A situação do cuidado com a população idosa no Brasil

Cristina Pereira Vieceli

A questão dos cuidados está ganhando atenção especial tanto de organismos internacionais de diferentes vieses1, quanto de estudos na área da economia feminista e incorporada como agenda de políticas fiscais. Um exemplo importante é o pacote anunciado pelo governo Joe Biden no início deste ano, que prevê a destinação de US$ 600 bilhões para a Economia do Cuidado. O pacote será voltado para a criação de postos de trabalho na área de cuidados de pessoas, tanto crianças como idosos, e visa incentivar áreas de trabalho majoritariamente ocupadas por mulheres, que foram extremamente impactadas pela pandemia2.

No Brasil, a questão dos cuidados com pessoas idosas, em especial as com níveis de dependência, é bastante negligenciada. Apesar disso, o tema ganha especial importância haja vista o aumento da expectativa de vida, mudanças demográficas, diminuição da taxa de natalidade e o ingresso de mulheres no mercado de trabalho. Ou seja, há um problema de crise dos cuidados no país. O ministro da Economia Paulo Guedes, relaciona esta crise com a vontade das pessoas viverem muito, o avanço da medicina e, por consequência, a incapacidade do Estado de prover políticas públicas necessárias para a população idosa3. Ou seja, segundo a lógica do ministro, não devemos desejar viver muito porque economicamente não é viável, o melhor seria morrermos trabalhando. Mais uma vez, a inversão dos valores de para quem a economia serve, que virou também uma constante no período pandêmico.

O trabalho de cuidados vai de encontro à lógica mercantil utilitarista, em especial o de cuidados com pessoas consideradas “não produtivas”. Ou seja, o pensamento neoliberal não consegue enxergar utilidade para as pessoas idosas com necessidades de cuidados. Essa lógica perversa também ocorre para os cuidados com as crianças pequenas, que são negligenciadas pelo Estado. A estas, no entanto, ainda cabe o discurso do investimento no “futuro do país” e no “capital humano”. Em relação aos idosos não.

De toda a forma, um olhar feminista, humanitário e de solidariedade intergeracional, constata que existe uma crise de cuidados e que as suas soluções são complexas. As propostas devem assegurar o respeito à vida, das capacidades individuais e a diversidade. Segundo relatório publicado pela Pan American Health Organization, entre 2000 e 2050 a proporção de pessoas idosas acima de 60 anos irá dobrar, saindo de 11% para 22%. Em relação à América Latina, a expectativa de vida das mulheres deverá chegar a 80,7 anos, enquanto a dos homens a 74,9 anos4. De acordo com o IBGE, em 2060 um terço da população brasileira será composta por pessoas acima de 60 anos5.

Nesse sentido, pensar em um arranjo de relações de cuidados no Brasil é extremamente necessário e urgente. A área da economia de cuidados ganha especial importância considerando que uma das estratégias de sair da crise econômica e social é por meio de políticas de investimento público.

Segundo a definição adotada por Helena Hirata (2020 p. 26)6, o cuidado pode ser definido:

“como um trabalho material, técnico e emocional atravessado por relações sociais de sexo, de classe e de raça, entre diferentes protagonistas: os provedores e provedoras de cuidados, de um lado, os beneficiários e beneficiárias de cuidado, de outro, assim como todos os que administram, supervisionam ou prescrevem o trabalho”

A autora define ainda que ele “diz respeito às pessoas em situação de dependência, mas todos os seres humanos são vulneráveis em algum momento de suas vidas”. Ou seja, todos necessitamos de cuidados para viver. No entanto, algumas pessoas recebem mais cuidados, enquanto outras são principalmente ofertantes.

A respeito deste ponto, Jordana Cristina de Jesus, utilizando a metodologia da Counting Womens Work (CWW, 2017)7, analisou em sua tese de doutorado quem são os ofertantes e demandantes pelos trabalhos domésticos não remunerado no país. A autora realizou análise por faixa etária, decis de renda e raça/cor. Entre as conclusões estão que as mulheres passam toda a vida útil na condição de transferidoras de trabalho doméstico, já os homens são consumidores líquidos ao longo de toda a vida (ou seja, demandam mais do que ofertam). (JESUS, 20188).

