A relevância social do que vem ocorrendo na política do Reino Unido é tal que será fundamental seguirmos acompanhando de perto.
Edemilson Paraná
Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 28/06/2017
Mais de 170 anos se passaram desde a publicação do clássico relato de Friedrich Engels (“A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, 1845) sobre as terríveis condições de vida do proletariado industrial na Manchester da era vitoriana. Se, junto da evolução do próprio capitalismo, a natureza daquelas condições laborais mudou desde então, a mesma postura de estranhamento frente ao modo de organização do trabalho social e suas implicações permanece atual. Lá como cá, compreender o cotidiano das multidões, em especial no modo como reproduzem materialmente suas vidas, segue sendo um exercício fundamental na busca pelo delineamento das correntes subterrâneas que dispõem e relacionam entre si distintas esferas sociais, especialmente os espaços de disputa e manutenção do poder político. Tal “situação”, veremos, nos ajuda a compreender o que se passa atualmente no Reino Unido [2].
Brasileiro morando há alguns meses na Inglaterra, acabei colocado em uma intrigante posição de observador “externo”. Desde que aqui cheguei, aconteceram quatro atentados terroristas, o último deles no bairro onde moro. Como se não bastasse acompanhar diariamente as dores do parto do Brexit, fui igualmente surpreendido pelo anúncio de novas eleições gerais. Eleições essas, registre-se, que repercutiram também acusações de corrupção e abuso de poder econômico por parte dos Conservadores na disputa anterior. Guardadas as enormes diferenças, a sensação de que a conjuntura política acelerou em uma espécie de montanha russa não é privilégio, então, apenas de meu saudoso Brasil.
Na modesta casa de estilo vitoriano que divido com outros jovens em um bairro periférico de Londres vivem seis pessoas, o mais velho dos moradores acaba de completar 30 anos. Todos, com exceção de apenas um (preocupado com a fuga de capitais a que isso supostamente levaria), votariam em Corbyn. Sem nenhuma pretensão de acuidade estatística, a composição de nossa residência compartilhada segue, então, mais ou menos aquela que se verificou no resultado eleitoral [3]: a força eleitoral de Corbyn e do Partido Trabalhista cresce na razão inversa da idade média de cada faixa do eleitorado, alcançando o topo entre eleitores de 18 a 25 anos. Votar em Corbyn se tornou “cool”.
Mas o que poderia nos ajudar a explicar a adesão desta juventude, não raro descrita como egoísta, individualista e superficial, ao discurso e ação política comunitarista de um “velho”, e talvez um tanto desengonçado, militante socialista, ligado a sindicatos e organizações sociais de base – e a até pouco tempo apenas mais um outsider ruidoso no interior da impenetrável máquina política do Partido Trabalhista?
Contra a elite política: “For the many, not the few”
Um dos aspectos a considerar, naturalmente, é a crise generalizada do sistema tradicional de representação política. O centro político que governou as últimas três décadas nos países centrais, o Reino Unido incluído, está derretendo. Neste espólio nada pacífico, o capital eleitoral antes ali represado transborda à direita, mas também à esquerda.
A relativa “vulgaridade” de um ativista esquerdista no parlamento, que até então rendera a Corbyn, dentro e fora de seu partido, a imagem de inapto, fraco, delirante e até perigoso, acabou surpreendentemente traduzida, aos olhos do eleitorado, em marcadores de honestidade, decência, simplicidade e autenticidade – naquele que é, justamente por isso, “um de nós” e não apenas “mais um deles”. Corbyn não vem das mesmas escolas e centros de formação preferidos pela elite do poder, não frequenta seus comitês, não circula em seus ambientes sociais. Sob todos os aspectos, inclusive o estético, reúne inúmeras características que o possibilitam ser visto como um cidadão comum.
Trata-se de algo, cabe observar, que foi bem explorado por sua campanha. Contra o “Strong and Stable” (Forte e Estável) de Theresa May, seu slogan (“For the many, not the few” – para os muitos, não para os poucos), marcou a aposta aberta na busca por uma unidade do povo, os 99%, contra a elite política e financeira britânica. Um tipo brando de populismo, para marcar uma importante distinção com o expecto político oposto, que confia mais na força comunitária e solidária do poder popular, do que em nativismos excludentes como a grandeza da nação bretã.
