralisação dos metalúrgicos naquela cidade da região metropolitana de São Paulo, em 1968. “Dos 100 primeiros cassados (pelo golpe), 23 eram trabalhadores”, acrescentou. O IIEP, juntamente com outras entidades, dedica-se a pesquisar e divulgar acontecimentos daquele período.

O documentário Cúmplices – A Volkswagen e a ditadura militar brasileiradirigido pelos jornalistas Stefanie Dodt e Thomas Aders e lançado em 2017, conta a história de Lúcio Bellentani, ex-metalúrgico e sindicalista, que foi preso em plena fábrica da Volks em São Bernardo, em 1972, por policiais do Dops, sob as vistas dos seguranças da empresa. “Eu estava de costas quando me apontaram a metralhadora”, narra no filme, lembrando que lá mesmo já começou a levar tapas, socos e pontapés, até ser levado e fichado – na foto, ele aparece ainda usando o macacão da fábrica.

Corte novamente para o ex-executivo da Volks. “Prisão na fábrica? De jeito nenhum”, contesta. “Sempre tratamos nosso pessoal com um carinho muito grande”, acrescenta Mendonça, para novo momento de descontração entre os metalúrgicos da atualidade, durante a sessão no sindicato.

Em dezembro de 2017, a direção da Volkswagen promoveu um evento na mesma fábrica para divulgar um relatório de mais de 100 páginas sobre a presença da VW do Brasil durante a ditadura. O documento foi elaborado pelo professor alemão Christopher Kopper, contratado pela empresa. Segundo o pesquisador, a montadora “foi irrestritamente leal ao governo militar e compartilhou os seus objetivos econômicos e de política interna”.

Colaboração

Em 1969, diz Kopper, começou um processo de colaboração entre a área de segurança industrial da Volks e a polícia polícia, que foi até 1979. “Essa colaboração ocorreu especialmente através do chefe do departamento de segurança industrial Ademar Rudge, que devido a seu cargo anterior como oficial das Forças Armadas sentia-se particularmente comprometido com os órgãos de segurança. Ele agia por iniciativa própria, mas com o conhecimento tácito da diretoria”, aponta o relatório, que mais adiante informará que a segurança da montadora “monitorava as atividades de oposição dos empregados e facilitou com a sua denúncia a prisão de no mínimo sete empregados e empregadas”.

Bellentani foi um desses casos. Ele estava presente na exibição do filme na semana passada, em São Bernardo – o Sindicato dos Metalúrgicos fica a menos de dois quilômetros da fábrica da Volks onde o então operário e militante do PCB foi preso. O ex-metalúrgico preside a Associação Heinrich Plage, nome que homenageia outro ex-funcionário da Volks, também preso em 1972. Morto em março do ano passado, ele completaria 80 anos neste mês.

O atual presidente do sindicato, Wagner Santana, o Wagnão, funcionário da própria Volks, pediu aplausos para o grupo de ex-metalúrgicos presente à sessão de cinema. “Quando começaram sua luta, a ameaça era de morte. Eles lutaram clandestinamente para que a gente nos dias de hoje pudesse fazer reuniões como esta. Não é só um ato de desagravo, contra a Volks, mas contra todas as empresas que colaboraram com a ditadura”, afirmou Wagnão, lembrando das ameaças atuais. “Hoje, descaracterizam as instituições dos trabalhadores. Nossa homenagem é continuar a luta a que esses companheiros se dedicaram, resistir a qualquer empecilho que a gente tenha pela frente.”

Os empecilhos são de outra natureza. No mesmo dia em que os metalúrgicos se reuniam para assistir ao documentário, a direção do sindicato se reunia com a Ford, que comunicava o fechamento, ainda neste ano, da fábrica de São Bernardo. Os trabalhadores têm assembleia marcada para a próxima terça (26).

Clique aqui para assistir ao documentário.

Fonte: RBA
Texto: Vitor Nuzzi
Data original da publicação: 23/02/2019

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