Essas desigualdades se acentuam principalmente entre as famílias pobres: as mulheres nos decis de renda inferiores tornam-se transferidoras líquidas de trabalhos domésticos 10 anos antes que os homens na mesma faixa. Há diferenças também entre as horas dedicadas por raça/cor: as mulheres pardas são as que mais realizam trabalho doméstico quando comparadas às negras e brancas. Além disso, o pico de produção entre as brancas é mais tardio do que as demais raças (JESUS, 2018).

Nas suas diferentes formas de oferta e demanda, o trabalho de cuidado é relacionado com as emoções, o afeto, o amor, por um lado, e, de outro, a materialidade, a mercadoria e a técnica. Além disso, é algo que historicamente, recai sobre as mulheres, em geral as mais vulneráveis – migrantes e pobres. Essa característica ocorre mesmo em países com maior nível de renda e proteção trabalhista. A desvalorização dos trabalhos de cuidados nos domicílios reflete tanto na sua oferta no mercado, quanto também no trabalho de todas as mulheres, mesmo as que não trabalham em áreas voltadas aos cuidados, o que a economista estadunidense Nancy Folbre9 chama de penalização do trabalho de cuidados.

Conforme analisado por Hirata, no estudo comparativo entre os trabalhos de cuidados no Brasil, França e Japão há configurações múltiplas do trabalho de cuidados, envolvendo o Estado, a família, o mercado e a comunidade. Cada país organiza o seu sistema de relações de cuidados com pessoas, dando maior ou menor relevância para cada um dos segmentos.

Na França, destaca-se a centralidade do papel do Estado e das políticas públicas. O principal instrumento de serviços públicos é a Alocação Personalizada de Autonomia (APA), que custeia o cuidado de pessoas idosas, tanto para permanecerem em casa, como para serem atendidas por alguma instituição. No Japão, por outro lado, a responsabilidade pelo cuidado das pessoas idosas se dá principalmente para os integrantes das famílias, majoritariamente pelas mulheres, sejam elas esposas, filhas, noras etc. Mesmo assim, o Japão possui um sistema público de financiamento de cuidados com idosos, o Long Term Care Insurance (ITCI), que é financiado por um imposto específico, pago pelas pessoas com 40 anos ou mais.

Em relação ao Brasil, há uma ampla legislação que assegura a dignidade e proteção das pessoas idosas. A mais completa é Lei 10.741 de 2003, o “Estatuto do Idoso”, que indica no artigo segundo “ a preservação da saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade” e no artigo terceiro “ a obrigatoriedade da família, da comunidade, da sociedade e do poder público (…) a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho a cidadania, à liberdade, a dignidade, ao respeito à convivência familiar e comunitária”.

Há ainda a Constituição Federal (CF) de 1988 que, no artigo 203, trata sobre a destinação e obrigações da Assistência Social brasileira, que deve ser prestada “a quem dela necessitar, independente da contribuição à seguridade social”, e tem como objetivos: “a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice”; e “a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou tê-la provida por sua família”. No artigo 229 da CF, é definida também a responsabilidade sobre os cuidados com as crianças, adolescentes e idosos, cabendo “aos filhos maiores o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência e enfermidade”. Ou seja, a CF ressalta neste artigo o dever da família sobre os cuidados. No entanto, no artigo 230, indica que “cabe a família, a sociedade e o Estado o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. No inciso primeiro deste artigo, destaca que os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares”.

Ou seja, a CF 1988 ressalta a importância das políticas de cuidados com os idosos e define como principal responsabilidade a familiar. Já no Estatuto do Idoso de 2003, essa responsabilidade é compartilhada entre a sociedade. Isso também é disposto na Lei n. 8.842, de 4 de janeiro de 1994, que trata sobre a Política Nacional do Idoso e cria o Conselho Nacional do Idoso, que define como responsáveis pelos cuidados com as pessoas idosas: a família, a sociedade e o estado (art. 3), e prioriza a família, em detrimento do atendimento asilar (art. 4).