Assim, em um efeito que lembra, em vias tortas, o que aconteceu com Donald Trump (a aproximação mais correta, em termos políticos e ideológicos, seria com Bernie Sanders), Corbyn se converte em uma espécie de espelho que reflete a impotência do cidadão comum, aquele que está sempre à margem dos ritos, processos e decisões que governam os aspectos mais fundamentais de suas vidas. Diante deste processo de identificação, não chega a espantar, então, que quanto mais a imprensa e o mainstreampolítico o ridicularizem, mais Jeremy Corbyn avance em popularidade, mesmo depois das eleições. Seguindo esta tendência, com mais duas semanas de campanha, alertam alguns analistas, seu partido teria obtido maioria no parlamento.
Mas isso deve ser visto, antes de tudo, como consequência ou emergência de um problema primordial, e talvez mais profundo: a crença nas instituições representativas (incluída a grande imprensa) e nos políticos convencionais se deteriora sobretudo porque estes simplesmente não têm sidos capazes de oferecer garantia mínima ou melhora, tímida que seja, das condições gerais de vida da população, antes o contrário. Diante da patente deterioração do estado de coisas, o que aparece como a parcela de culpa da elite governante vai se fazendo percebida. E com ela, a afamada crise de representação. Os mais jovens são, certamente, os mais afetados por este processo.
A condições de vida e trabalho dos mais jovens
Voltemos, então, ao exemplo de meus jovens colegas. Além de um estagiário, ao menos três deles trabalham em condições que podem ser consideradas precárias para os padrões do país: trabalhadores do setor de serviços, longas jornadas, baixos salários (algo como a metade do total gasto com aluguel de um quarto na cidade), pouca ou nenhuma proteção laboral, submetidos, por vezes, a um sistema de trabalho aqui chamado de “contratos de 0 hora” (0 hour contracts) [4].
Alguns deles chegam a argumentar que tal “flexibilidade” os beneficia, especialmente em um contexto em que o apelo à formação educacional constante dificulta encontrar um emprego com cargas horárias mais rígidas. No entanto, com aluguéis em alta e dívidas contraídas para financiar uma cara formação educacional, a conta não vem fechando.
Entre os britânicos nativos, filhos de uma geração que gozou das benesses do Estado Social, parte desses jovens trabalhadores foram condicionados a não pensar muito no futuro. Para os mais sortudos, a rede de proteção parental ainda é um benefício indireto. De qualquer forma, contando ou não com esse amparo, o pensamento dominante é o de que “enquanto der para pagar as contas, se vai levando”.
Mas há também a evidente frustração daqueles que percebem que os sonhos materiais mais previsíveis de gerações anteriores, como ter uma casa própria, ficam cada mais distantes. A preocupação com o desmonte do sistema de saúde às vezes aparece entre uma conversa e outra, assim como a reclamação do alto preço do transporte público. De modo consciente ou não, a incerteza e ansiedade quanto ao futuro vão se fazendo ver. Trata-se de uma geração que dificilmente terá condições de avançar ou mesmo reproduzir em pé de igualdade as condições de vida de seus pais.
Entre a enorme quantidade de imigrantes [5], seu histórico, condições de trabalho e consequentes expectativas quanto ao futuro são bastante variadas. Mas se compartilha também aqui do sentimento de preocupação com a rápida deterioração das condições de vida e trabalho, já que, em geral, é sobretudo neste setor onde tais mudanças primeiro se fazem sentidas. Dado seu grande contingente e certa integração social na vida do país, seus humores influenciam de maneira considerável o ambiente político, e aqui, novamente, sobretudo entre os mais jovens – que, em geral, estão entre os mais culturalmente integrados.
O número de pessoas em situações precárias de trabalho subiu mais de 25% nos últimos cincos anos. São casos em que, para além de baixos salários, não se há direitos trabalhistas e, quando se há, há medo de buscá-los. O reforço, celebração e difusão das formas de “auto-emprego” somam-se a este quadro. Junto ao processo de “uberização” crescente do trabalho, há situações extremas, mas não exatamente incomuns, em que tecnologias são utilizadas para controlar os aspectos mais específicos (e íntimos) da rotina dos trabalhadores – seu desempenho por hora, o que fazem, quantas vezes e por quanto tempo utilizam o banheiro, por exemplo.
Mas esta situação é, antes, produto de escolhas e ações políticas pregressas. Nos últimos quarenta anos, a chamada “modernização” da economia e do mercado de trabalho acelerou em meio a promessas de um futuro dinâmico e luminoso. A celebração da “nova economia” contribuiu para a redução dos benefícios e transferências sociais, para a privatização de serviços públicos e para o desmonte das proteções ao trabalho, como manda o receituário neoliberal. Tudo em nome da competitividade, integração e liberalização da economia britânica.
