A roda da História

Cena do filme “Germinal” (1993), de Claude Berri. Fotografia: Arquivo/Adorocinema

Lorena Holzmann

Às vezes, parece que a História está retrocedendo no tempo, virando as costas para o presente e mirando atentamente para o passado. Um passado mítico, no qual tudo estava no seu respectivo lugar, na posição que lhe correspondia segundo a ordem natural das coisas. Um passado rompido pela ação de forças contrárias a essa ordem, provocando desequilíbrios prejudiciais à estabilidade e à normalidade da vida social. Então, torna-se necessária a intervenção de agentes responsáveis pelo retorno ao status quo anterior, restituindo a paz ameaçada pelo caos.

O mundo capitalista globalizado, desde as últimas quatro décadas está percorrendo essa trajetória em marcha ré na esfera do trabalho. Há uma ameaça efetiva de retorno das classes trabalhadoras (integradas por todos que vivem do seu próprio trabalho, como assalariados ou como autônomos e que compartilham a mesma condição de não proprietários dos meios de produção) à situação vivenciada nos primórdios da sociedade urbano-industrial. Esse processo ocorreu primeiramente na Europa, a partir do século XVIII, expandindo-se posteriormente para outras regiões do mundo, sob a égide do capital. O elemento comum, independente do espaço e do tempo em que foi se instalando, foram as condições de extrema exploração que marcaram as relações entre trabalhadores e seus empregadores. Não havia, então, nenhuma legislação regulamentando as relações entre capital e trabalho e, sempre que houvesse mais oferta de trabalhadores do que postos de trabalho a serem ocupados, os empregadores tinham condições mais favoráveis de negociar a contratação de seus empregados. Os donos de fábricas podiam impor jornadas de trabalho sem limites legais, pagar o que lhes fosse conveniente, mantendo os salários deprimidos tanto quanto possível. As condições de contratação estavam dadas pelo mercado, sem nenhuma interferência regulatória: oferta/demanda de trabalho se constituíam recursos do capital e do trabalho para a obtenção de vantagens. Para os trabalhadores, quando a demanda era maior do que a oferta, e para os empregadores quando a oferta de trabalho superava a demanda.

Além disso, geralmente, as primeiras gerações de operários industriais não tinham experiência de ação coletiva na defesa de seus interesses, ainda não plenamente configurados na nova ordem social em que se integravam, embora houvesse episódios bastante frequentes de conflitos entre proprietários de terra e servos no feudalismo, sobre cujas ruínas se construiu a sociedade capitalista europeia.

Mas a reunião de um grande número de homens e mulheres num mesmo local – a fábrica – fez surgir condições propícias para a construção de identidade de interesses a partir das vivências partilhadas no local de trabalho e fora dele. Dessa identidade nasce a luta.

"I compagni" ('Os companheiros' no Brasil), lançado em 1963, com direção de Mario Monicelli e estrelando Marcelo Mastroianni. Fotografia: Arquivo/Wikipedia
“I compagni” (‘Os companheiros’ no Brasil), lançado em 1963, com direção de Mario Monicelli e estrelando Marcelo Mastroianni. Fotografia: Arquivo/Wikipedia

O cinema tem sido profícuo no registro dessas lutas. Podemos mencionar Os Companheiros (Mário Monicelli, 1963), Germinal (Claude Berri, 1993), A Terra Prometida (Andrzej Wajda, 1975). Cada uma dessas películas expõe a luta de operários em seus respectivos países, Itália, França e Polônia, diante da exploração e da insensibilidade dos patrões com a vida miserável de seus empregados, a organização, a luta, a tomada de consciência dos problemas e do interesse coletivo dos trabalhadores, suas lutas, vitórias e derrotas. Esses são elementos comuns às histórias contadas, independente do lugar e do tempo em que foram enfocados. Outras dimensões, igualmente recorrentes, fazem parte do processo de constituição da sociedade industrial. A unidade da classe trabalhadora nem sempre é alcançada, valendo-se o empresariado da divisão existente para solapar a ação coletiva em busca de melhores condições de vida e de trabalho. A consciência de classe não é um dado natural na história da humanidade, mas um processo de construção enraizado na prática coletiva.