A priorização da família pela legislação, entretanto, não assegura de que forma este cuidado será ofertado pelos seus integrantes. Não existe previsão de licença para cuidados de pessoas idosas, como ocorre com os cuidados com crianças, tampouco formas de remuneração para a pessoa que o exerce de maneira informal. Ou seja, o Estado define que a família é responsável, mas não viabiliza o exercício desse cuidado.

Efetivamente, as políticas públicas direcionadas às pessoas são muito escassas. Além disso, há falta de estruturas de acolhimento da população idosa e poucas pesquisas que tratam sobre o assunto. Levantamento realizado pelo IPEA em 201110, indica que, do total de Instituições de Longa Permanência para a População idosa no Brasil (ILPI) entre os anos de 2007 e 2009, 65,2% eram de caráter filantrópico ou religioso, 28,2% eram instituições privadas e somente 6,6% instituições públicas. Há também uma prevalência de concentração das ILPIs principalmente nas regiões Sudeste, que concentram 63,5% das instituições brasileiras e 51,7% da população idosa, enquanto a região Nordeste, concentra 24,7% da população idosa e 8,5% das ILPIs.

A falta de políticas públicas voltadas à população idosa afeta tanto ao(à)s que demandam pelos cuidados, como também ao(à)s que cuidam. Os trabalhos voltados aos cuidados de idosos(as) no Brasil é principalmente ofertado pelas famílias, redes de apoio, trabalhadoras domésticas remuneradas e diaristas, e por empresas de serviços e agências de “home care”. Não existe nenhum programa público específico que financia os cuidados para os(as) idosos(as) no país, a despeito da legislação protetiva. Hirata classifica o sistema de relações de cuidados com pessoas idosas no país prevalentemente ofertado pela comunidade, redes de sociabilidade e vizinhança.

Outra questão levantada pela literatura é a falta de uma estrutura de cuidados no país, como existe na França e no Japão e, utilizando um exemplo próximo, no Uruguai, com o Sistema Nacional Integrado de Cuidados (Snic), criado em 2015 e que prevê um preventivo programa de saúde da família.

Sob a perspectiva da(o) trabalhador(a) de cuidados, a formalização seria extremamente relevante, haja vista a crescente necessidade desses cuidados, que são realizados de forma majoritariamente informal, e por ser uma atividade que põe a pessoa em risco de contrair doenças contagiosas, lesões por esforços repetitivos e problemas mentais. Segundo Minayo (2021), o trabalho de cuidados afeta sobremaneira a vida de quem o exerce, as pessoas que cuidam são mais propensas a utilizarem medicamentos antidepressivos e são mais propensas e desenvolverem depressão e ansiedade quando comparadas com a população em geral. Além disso, as(os) cuidadoras(es) informais – ou seja, as(os) que exercem o trabalho de forma não remunerada – são acometidas(os) por stress de falta de tempo e aumento dos custos com eletricidade, medicamentos, transporte e adequações no domicílio.

Atualmente, a legislação relativa aos trabalhadores de cuidados com pessoas, sejam elas crianças, idosos ou enfermas, é a mesma das empregadas domésticas. Esta característica torna ainda mais precarizado tanto o trabalho das domésticas remuneradas, que acabam realizando todas as atividades domésticas somadas as de cuidados, como também das cuidadoras, já que dificulta a sua representação e organização como categoria.