Durante alguns anos, a força da Libra e o barateamento relativo dos produtos importados de consumo básico, permitiu uma sensação de riqueza relativa. Mas a crise de 2008 trouxe à superfície a paulatina consolidação de uma realidade amarga: enquanto a maioria da população sofre com a queda real dos salários e o aumento do preço de serviços básicos, o setor financeiro prospera e a desigualdade avança rapidamente. A economia não cresce como esperado, o desemprego aparece, e os estímulos fiscais não têm sido mais suficientes. Para piorar, em uma combinação preocupante, com a recente queda da Libra devido as incertezas relativas ao Brexit, a inflação, aos poucos, vem subindo.
Surpresas e lições do processo eleitoral
Ignorando, de certo modo, as consequências políticas dessa realidade, e em um efeito que repete o que aconteceu com a convocação do plebiscito sobre a saída do Reino Unido da UE, a convocação de eleições gerais por Theresa May se mostrou um enorme erro de cálculo.
Depois de abraçar um discurso pró-Brexit após o resultado da consulta, o Partido Conservador, na figura de May, vinha crescendo em popularidade. O crescimento foi tal que a convocação de novas eleições, um golpe de oportunismo, prenunciava, por toda a parte, o ocaso do Partido Trabalhista – perdido em disputas internas, e até então dirigido por um líder impopular, Jeremy Corbyn.
Foi neste cenário, como um candidato desacreditado, e, dessa forma, com espaço suficiente para tocar com alguma liberdade sua própria campanha, que Corbyn apostou em um discurso forte, à esquerda do mainstream trabalhista, retirando o controverso Brexit do centro da agenda e focando em questões sobre as condições de vida e trabalho da maioria dos britânicos. Deu certo. O seu sucesso reforça, como pude argumentar em outras ocasiões [6], que o resultado do referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia estava antes vinculado a situação de desespero econômico de setores importantes da população, do que apenas ou centralmente a uma restrição generalizada aos imigrantes.
Mesmo em meio a dois atentados terroristas ocorridos durante o período eleitoral – e da aberta tentativa por parte dos conservadores de explorá-los politicamente – o tema tampouco adquiriu a centralidade que se pensou poderia obter. O direcionamento do debate eleitoral tinha contribuído irreversivelmente para canalizar a insatisfação generalizada para outros problemas.
Dado o feito surpreendente que alcançaram, findada as eleições, Corbyn e o Partido Trabalhista de nova retórica, mesmo sem obterem maioria no parlamento, saem como os grandes vitoriosos. May, apesar de vencedora em termos formais, responsável por uma inegável derrota política, enfrenta uma crise para compor seu gabinete. O futuro do país, e das negociações com a Europa sobre o Brexit, se torna ainda mais incerto.
Mas cabe aqui, novamente, analisarmos essa intrigante trajetória à luz da situação dos eleitores mais jovens, a maioria entre que os optaram por Corbyn.
Pesquisas mostram que eles estão entre os mais tolerantes à presença de imigrantes, e entre os mais reticentes a vincular terrorismo ao Islã. São os mais favoráveis à manutenção do país na União Europeia, e os mais abertos a questões como diversidade racial e de gênero. Em geral menos sindicalizados, são os mais conectados às mídias sociais, entusiastas de novas tecnologias, e os mais preocupados com questões ambientais.
Qualquer partido disposto a conquistá-los teria focado seu programa sobretudo nestes pontos: na construção de um programa liberal-cosmopolita, ambientalmente preocupado e diverso em questões culturais e de costumes. Foi o que fez o partido Liberal Democrático. Para a surpresa de muitos, não funcionou. O partido manteve mais ou menos o mesmo tamanho que tinha antes da eleição.
Distintamente, os mais jovens (e não apenas eles) optaram por Corbyn e pelo Partido Trabalhista, que fez das condições gerais de vida e trabalho das maiorias sociais a questão central de debate: da melhora sistema de saúde à nacionalização de ferrovias, do fim das cobranças de taxas em universidade à taxação de grandes riquezas. Se questões como responsabilidade ambiental e diversidade de gênero e racial não foram ignoradas, tampouco foram colocadas no centro da agenda. O mesmo aconteceu com o Brexit e a saída do país da União Europeia.
