A velhice aviltada em nome da Reforma da Previdência

Carlos Eduardo Araújo

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 22/07/2019

Contam-nos que a aposentadoria é o tempo da liberdade e do lazer; poetas gabaram “as delícias do porto”. São mentiras deslavadas. A sociedade impõe à imensa maioria dos velhos um nível de vida tão miserável que a expressão “velho e pobre” constitui quase um pleonasmo.

Simone de Beauvoir. A velhice.

Há alguns anos assisti a um filme do clássico diretor italiano Vittorio De Sica. Considerado um dos precursores do neorrealismo italiano, legou-nos obras primas da cinematografia mundial, dentre as quais eu destacaria duas: Ladrões de bicicletas e Umberto D.

Filmes, nos quais captou, com a grande sensibilidade de suas lentes, dramas humanos e sociais, em uma Itália que saía, em frangalhos, do pós-segunda guerra mundial.

Dos dois filmes mencionados, vou me ocupar do segundo deles, Umberto D, por sua relação direta com o que estamos assistindo “neste primeiro ano da triste era Bolsonaro”[1], com o desmonte de nossa Previdência Social. Com isso, Bolsonaro dá continuidade ao projeto de desmonte do que restava do “Estado do Bem-Estar Social”, cujo lance anterior coube ao golpista Michel Temer, com a nefanda “Reforma Trabalhista”.

O filme, de 1952, que é tristemente atual, tem início com uma manifestação de protesto de aposentados que, em meio às reformas, porque passa a Itália, decorrentes da crise econômica do pós-segunda guerra mundial, têm o poder de compra de suas aposentadorias drasticamente diminuído, levando ao amesquinhamento de suas pensões.

Suas reivindicações não são levadas em conta e seu protesto é reprimido de forma desrespeitosa e violenta. Entre os insurretos está Umberto Domenico Ferrari, personagem símbolo e síntese da espoliação, desprezo e humilhação a estão submetidos aqueles que já não são mais “produtivos” e, portanto, descartáveis na lógica do capital.

Como constata Simone de Beauvoir:

“A economia é baseada no lucro; é a este, na prática, a que toda a civilização está subordinada: o material humano só interessa enquanto produz. Depois, é jogado fora. Num mundo em mutação, em que as máquinas têm vida muito curta, não é necessário que os homens sirvam durante um tempo demasiadamente longo.” [2]

Simone de Beauvoir, em 1970, de forma pioneira, se ocupa do tema da velhice e do envelhecimento. O que resulta de seus estudos e reflexões é uma profunda análise biológica, etnológica, humana, histórica, social e cultural dessa fase da vida que, segundo constatou, não mereceu, até aquele momento, a atenção e o interesse devidos, sendo que o foco dos estudos, até então realizados, era a infância e juventude. É uma obra até hoje fundamental para se pensar o tema da velhice, constituindo-se, a meu sentir, em uma referência obrigatória, verdadeira “bíblia”, para os que se interessarem pelo assunto.

Voltemos a Vittorio De Sica. Seu filme, Umberto D, apreendeu, com tocante sensibilidade, a comovente saga do protagonista e seus esforços para manter sua dignidade em meio às adversidades intransponíveis, na luta pela sobrevivência. Mora ele em um quarto de pensão, cujo aluguel não consegue pagar com os escassos proventos de sua aposentadoria. Em face de tão aflitiva e tormentosa situação, e fustigado pela dona da pensão, que o assedia e ameaça de modo impiedoso, como último e desesperado recurso, que contempla, em prejuízo de sua dignidade, a aventar a possibilidade de pedir esmolas. É o desfecho melancólico de uma vida inteira que fora dedicada ao trabalho. É como se, no dizer de Simone de Beauvoir: Os velhos não tivessem “nem as mesmas necessidades nem os mesmos sentimentos que os outros homens, já que basta conceder-lhes uma esmola para nos sentirmos desobrigados com relação a eles.” [3]

O filme de De Sica nos fornece o pano de fundo perfeito para tecermos algumas reflexões em face da reforma (deforma) da Previdência Social, que está em curso em nosso país. Apesar de terem sido atenuados alguns dos aspectos mais deletérios do projeto inicial do governo, como a nefasta “capitalização”, a configuração atual, fruto da aprovação, em primeiro turno de votação na Câmara dos Deputados, trará prejuízos vultosos às atuais e futuras gerações de idosos deste país.

O cerne de minha atenção, neste texto, restringir-se-á aos segurados que alcançarão o direito à aposentadoria em função do tempo de contribuição ou idade, dentre os quais se incluem os idosos, objetos preferenciais dessa análise.