O reconhecimento da categoria de cuidadores(as) é de grande importância para a valorização e organização do trabalho, como acontece em diversos países do Norte. No caso do Brasil, o trabalho de cuidados é caracterizado pela falta de reconhecimento dessa categoria e a escassez de organização em associações que poderiam reivindicar melhores condições de trabalho (MINAYO, 2021). A respeito desse assunto, o Projeto de Lei 4.702 trata exclusivamente sobre a regulamentação do trabalho de cuidado com pessoas idosas, definindo as atividades que abrangem treinamentos específicos necessários, entre outros pontos. Além de não ter sido aprovada, a lei é defasada, pois remete aos direitos trabalhistas das trabalhadoras domésticas de 1972, considerando que a legislação das trabalhadoras domésticas foi atualizada em 2015. A Lei Complementar 150 de 2015, que trata sobre as trabalhadoras domésticas, por sua vez, não menciona o trabalho das(os) cuidadores(as). Ou seja, o reconhecimento da categoria perpassa pela atualização da legislação e, portanto, da proteção tanto das cuidadoras como das pessoas que recebem cuidados.

O descaso do setor público sobre o trabalho de cuidados com a população idosa no Brasil, além de demonstrar a desvalorização tanto do serviço extremamente necessário, como também à vida das pessoas idosas, penaliza principalmente as mulheres e meninas, que o realizam informalmente. Nesse sentido, há também um viés de raça e de classe, desigualdades que são reforçadas pela falta de políticas públicas.

As políticas voltadas para os cuidados, seja de pessoas idosas, como também de crianças e pessoas com algum tipo de necessidade de cuidados, para serem socialmente justas devem ser guiadas pelos 4 R: Reconhecimento do trabalho, como uma atividade que possui valor econômico; a Redução das horas destinadas aos trabalhos de cuidados, através de investimentos públicos em infraestrutura; a Redistribuição deste trabalho perante toda a sociedade, famílias, setor público e privado; e a Representação das cuidadoras e cuidadores, garantindo que as suas demandas sejam ouvidas11.

A sensibilização da importância do trabalho de cuidados se torna ainda mais urgente no período pandêmico, haja vista que a rede de auxílio é rompida ou dificultada. A necessária retomada do crescimento econômico, durante e após a pandemia, deve perpassar principalmente a valorização da vida, gerando mais oportunidades de trabalho, fontes de renda para a população e suprindo a necessidade de cuidados da população idosa e dos demais demandantes.

Notas

1 A exemplo disso, ver relatório do Banco Mundial: “Care Economy: A powerful entry point for increasing female employment”, OXFAM Internacional: “Time to care: Unpaid and underpaid care work and the global inequality crises”, Organização Internacional do Trabalho: “Care work and care jobs: for the future of decent work”.

2 O emprego das mulheres foi mais afetado do que o dos homens durante a pandemia da Covid-19, esta situação não ocorreu somente nos países do Norte, como também nos do Sul. Nas colunas de março e abril deste ano trato sobre este tema específico.

3 https://economia.ig.com.br/2021-04-27/paulo-guedes-aumento-expectativa-de-vida.html

4 https://www.paho.org/salud-en-las-americas-2017/mhp-aging.html

5 http://mds.gov.br/assuntos/brasil-amigo-da-pessoa-idosa/estrategia-1#:~:text=O%20avan%C3%A7o%20dos%20n%C3%BAmeros%20ultrapassou,30%2C3%20milh%C3%B5es%20de%20pessoas.

6 https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/170421

7 COUNTING WOMEN’S WORK – CWW. Affiliate Teams.2017. Disponível em: https://www.countingwomenswork.org/about/what-we-do. Acesso em: 28 out. 2019.

8 JESUS, J. C. Trabalho doméstico não remunerado no Brasil:uma análise de produção, consumo e transferência. 2018. 120 f. Tese (Doutorado em Demografia) – Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.

9 Folbre, Nancy. “Measuring care: gender, empowerment, and the care economy.” Journal of Human Development, 2006.

10 https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&id=8571

11 https://oxfamilibrary.openrepository.com/bitstream/handle/10546/620928/bp-time-to-care-inequality-200120-en.pdf

Cristina Pereira Vieceli é economista, mestre e doutora em economia pela FCE/UFRGS, foi pesquisadora visitante do Centro de Pesquisas de Gênero na York University – Toronto. Atualmente é técnica do Dieese, Visiting Fellow no Programa de Análise de Gênero da American University – Washington-DC, colunista do site DMT .

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