Apesar de se apresentar como uma forma de combater a concentração, a PEC é o contrário do que se finge ser.
Ana Luiza Matos de Oliveira
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 07/06/2021
Na discussão sobre a reforma administrativa, a desigualdade só é lembrada quando erroneamente tentam apresentar o servidor como um privilegiado. Mas em um país internacionalmente reconhecido por enormes desigualdades, é absurdo que este não seja o ponto central não só desta, mas de qualquer reforma que pretenda melhorar o país.
Para discutir como a reforma administrativa proposta pelo governo Bolsonaro, por meio da PEC 32/2020, amplia desigualdades, gostaria de tratar de um mito recorrente sobre a atuação do Estado brasileiro: o de que o gasto social (ou a política pública) aumenta a desigualdade. Será isso verdade?
É notório que o sistema tributário brasileiro hoje atua concentrando renda. É verdade. No entanto, o Estado brasileiro ao realizar gasto social, em especial o gasto com educação, saúde e o Regime Geral da Previdência Social, tende a reduzir a concentração de renda, como mostram diversos estudos (exemplos aqui e aqui). Qualquer discussão sobre desigualdade e serviço público, para além de discutir a renda dos servidores, precisa incorporar o papel fundamental desses trabalhadores na redução das desigualdades sociais no país como chave para prover direitos.
Assim, ficam algumas perguntas para o governo (que não trouxe para a população, até hoje, as análises de impacto da PEC). Qual o impacto da PEC 32/2020 na provisão de direitos sociais? Qual o risco para os direitos sociais a partir das alterações propostas com a privatização da política social (Art. 37-A)? Qual o risco da continuidade de serviços se o presidente ganha superpoderes para acabar com órgãos e cargos (Art. 84) e se cresce a precarização no serviço público (Art. 39-A)? Em resumo, como a PEC 32/2020 afetará os direitos constitucionais já previstos no Art. 6 da Constituição?
Reconhecidamente, no Brasil há uma feminização da pobreza, assim como a população negra também está mais vulnerável à pobreza por razões históricas e por isso também é mais dependente dos serviços públicos. A redução dos serviços públicos pode levar as desigualdades a crescer, já que há diferenças significativas entre ser de classe alta ou baixa, do Norte/Nordeste ou do Sul/Sudeste/Centro-Oeste, branca ou negra/indígena etc. Para cada um desses grupos, a importância da provisão pública de direitos sociais é diferente, mas reduzi-los é cortar necessariamente da carne dos mais vulneráveis. Engana-se quem acha que a PEC vai aprimorar o serviço público entregue aos mais pobres: nela não há uma linha sobre modernização, ampliação de investimentos ou uma proposta de avaliação de desempenho, só propostas de precarização.
Há outro mecanismo, ainda, que pode afetar as desigualdades através da reforma. Antón & Bustillo (2015), examinando o caso espanhol, ponderam que as desigualdades salariais de gênero são mais altas no setor privado que no setor público e consideram que reduzir o emprego público de forma estrutural (como o quer a reforma por aqui) pode ampliar as desigualdades de gênero. E sobre a questão racial, Negreiros, Faria e Gomor (2020) apontam que há um movimento de usar a agenda de uma suposta preocupação com a desigualdade de gênero e racial para apoiar a destruição do Estado através da PEC e ampliar a precarização. Em especial, a diferenciação feita pela PEC entre carreiras de Estado e contratos por tempo indeterminado preservaria justamente as carreiras onde há mais brancos (as que se entendem como “de Estado”) enquanto precarizaria carreiras em que os negros são mais presentes (além de ser os maiores beneficiários de muitas das políticas sociais, como já exposto).
Elomäki (2019) defende que reformas administrativas ocorridas na Finlândia, inspiradas no arcabouço da austeridade, contribuíram para a ampliação de desigualdades de gênero. Por lá, a reforma – apresentada como “técnica” e “como único caminho possível” – forçou a posterior adoção de medidas que ampliaram desigualdades de gênero. Por aqui, desde a Emenda Constitucional 95/2016 (EC 95/2016), estamos no disco furado das reformas que não se preocupam com seus impactos na ampliação das desigualdades. A própria EC 95/2016 teve impactos altamente deletérios na desigualdade.
Durante a pandemia, a ação do Estado na provisão de direitos sociais se fez ainda mais importante. Impactos duradouros da pandemia são esperados no Brasil e criam desafios para a política social. Mesmo antes da pandemia, havia uma necessidade crescente de intervenção pública para garantir a Agenda 2030. A pandemia aumentou a pobreza e a desigualdade na América Latina e por isso novas políticas públicas terão que ser desenhadas, não cortadas, reduzidas, precarizadas. Isto se queremos um país menos desigual, é claro.
Apesar de se apresentar como uma forma de reduzir desigualdades, a PEC é o contrário do que se finge ser. Se aprovada, tenderá a criar mais precarização e mais desigualdade e em um contexto de extrema vulnerabilidade para a sociedade brasileira.
Ana Luíza Matos de Oliveira é coordenadora-geral da Secretaria Executiva da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público (Frente Servir Brasil) e doutora em Desenvolvimento Econômico.