A reforma sindical na era Lula: pontos e contrapontos

Lula em evento de sindicalistas pela defesa da democracia e dos direitos sociais na Casa de Portugal, em 2016. Fotografia: Roberto Parizotti/CUT

Diante da não concretização da reforma sindical nos moldes necessários para a efetiva resistência do sindicalismo brasileiro em relação às investidas da economia neoliberal na seara trabalhista, evidenciou-se um aprofundamento da crise de legitimidade dos sindicatos, que já começara a ser atestada nos anos Lula.

Neto Tavares e Sabrina Colares Nogueira

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 14/04/2021

É inegável a contribuição do movimento sindical brasileiro para a chegada do Partido dos Trabalhadores à presidência do Brasil, bem como para sua permanência no poder ao longo de treze anos. Nesse sentido, vale mencionar a relação de proximidade entre a formação e fortalecimento do PT e do movimento sindical, uma vez que o partido tem suas origens políticas no chamado “novo sindicalismo”. Além disso, não restam dúvidas que, sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), houve um aumento do reconhecimento do sindicalismo como interlocutor do Estado.

É preciso destacar também que a gestão Lula manteve, em termos macroeconômicos, os padrões mundiais da economia globalizada, ou seja, o trabalho e o capital enquanto forças centrais da economia, estabelecendo, ao mesmo tempo, novos canais de participação e políticas sociais de combate à extrema pobreza.

Nesse contexto, Fernanda Forte de Carvalho e Hermes Augusto Costa, destacam que, no governo do PT de 2003 até 2016, em certa medida o movimento social organizou-se para instituir uma “agenda pelo desenvolvimento”, em parceria com outros atores sociais.

No entanto, também houve o afastamento entre as cúpulas dirigentes do poder executivo e as bases dos trabalhadores, resultando, por sua vez, na incapacidade de resistência sindical aos ataques promovidos pelo grande capital que controla a economia globalizada.

O governo federal na época instituiu o Fórum Nacional do Trabalho, órgão vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego, que estava previsto no Programa de Governo de Lula. Os resultados da implementação deste fórum foram entabulados no Projeto de Emenda Constitucional nº 269/05 e no Anteprojeto de Lei de Relações Sindicais, enviados ao Congresso Nacional em março de 2005, e que se tornaram a referência da proposta de reforma sindical na era Lula.

No entanto, foram feitas diversas críticas aos principais pontos da reforma sindical: representatividade, autonomia e exercício de direitos. Isto porque, conforme aponta Ricardo Antunes[1], no contexto da reforma sindical, trabalhadores, empresários e governo, todos escolhidos pelo PT, negaram a autonomia, a liberdade e a independência sindical.

Pontos e contrapontos da proposta de reforma sindical no governo lula

No início do governo Lula, havia uma certa indefinição quanto à possibilidade de reversão, de redução ou manutenção do processo de flexibilização trabalhista, o qual foi posto em prática, no Brasil, principalmente, no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Em um primeiro momento, a primeira hipótese (a de reversão) parecia estar correta, na medida em que o governo petista suspendeu a tramitação de dois projetos de lei, herdados do governo anterior, que iam ao encontro da flexibilização das leis de proteção do trabalho.

Também foi revogada uma medida legal que inibia a atuação de fiscais do trabalho, impedindo-os de multar empresas que descumprissem acordos e convenções coletivas e de denunciar acordos contrários à legislação trabalhista.

Ao mesmo tempo, porém, algumas declarações do então presidente e de seus ministros contribuíram para desacreditar a hipótese de contraposição à flexibilização: o então ministro do Trabalho e Emprego, Jacques Wagner, admitiu a possibilidade de rever direitos, e, entre eles, a multa de 40% sobre o saldo do FGTS quando da demissão sem justa causa e associou direitos a penduricalhos, sinalizando, em parte, concordar com o tratamento preconizado pelos neoliberais para o problema do desemprego (GALVÃO, 2007)[2].

O próprio ex-presidente Lula deu declarações que permitiam entrever um futuro processo de flexibilização nas regras de proteção ao trabalho:

É preciso adequar tanto a estrutura sindical, quanto a própria legislação trabalhista ao momento que nós vivemos […] a solução dos problemas da sociedade brasileira passa pelo fato de vocês [sindicalistas] se entenderem. Para discutir desde a geração de postos de trabalho a direitos que têm que ser mantidos. Outros têm que ser reformulados. Há tratamentos diferenciados entre empresas, em função dos seus tamanhos. (GALVÃO, 2007).