A condição das mulheres trabalhadoras revestia-se de agravantes (ainda sobreviventes), decorrentes de sua vulnerabilidade diante do poder masculino, predominante na hierarquia das empresas e consagrada culturalmente fora do trabalho. O assédio e a cobrança de favores sexuais como condição para a manutenção do emprego são situações presentes nas narrativas fílmicas referidas, eventos não inteiramente superados na vida de trabalhadores. Ainda há muito a superar dessas concepções e práticas que servem à reprodução da sobre-exploração da mulher.

Ao longo do século XX, avanços consideráveis foram sendo obtidos, como resultado de

Poster do filme "Germinal" (1993), de Claude Berri. Fotografia: Arquivo/Adorocinema
Poster do filme “Germinal” (1993), de Claude Berri. Fotografia: Arquivo/Adorocinema

muitas lutas e, por vezes, acirrados confrontos entre trabalhadores e as forças legais de repressão, sempre a serviço da manutenção de uma ordem de interesse das classes dominantes. Em Germinal, a greve de mineiros, em Os companheiros e em A terra prometida, o movimento de paralisação dos trabalhadores em fábricas têxteis, formas de luta e resistência que, a partir da identificação de problemas comuns, foi levando à constituição e construção de uma consciência de classe. Como contraponto, as estratégias e artimanhas dos empresários, semeando a cizânia entre os trabalhadores, com o objetivo de dividi-los, e assim enfraquecer sua luta. E sempre, com o apoio das forças de repressão do Estado.

A história é semelhante onde quer que a sociedade industrial capitalista foi lançando suas bases. Há um conjunto de elementos universais que constituem a lógica do capitalismo, como se fosse a urdidura num tear, no qual as particularidades de cada situação histórica constituíssem a trama. As condições específicas em que se dá a implantação da lógica capitalista seriam a trama, do que resultaria, cada tramado, num exemplar único de constituição localizada dessa lógica.

Nesse andar de confrontos, de lutas, mas também de negociações, acordos, de conquistas, ao longo do século XX foi se constituindo um sistema de leis regulatórias das relações entre capital e trabalho, com distintas configurações em cada contexto nacional, resultado da distinta capacidade da classe trabalhadora se constituir como protagonista no espaço de tomada de decisões, fazendo aprovar medidas legais de seu interesse. Foi assim que se constituiu o Estado de bem estar social, no qual garantias foram asseguradas às classes não proprietárias, com distintas amplitudes em cada país, sempre como resultado da capacidade de intervenção dos trabalhadores na configuração legal das relações de trabalho e de benefícios a essa população.

Poster do filme "Ziemia Obiecana" ('A terra prometida' no Brasil), de 1975, com direção de Andrzej Wajda. Fotografia: Arquivo/Wikipedia
Poster do filme “Ziemia Obiecana” (‘A terra prometida’ no Brasil), de 1975, com direção de Andrzej Wajda. Fotografia: Arquivo/Wikipedia

Nesse contexto, filmes como os aqui referidos poderiam parecer obras relativas a um “tempo arqueológico” e também heroicos, tempos cruéis superados pelo avanço de um mundo mais civilizado, no qual a exploração do trabalho tivesse sido confinado em estreitos limites e a cidadania dos trabalhadores reconhecida, aceita e respeitada. Enfim, a tão propalada e desejada harmonia entre capital e trabalho, quase plenamente realizada nos 30 anos dourados do capitalismo entre as décadas de 1940 e 1970? Mas sobreveio uma crise aguda no processo de acumulação de capital (elas são cíclicas e inevitáveis) e sua reestruturação foi necessária para salvar o sistema. É aí que se fala na roda da História girando para trás. Tudo aquilo que foi conquistado ao longo de décadas aparece ao capital como obstáculo a seu processo de acumulação. E como tal, deve ser removido. Esse processo é universal, pois hoje a lógica do capital é global, ainda que sua agressividade seja distinta, nunca é demais destacar, em função de condições históricas da constituição daquele estado de bem estar e da capacidade política dos trabalhadores em preservá-lo.

