A revolução conservadora de Macron e a luta de classes

Intelectuais apelam a um engajamento cidadão para se opor à política do “cada um por si”.

Leneide Duarte-Plon 

Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 28/01/2020

O espírito francês de rebeldia e insurreição foi despertado por Emmanuel Macron com uma intensidade que ninguém tinha previsto.

Ele conseguiu suscitar uma revolta popular que começou com os coletes amarelos em novembro de 2018 e que continua com a greve mais longa da história recente do país (mais de 50 dias). No meio de janeiro, 60% dos franceses apoiavam a greve que reuniu as mais diversas categorias profissionais do setor público e do setor privado. Para defender a reforma das aposentadorias que vai ser votada, o governo tenta dividir os sindicatos e apontar como privilegiados os trabalhadores que vão perder regimes especiais.

A volta ao trabalho dos funcionários dos transportes parisienses (RATP) e dos ferroviários (SNCF) não significa desistência. As diversas profissões que se uniram em manifestações e piquetes continuam mobilizadas no combate ao projeto através de ações “coup de poing” como corte de eletricidade, bloqueio de portos, além de novas manifestações.

“É a realidade concreta do coletivo solidário que os poderosos deste mundo não querem mais ver”, disse o filósofo Jacques Rancière em uma fala aos ferroviários grevistas na Gare de Vaugirard, dia 16 de janeiro, em Paris. “Eles decidiram demolir esse edifício do coletivo peça por peça. O que eles querem é que não exista mais propriedade coletiva, nem coletivo de trabalhadores, nem solidariedade. Querem apenas indivíduos possuindo sua força de trabalho como um pequeno capital que aluga aos que detêm um capital maior”.

Rancière afirmou que “demolir o sistema de aposentadorias atual baseado na luta coletiva e na organização solidária será para os atuais governantes a vitória decisiva”.

Revolução liberal autoritária

Em um manifesto assinado por 472 intelectuais e publicado pelo jornal “Libération”, Emmanuel Macron é acusado de “desenvolver com seu governo uma revolução liberal autoritária sem precedente desde Margaret Thatcher”.

Os intelectuais apelam a um engajamento cidadão para se opor à política do “cada um por si”. Assinado por filósofos como Judith Butler, escritores, como Annie Ernaux e Gérard Mordillat, antropólogos como Didier Fassin, sociólogos como Monique Pinçon-Charlot, além de muitos historiadores, o texto lembra que o nome do livro de Macron que resumia seu programa de candidato se chamava “Révolution”.

Na realidade, seu programa era uma verdadeira revolução conservadora reafirmada em cada nova reforma ou resolução anti-social do governo, diz o manifesto. Existe, segundo o texto, uma verdadeira “destruição organizada das diversas funções públicas”, até mesmo do sistema de saúde francês, considerado o melhor da Europa.

“Hoje, é nosso dever preservar a civilização social originária das lutas do passado e do Conselho Nacional da Resistência (CNR)”, continua o texto que conclama todos os cidadãos a se unirem contra a revolução conservadora que promove o “cada um por si “eliminando o espírito da solidariedade que construiu o Estado de bem-estar à francesa.

O manifesto conclui que a revolução conservadora só poderá ser combatida e vencida se o “cada um por si” se transformar em “nós”.

Além de intelectuais, jornalistas, grevistas ou não, da mídia impressa e audiovisual, além de diversos sindicatos, também assinaram um manifesto publicado pelo jornal “Libération” para afirmar que repudiam o projeto do governo.

Luta de classes

“Les luttes de classes en France au XXIe siècle”, livro recém-lançado do demógrafo Emmanuel Todd veio trazer mais elementos para o debate político dos últimos meses.

Em longa entrevista ao “Libération”, Todd afirmou que “Macron reativa a luta de classes por seu desprezo pelo povo, tipicamente pequeno-burguês”. Segundo ele, a reforma das aposentadorias mais ainda que o imposto sobre a gasolina uniu a sociedade. Pela sua maneira de maltratar o povo, “Emmanuel Macron já tinha promovido a aproximação dos habitantes da periferia com os coletes amarelos”.

O demógrafo classifica de “sadismo social” a forma como as classes superiores tratam as classes populares : “A sociedade apenas reage às agressões da casta dirigente”.

Na interessante análise de Todd, os coletes amarelos são uma espécie de emanação do temperamento anarquista francês, reativam uma dimensão emocional que ele via em Maio de 68.

“O ciclo que se iniciou com os coletes amarelos anuncia o retorno da luta de classes e com ela a integração final dos filhos dos imigrantes de segunda e terceira geração. A identidade da França é a luta de classes. Mas para mim a luta de classes é o contrário da violência. A característica do econômico é que se pode negociar e evitar a violência enquanto que a instrumentalização dos “valores identitários” leva à histeria. Não se pode negociar valores ideológicos”, pensa Emmanuel Todd.

Uma coisa parece certa. Se o clima social continuar exacerbado até o fim do mandato de Macron, ele tem poucas chances de ser reeleito. A menos que o duelo com Marine Le Pen seja reeditado.

Num país que viveu sob a ocupação nazista e a colaboração do governo de extrema-direita de Vichy, esquerda e direita vão reeditar a frente republicana para vencer a peste fascista, como aconteceu no duelo Chirac-Le Pen, em 2002 e Macron-Marine Le Pen, en 2017.

Leneide Duarte-Plon é co-autora, com Clarisse Meireles, do livro Um homem torturado-Nos passos de frei Tito de Alencar (Ed. Civilização Brasileira, 2014) e autora de A tortura como arma de guerrra, da Argélia ao Brasil-Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado (Ed. Civilização Brasileira, 2016).

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