Nessa monta, quanto ao sindicalismo mais especificamente, o governo Lula iniciou discussões em 2003, no Fórum Nacional do Trabalho, pela reforma sindical, dizendo ser necessário primeiro fortalecer os sindicatos para, depois, negociar a reforma trabalhista (GALVÃO, 2007).

Este Fórum, criado pelo Decreto n. 4.796, de 30 de julho de 2003, teria por objetivo promover a democratização das relações de trabalho através da adoção de um modelo de organização sindical, baseado em liberdade e autonomia. A ideia era legitimar a proposta de reforma sindical através da participação de representantes do governo, de empresários e trabalhadores.

Contudo, embora fosse considerada prioritária pelo governo, tal reforma não avançou. Apesar de aparentar ser fruto de um consenso, o projeto de reforma sindical impunha entraves à liberdade e autonomia sindical, ao passo que:

a) em primeiro lugar, impunha rígidos critérios de representatividade para que as entidades sindicais pudessem adquirir personalidade jurídica, tais como: número mínimo de filiados, e, no caso do sindicato de trabalhadores, 20% de sua base de representação;

b) em segundo lugar, a intervenção estatal se daria por meio da atribuição de personalidade sindical aos que preenchessem os requisitos de representatividade: o Estado, por meio do Conselho Nacional de Relações de Trabalho (CNRT);

c) em terceiro lugar, a intervenção estatal se manifesta através da definição de um estatuto padrão para os sindicatos com direito de representação exclusiva. Ou seja, a proposta de reforma não acabaria com a unicidade sindical, mas sim introduziria um pluralismo restrito, haja vista que conferia aos sindicatos formalizados antes da promulgação da lei o direito de manter a exclusividade de representação.

Destaca-se, nessa conjuntura, que o argumento de que estas medidas impediriam os sindicatos de carimbo não se sustenta, uma vez que, a partir desta reforma, seria possível compor artificialmente a representação sindical com a ajuda patronal e governamental (GALVÃO, 2007). Ora, o principal requisito para que os sindicatos defendam, efetivamente, os interesses dos trabalhadores está em assegurar a estes os mecanismos de real representatividade. A intervenção estatal, assim, além de não assegurá-los, impacta negativamente na forma de organização dos trabalhadores, eis que cria-se um coletivo artificial.

É dever do Estado, logicamente, intervir para regular o contrato de trabalho, impondo limites ao poder do capital em explorar a força de trabalho, não lhe competindo, entretanto, atuar e determinar o modo de organização sindical sob pena de entravar a sua autonomia.

Nesse caso, vale destacar:

Os princípios da autonomia/independência sindical podem ser postos em causa quando se tem em conta a relação com os partidos políticos. Aliás, não será forçado afirmar que os sindicatos e os partidos políticos se encontram interligados há séculos, podendo mesmo ser apelidados de “gémeos siameses”. (EBBINGHAUS, 1995, apud ESTANQUE; COSTA; SILVA, 2015, p. 14)[3]

Outra questão a ser discutida refere-se à forma de manutenção econômica dos sindicatos, pois o projeto inicial da reforma sindical não propôs uma alternativa à contribuição compulsória, apenas substituía seu modo de estabelecimento, isto é, esta nova contribuição incidiria sobre os destinatários da negociação coletiva, sejam eles filiados ou não à entidade sindical.

Um outro contraponto que precisa ser feito é o da criação e fortalecimento das centrais sindicais, isto porque, ao garantir uma fonte de financiamento compulsório e, portanto, fortalecer as centrais e direções sindicais ligadas ao governo, houve, por outro lado, a submissão de outras tantas, na medida em que a dependência dos recursos financeiros assegurados pelo Estado pôde domesticar os sindicatos (GALVÃO, 2007).

Deu-se, por consequência, a cooptação de dirigentes, uma vez que as medidas propostas neutralizaram as correntes críticas ao governo, o que vai de encontro com a essência, objetivos e deveres do movimento sindical.