Formas contratuais entre empregados e empregadores devem ser flexibilizadas, a fim de estimular os investimentos empresariais, gerando mais postos de trabalho, com resultados positivos para todos. A supressão de entraves à demissão de empregados possibilita às empresas adequar seu corpo funcional às flutuações da demanda do mercado, desonerando-se de obrigações rescisórias. As vantagens decorrentes para os trabalhadores constituem mero discurso enganatório empresarial e de governos, pois os empregos estáveis, de duração indeterminada e com cobertura de benefícios e uma relativa estabilidade, são modalidades em decréscimo diante do que se configura como trabalho precário. Há uma multiplicidade de modalidades contratuais que caracterizam o trabalho precário, como os contratos por tempo determinado ou por projetos ou por tarefas, assim como trabalho autônomo, tido no ideário neoliberal como empreendedorismo, espaço privilegiado da liberdade e da criatividade dos trabalhadores. A disseminação de subcontratações e da terceirização de atividades conduz ao enxugamento das empresas, superando a grande empresa verticalizada, que vai cedendo espaço à constituição de redes. Para os trabalhadores, o efeito tem sido o de fragmentar sua base, enfraquecendo sua capacidade de intervenção na definição de condições relacionadas ao exercício laboral.

No Brasil, a acelerada adoção de relações empresa/empresa devido à formalização individualizada de pequenos empreendedores na condição de pessoas jurídicas (PJ) que “prestam serviços” à empresa elimina toda a relação de assalariamento, referência da legislação laboral no país. Investigações enfocando inovações tecnológicas (de base eletroeletrônica substituindo a tecnologia eletromecânica na produção de bens e serviços, modificando de modo substancial a maneira de trabalhar e tornando obsoletos saberes laborais, excluindo do mercado de trabalho segmentos relevantes de homens e mulheres ) e organizacionais (inspiradas no convencionado “modelo japonês”) e seus efeitos para os trabalhadores têm evidenciado um aumento do desemprego e da exploração do trabalho, com repercussões danosas na saúde física e psíquica dos trabalhadores. Técnicas sofisticadas de adequação dos trabalhadores às exigências das empresas, como o coaching, têm se expandido nos mais diversos setores da economia e da vida, veiculando valores e atividades convenientes aos interesses das empresas. Tão eficazes que trabalhadores os adotam como se fossem de seu próprio interesse adotá-los.

As propostas de mudanças na legislação laboral e previdenciária em curso no Brasil representam grande ameaça ao frágil Estado de bem estar aqui constituído, assim como a possível perda da legalidade e relevância das leis laborais consagradas na CLT, já que a cláusula de validação do negociado sobre o legislado poderá ser aprovada. Com isso, os trabalhadores perderão todas as garantias até aqui obtidas, ficando à mercê das flutuações no mercado de trabalho e na possibilidade de participar na definição de suas condições contratuais. Num contexto de altas taxas de desemprego, hoje em torno de 12%, o poder de negociação dos trabalhadores fica quase inteiramente anulado, e o poder empresarial poderá se exercer sem travas legais.

Neste contexto, a perspectiva anunciada é de retorno a etapas passadas, se não nas condições abordadas nos filmes aqui referidos (os contextos nacionais e internacional são outros, e sua especificidade não pode ser desconsiderada), em condições perversas e de perdas do que já havia sido consolidado no país, nas últimas décadas. Então, falar na roda da História girando para trás, na contramão do processo de avanço civilizatório, não é uma visão apocalíptica, fantasiosa e pessimista de um futuro impossível, mas a construção de uma perspectiva delineada a partir de uma abordagem fática dos tempos modernos. Uma modernidade regressiva, voltada para o passado, na qual apenas uns poucos serão beneficiados.

Informações

Título: Os companheiros
Ano: 1963
Duração: 130 min.
País: Itália/França/Iugoslávia
Diretor: Mario Monicelli
Elenco: Marcello Mastroianni, Renato Salvatori, Gabriella Giorgell

Mais informações: IMDb, Wikipédia

Filme completo (legendas em português):

Título: A terra prometida
Ano: 1975
Duração: 179 min.
País: Polônia
Diretor: Andrzej Wajda
Elenco: Daniel Olbrychski, Wojciech Pszoniak, Andrzej Seweryn

Mais informações: IMDb

Trailer do filme (somente em polonês):

Título: Germinal
Ano: 1993
Duração: 160 min.
País: França/Bélgica/Itália
Diretor: Claude Berri
Elenco: Renaud, Gérard Depardieu, Miou-Miou

Mais informações: IMDb, Wikipédia

Trailer do filme (somente em inglês):

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