Pode-se dizer, então, que, mesmo apostando fortemente no diálogo com os jovens e em uma forte estratégia de divulgação nas mídias sociais, Corbyn fez uma campanha socialdemocrata típica: centrada na construção do Estado de Bem-Estar e na melhoria das condições de trabalho. O resultado foi não só o apoio dos mais jovens e o crescimento do Labour junto ao eleitorado como um todo, mas a eleição de um dos parlamentos mais representativos em termos culturais, raciais e de gênero dos últimos anos. Para os que, em ambos os lados, vem argumentando distintamente, o caso da eleição no Reino Unido reforça uma forte vinculação ou interdependência das agendas de redistribuição econômica às de representatividade e reconhecimento político.
Talvez esteja aí um farol para esquerda em outras paragens: sem abandonar as questões relativas aos costumes, diversidade cultural e igualdade de gênero e raça, é hora de trazer de volta à agenda a incontornável centralidade das condições material de vida e trabalho. Engajar-se, ainda que sem negar a importância e complementariedade das demais agendas, em um debate fale diretamente para as angústias mais urgentes das maiorias sociais – o que não significa, naturalmente, ignorar os anseios das minorias políticas.
O que vem por aí
No cenário pós-eleitoral, o ambiente político segue acalorado. Após o trágico incêndio ocorrido na Grenfell Tower, um prédio de moradias populares, a revolta social escalou mais um degrau. Isso porque o acidente, que já contabiliza 79 mortes, tem sido em parte creditado a políticos e demais autoridades que, além de promoverem cortes nas políticas públicas para o setor nos últimos anos, ignoraram as repetidas reclamações dos moradores sobre as condições precárias de moradia no local.
Com preços de imóveis e alugueis subindo, o país vive uma aguda crise de habitação; cresce o número de sem-teto. Em visita às famílias atingidas pela tragédia, Jeremy Corbyn propôs aos moradores ocuparam casas de luxo vazias, ao que, surpreendentemente, foi apoiado por parlamentares da ala direita de seu partido. Em alusão à tragédia, Clive Lewis, um parlamentar cotado como futuro líder do Partido Trabalhista, chegou a afirmar que o neoliberalismo era o que precisava de fato ser queimado. Theresa May, por sua vez, foi perseguida em seu carro por uma multidão enfurecida gritando “covarde”. Tudo isso apenas algumas semanas após a previsão de uma vitória eleitoral sem precedentes dos conversadores.
É difícil prever como este processo irá, em conjunto com as transformações no ambiente político regional e internacional, se expressar no próximo período. É legítimo, ademais, questionar a viabilidade do programa socialdemocrata de Corbyn – considerado impossível pela direita, e talvez tímido por setores da esquerda, sobretudo se comparado às propostas socialdemocratas de tempos não muito distantes. Fica a dúvida, ademais, a respeito de sua adequação diante da atual fase de desenvolvimento do capitalismo no Reino Unido, bem como frente à turbulenta conjuntura política e econômica regional e global.
Se Corbyn e o partido trabalhista representam ou não uma alternativa sólida e viável é algo ainda incerto, mas a relevância social do que vem ocorrendo na política do Reino Unido é tal que será fundamental seguirmos acompanhando de perto.
[2] Para um breve panorama que escrevi sobre a ascensão eleitoral de Corbyn às vésperas da votação, ler aqui: http://www.poder360.com.br/opiniao/opiniao/no-reino-unido-trabalhistas-crescem-com-discurso-a-esquerda-na-reta-final/. [3] Veja aqui o gráfico desta distribuição: https://yougov.co.uk/news/2017/06/13/how-britain-voted-2017-general-election/. [4] Trata-se do sistema em que os trabalhadores ficam à disposição de seus empregadores, e trabalham apenas quando, e se, chamados por mensagens e aplicativos de celular. Assim, são pagos somente pelas horas que trabalham, e, em alguns casos, sem os direitos e garantias extensivos aos demais trabalhadores. [5] Mais de 40% da população de Londres é composta por imigrantes não nascidos no país. Para mais dados sobre imigração ver: http://www.migrationobservatory.ox.ac.uk/resources/briefings/migrants-in-the-uk-an-overview/. [6] Aqui: https://blogdaboitempo.com.br/2016/07/02/brexit-o-reino-unido-sequestrado-pela-extrema-direita/, e aqui: https://blogdaboitempo.com.br/2016/07/28/o-brexit-e-as-esquerdas/.Edemilson Paraná é doutorando em Sociologia pela UnB (Universidade de Brasília), e atualmente pesquisador visitante na SOAS – University of London. É autor do livro ‘A Finança Digitalizada: capitalismo financeiro e revolução informacional’ (Insular, 2016).