Por fim, outro importante aspecto acerca das contradições relativas ao movimento sindical no governo Lula refere-se à regulamentação do direito de greve. Diferentemente do regramento vigente à época da propositura da reforma sindical, a proposta apresentada majorava o conjunto de exigências e de penalidades relativas ao exercício de direito à greve. Graça Druck, sobre esta questão, pontua:

A exigência de comunicação da greve com antecedência de 72 horas ao empregador e a obrigação de garantir a continuidade dos serviços, ou seja, evitando assim danos às pessoas ou prejuízo irreparável pela deterioração irreversível de bens, importa em restrição ao direito de greve. (DRUCK, 2006, p. 336)[4]

Assim, partindo dessa proposta, a liberdade de greve enquanto forma de luta e de resistência à exploração capitalista estaria limitada, o que, por sua vez, gera sérias limitações às ações sindicais.

Aliado a este complexo quadro de contradições relativas à reforma sindical, o Partido dos Trabalhadores sofreu, em 2005, um grave processo de desmoralização em razão da crise política e econômica iniciada no Brasil.

O movimento sindical brasileiro, em meio ao paradoxo vivenciado durante os anos Lula, afundou-se numa crise que abarca sua representatividade, seu financiamento, o exercício dos direitos correlatos (como o de greve) e, portanto, sua capacidade de resistência à exploração neoliberal, demandando, pois, novas alternativas ao sindicalismo.

Alternativas à crise sindical brasileira

Diante da não concretização da reforma sindical nos moldes necessários para a efetiva resistência do sindicalismo brasileiro em relação às investidas da economia neoliberal na seara trabalhista, evidenciou-se um aprofundamento da crise de legitimidade dos sindicatos, que já começara a ser atestada nos anos Lula.

Os sindicatos continuam a enfrentar diversas dificuldades para organizarem-se e formalizarem-se juridicamente; a classe trabalhadora, de seu lado, não se sente representada em razão da rígida e burocrática hierarquia sindical, que, inclusive, não se adaptou aos novos meios de comunicação (como as redes sociais virtuais), impedindo, assim, o pleno exercício dos direitos coletivos.

Por esse ângulo, a título de ponderação, cabe mencionar:

Há uma mutação muito profunda nas relações de trabalho – e não é fácil para os sindicatos, que antes lideravam milhares de trabalhadores dentro da fábrica, enfrentar um capital financeirizado, esparramado e horizontalizado. É uma somatória de mutações que atingiram a subjetividade e a materialidade da classe trabalhadora. (ANTUNES, 2019)[5]

Diante deste cenário, faz-se importante a busca de alternativas que visem à recomposição do sindicalismo brasileiro, uma vez que este é elemento basilar na defesa da classe trabalhadora, a qual vem sofrendo inúmeras derrotas frente a projetos neoliberais que só recrudesceram após os governos do Partido dos Trabalhadores.

Por este prisma, a autonomia sindical – já desbotada nos anos em que o PT esteve à frente da presidência brasileira – precisa ser resgatada. A desburocratização e maior horizontalidade nas esferas decisórias dos sindicatos é parte essencial nesse processo de retomada de um sindicalismo autônomo em relação ao poder político estabelecido nas instâncias estatais.

As direções sindicais, portanto, precisam se modernizar e rejuvenescer, ou seja, abrir espaço ao pensamento jovem na tomada de decisões e escolhas para as respectivas categorias, abarcando as tendências minoritárias. A exemplo do que se tenta propor em Portugal, a renovação nos sindicatos não pode deixar de fazer alusão ao sindicalismo de movimento social (ESTANQUE, COSTA e FERREIRA, 2002; ESTANQUE e COSTA, 2011). Ou seja, entende-se que, para a defesa de uma “cidadania fora do espaço da produção”, é necessário  que o movimento sindical articule-se com outros movimentos sociais progressistas, como, por exemplo, os movimentos de consumidores, ecológicos, antirracistas, feministas, dentre outros (SANTOS, 1995)[6], exigindo o deslocamento da resistência sindical para a “articulação com estes outros movimentos”, em busca de uma “cultura democrática de cidadania ativa para além da fábrica” (SANTOS, 1995, pp. 135, 139).