Lastimável o destino que reservamos a eles (idosos), no momento em que se mostram mais necessitados de nossos cuidados e atenção, em que se encontram mais vulneráveis pelas conseqüências do envelhecimento, voltamos-lhes às costas, em sinal de desprezo pelo nosso próprio futuro. Esquecemo-nos, pois que são “pessoas que nos antecederam num caminho que também iremos trilhar, para assim conhecermos como é: áspero e árduo ou tranqüilo e cômodo.” [4]

Essa “reforma”, como está sendo conduzida, vai de encontro à proteção que nossa Constituição Federal e o Estatuto do idoso conferem, em termos de direitos, aos idosos de nosso país.

Preceitua o texto constitucional, em seu artigo 230, que: “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.”

Em perfeita sintonia e como decorrência do comando constitucional, o legislador ordinário, através do Estatuto do Idoso, disciplinou, de maneira mais detalhada, os direitos decorrentes desse peculiar período de nossas existências.

Assim, o artigo 3.º do aludido estatuto, estabelece que: “É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.”

Deve ser um princípio basilar de toda civilização a defesa de seus idosos, impedindo que suas existências sejam marginalizadas, num momento em que se mostram mais indefesos e inermes. O aposentado Umberto Domenico Ferrari personifica e dá alma a essa velhice desvalida e abandonada à sua própria sorte, que se afigura como corolário do arranjo previdenciário que se avizinha. O efeito de tão execranda reforma é a morte anunciada de nossa previdência social.

Simone de Beauvoir constata que:

“O fato de que um homem nos últimos anos de sua vida não seja mais que um marginalizado evidencia o fracasso de nossa civilização: esta evidência nos deixaria engasgados se considerássemos os velhos como homens, com uma vida atrás de si, e não como cadáveres ambulantes.” [5]

Entre as perdas e ganhos, naturais e sociais, decorrentes do processo de envelhecimento, não é aceitável a perda da nossa própria dignidade e humanidade.

Como remata Simone de Beauvoir:

“Exigir que os homens permaneçam homens em sua idade mais avançada implicaria uma transformação radical. Impossível obter esse resultado através de algumas reformas limitadas que deixariam o sistema intacto: é a exploração dos trabalhadores, é a atomização da sociedade, é a miséria de uma cultura reservada a um mandarinato que conduzem a essas velhices desumanizadas.” [6]

O que está em jogo, neste momento crucial da vida brasileira, é o desmonte de um sistema que se tem mostrado exitoso nos últimos trinta anos, desde sua implementação com a atual Constituição Federal. Nosso modelo, reconhecido internacionalmente, sempre se mostrou plenamente sustentável, ao contrário de toda uma propaganda de desinformação, promovida e patrocinada pelos interesses escusos e inconfessos do mercado financeiro.

O legislador constitucional (art. 195), lastreado em um modelo de solidariedade social, previu inúmeras e variadas fontes de custeio para o “Sistema da Seguridade Social”, que engloba além da Previdência Social, a Saúde e a Assistencial Social, “a fim de garantir a solvibilidade do sistema, para se evitar que a crise em determinados setores comprometa a arrecadação, com a participação de toda a sociedade, de forma direta e indireta.” [7]

No plano do direito previdenciário, a solidariedade é, pois um princípio fundamental que se coaduna com o objetivo constitucional, consagrado no artigo 3.º de nossa Carta Magna, segundo o qual na República Federativa do Brasil deverá constituir-se em uma sociedade livre, justa e solidária.

É contra esse modelo solidário de previdência social que investem setores da economia, ligados ao grande capital. As vítimas privilegiadas desse enredo malévolo são os idosos pobres. Como nos ensina Simone de Beauvoir:

“Tanto ao longo da história como hoje em dia, a luta de classes determina a maneira pela qual um homem é surpreendido pela velhice; um abismo separa o velho escravo e o velho eupátrida, um antigo operário que vive de pensão miserável e um Onassis.” [8]

Em um modelo previdenciário, baseado na solidariedade, como atualmente o nosso, cabe a uma geração custear os benefícios que serão usufruídos pela geração que a antecedeu, num verdadeiro pacto geracional.

Conta-nos Simone de Beauvoir que Buda, quando era ainda o príncipe Sidarta, encerrado por seu pai num magnífico palácio, dele escapuliu várias vezes para passear de carruagem nas redondezas. Na primeira saída, encontrou um homem enfermo, desdentado, todo enrugado, encanecido, curvado, apoiado numa bengala, titubeante e trêmulo. Espantou-se, e o cocheiro lhe explicou que era um velho, ao que redargüiu: “Que tristeza que os seres fracos e ignorantes, embriagados pelo orgulho próprio da juventude, não vejam a velhice!” [9]

As sociedades ocidentais e, com maior veemência aquelas ainda jovens como a brasileira, sempre devotaram um certo ar de desdém, de indiferença e de desprezo para com essa fase da vida.