Sabe-se que o êxito do capitalismo financeiro sobre a economia produtiva impera neste momento nas sociedades e, por conseguinte, reflete no mundo das redes. Logo, conforme aponta Manuel Castells, os sindicatos na “Sociedade em Rede” somente terão êxito se conseguirem se adaptar às novas formas de produção, distribuição e gestão das empresas:

A economia em rede (conhecida até esta altura como “nova economia”) é uma nova e eficiente forma de organização da produção, distribuição e gestão, que está na base do aumento substancial da taxa de crescimento da produtividade nos EUA, e em outras economias que adotaram estas novas formas de organização.

[…] Estas redes são quem contrata e despede trabalhadores a uma escala global. Seguem a instabilidade global do mercado de trabalho em todo o lado, a necessidade de flexibilidade do emprego, a mobilidade do trabalho e a constante requalificação da respectiva força. (CASTELLS, 2005, p. 20-23)[7]

Torna-se essencial, dessa maneira, a abertura do sindicalismo para as tendências contemporâneas, pois elas estão em diálogo com o mundo laboral que muda em ritmo acelerado. As propostas delineadas, vale salientar, são apenas pequenos exemplos de um vasto universo de possibilidades relativas à renovação sindical brasileira.

Diante do exposto, é possível afirmar que, mesmo com um governo progressista à frente do poder político, o reconhecimento das pautas relativas ao mundo do trabalho não está garantido; ao contrário, o que pode ocorrer é a cooptação dos cargos de comando das organizações de proteção ao trabalho e, por consequência, o enfraquecimento do seu poder de contestação.

Nesse cenário de crise pelo qual passa o mundo laboral, cabe aos sindicatos a assunção do lugar de sujeitos coletivos, para que possam atuar no sentido da mudança do domínio econômico sobre o trabalho, sendo então possível produzir respostas aos trabalhadores nesse novo sistema produtivo.

Por este prisma, “é necessário que os sindicatos tenham abertura para se dirigir ao Estado com a finalidade de assegurar a relevância de uma economia moral, ou seja, para que possam participar da sociedade civil” (HYMAN; GUMBRELL, 2001, p. 16)[8].

Os dirigentes sindicais – que são em sua maioria homens que se perpetuam nesses cargos e cujas ideias estão ligadas à concepção do trabalho fabril – precisam conhecer tanto o novo mundo do trabalho quanto o novo mundo dos movimentos sociais a fim de que possam com eles dialogar.

É de extrema importância, assim, que os sindicatos se articulem em redes e engajem-se politicamente para além das pautas econômicas, utilizando-se das novas tecnologias de comunicação/informação e reaproximando-se das bases (escanteadas, por exemplo, ao longo dos governos do PT), bem como atraindo novos integrantes que dialogam com as pautas identitárias. Todo este processo permitirá a reconstrução dos laços de solidariedade, tão essenciais e caros às lutas coletivas que visam a emancipação pelo trabalho.

Notas

[1] ANTUNES, Ricardo. Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo. 2006.

[2] GALVÃO, Andréia. Reformas ou Contra-reformas? As reformas sindical e trabalhista do governo Lula. XXVI Congreso de la Asociación Latinoamericana de Sociología. Asociación Latinoamericana de Sociología, Guadalajara. 2007.

[3] COSTA, Hermes Augusto; ESTANQUE, Elísio; FERREIRA, António Casimiro.(Orgs) Prefácio. Revista Crítica de Ciências Sociais, 62. Volume temático sobre “Sindicalismo e relações laborais”, 2002.

[4] DRUCK, Graça. Os Sindicatos, os Movimentos Sociais e o Governo Lula: Cooptaçao e Resistência. In OSAL, Fernandez. Observatorio Social da América Latina, ano VI n° 19. Buenos Aires, Argentina. Julho 2006.

[5] ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho. Coimbra: CES/Almedina, 2019.

[6]SANTOS, Boaventura de Sousa. Teses Para Renovação do Sindicalismo em Portugal, Seguidas de um Apelo, Vértice, 1995.

[7] CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

[8] HYMAN, Richard; GUMBRELL, Rebecca. Understanding European Trade Unionism: between market, class and society. London: Sage. 2001.

Neto Tavares é advogado, doutorando em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

Sabrina Colares Nogueira é doutora e mestra em Direito Trabalhista. Advogada e professora.

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