A proposta de reforma (deforma) aprovada no primeiro turno de votação na Câmara dos Deputados acaba com a aposentadoria por tempo de contribuição, estabelecendo uma idade mínima para se alcançar tal benefício. Essas idades foram substancialmente aumentadas, dificultando, sobremaneira, a possibilidade de aquisição do direito à aposentadoria, postergando-o para idades cada vez mais avançadas.

Há, na proposta de reforma da previdência, aprovada em primeiro turno de votação na Câmara dos Deputados, um agravamento desmedido da situação dos idosos pobres, destinatários do BPC (Benefício de Prestação Continuada), instituído pela Lei 8.742/93, em cumprimento ao determina o art. 203, V, CF/88. Aqueles idosos que, por variadas circunstâncias da vida, não efetuaram a contribuição para a previdência social, passaram a ter, a partir dos 65 anos de idade, o direito a um salário mínimo. Tal benefício visa a conferir a esses idosos, em situação de penúria, miserabilidade ou indigência, o mínimo de condições materiais para uma existência digna. Ocorre que a reforma em curso aumentou, em cinco anos, a idade mínima para a aquisição de tal direito, passando-a dos atuais 65 para os 70 anos de idade.

Aprovada a reforma, neste ponto, estará a sociedade brasileira deixando ao desabrigo da proteção social milhões de idosos, abandonando-os à indigência, à penúria, à privação, à miséria, em suma, à pobreza extrema. Tudo isso em negação ao objetivo constitucional da edificação de uma sociedade justa e solidária.

Mais uma vez é Simone de Beauvoir que denuncia de maneira candente: “A sociedade impõe à imensa maioria dos velhos um nível de vida tão miserável que a expressão “velho e pobre” constitui quase um pleonasmo.” [8]

É isso, enquanto sociedade brasileira, que estamos a fazer com a infortunada reforma que se apresenta?

Soma-se a isso, como elemento a dificultar, demasiadamente, a aquisição do direito à aposentadoria, o aumento extremado do tempo de contribuição. Aqueles trabalhadores que conseguirem comprovar que contribuíram para a Previdência Social, por no mínimo 20 anos, farão jus ao recebimento de 60% desse valor, em enorme prejuízo de sua sustentabilidade econômica futura. O que aponta para o prenúncio de uma velhice empobrecida. Tempo esse já difícil de ser atingido em face da crescente volatilidade e da intensificação da informalidade no mercado de trabalho, agravadas pela recente reforma trabalhista.

Para a obtenção de uma aposentadoria de 100%, será necessário ao trabalhador ter contribuído por 40 anos, tornando essa hipótese uma quimera. Para certas categorias de trabalhadores, como os que labutam no campo, será praticamente impossível alcançar o direito à aposentadoria.

A questão da velhice se subsume, em boa medida, na problemática da luta de classes. É uma questão de poder que se coloca no interior das classes dominantes, como nos ensina Simone Beauvoir. Segundo ela, até o século XIX, nunca se fez menção aos “velhos pobres”; estes eram pouco numerosos e a longevidade só era possível nas classes privilegiadas. [10]

Para finalizar, voltemos ao filme de Vittorio De Sica e a seu personagem que dá nome à sua película: Umberto Domenico Ferrari ou simplesmente “Umberto D”. Ele encarna, desgraçadamente, essa velhice pobre, dos que se tornaram descartáveis para o sistema capitalista. Não encontrou solidariedade entre seus pares, com a honrosa exceção de uma jovem criada, de nome Antonia, encontrando-a, igualmente, na companhia de seu fiel amigo e companheiro o cãozinho Flick.

Torçamos para que os idosos brasileiros, principais vítimas das iniqüidades do neoliberalismo triunfante – a eminência parda a comandar a deforma da previdência – tenham mais sorte do que aquela que foi reservada ao nosso herói Umberto D.

Notas:

[1] Expressão utilizada pelo jornalista Joaquim Cardoso, do seu canal do YouTube DCM (Diário do Centro do Mundo).

[2] Simone de Beauvoir. A velhice. Nova Fronteira, 2018.

[3] Simone de Beauvoir. A velhice. Nova Fronteira, 2018.

[4] Platão. A República. Os pensadores. Nova Cultural, 1997.

[5] Simone de Beauvoir. A velhice. Nova Fronteira, 2018.

[6] Simone de Beauvoir. A velhice. Nova Fronteira, 2018.

[7] Frederico Amado. Curso de Direito e Processo Previdenciário. Juspodium, 2017.

[8] Simone de Beauvoir. A velhice. Nova Fronteira, 2018.

[9] Simone de Beauvoir. A velhice. Nova Fronteira, 2018.

[10] Simone de Beauvoir. A velhice. Nova Fronteira, 2018.

Carlos Eduardo Araújo é professor Universitário e mestre em Teoria do Direito (PUC-MG).

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