Antonio Baylos
Tradução: Daniela Kern
A União Europeia se desligou abruptamente do ambicioso projeto político que sustentava, compatibilizar a lógica do mercado e das liberdades econômicas com um amplo espaço de gozo de direitos políticos e sociais, e o substituiu por um desenho de subordinação global da política ao poder enorme, invisível e supranacional do capital financeiro, afiançado sobre um esqueleto fortemente autoritário. Os governos dos países europeus – com mais ímpeto os conservadores, mas sem que os social-democratas tenham podido escapar dessa tendência – seguiram ao pé da letra as instruções dos grandes bancos em uma política de austeridade expansiva que implicou na destruição de milhares de postos de trabalho, na degradação dos direitos trabalhistas, na redução da proteção social e no empobrecimento da população em geral. As políticas colocadas em prática de forma unânime consideram o incremento da desigualdade social como condição para gerar “a riqueza das nações”. Mas, além disso, garantiram normativamente, através de medidas de aplicação geral sem enquadramento jurídico comunitário – isto é, fora dos canais da legalidade europeia –, a manutenção do equilíbrio orçamentário e a redução radical do gasto público e social, condicionando as ajudas econômicas para o financiamento da dívida soberana à manutenção dessas políticas. Nos países mais submetidos, por terem uma maior porcentagem de financiamento privado, houve a indução à troca da constituição e à introdução da regra de proibição do déficit público, enquanto que em outros foi imposto um governo técnico dirigido por pessoas de confiança das finanças globais. A autonomia da política, que implica na capacidade dos povos de eleger as linhas gerais da atuação pública, ficou anulada.
A questão é mais grave naqueles ordenamentos internos, como no caso espanhol, em que o momento eleitoral furtou à cidadania o conteúdo das medidas políticas que seriam adotadas. A relação que o momento representativo eleitoral estabelece entre o programa de governo e os cidadãos que votam no partido que o sustenta não se constituiu corretamente no caso espanhol. Os espanhóis que votaram no dia 20 de novembro de 2011 para que o governo saído das urnas tomasse decisões vinculantes para a generalidade da população o fizeram a partir de premissas falsas ou inexistentes. O mecanismo democrático foi irremediavelmente danificado.
Por isso é necessário exigir medidas que corrijam essa lesão profunda dos procedimentos básicos da formação da vontade popular em um sistema democrático. Os sindicatos mais representativos e a cúpula social de 250 organizações sociais reivindicaram a convocação de um referendo no qual os cidadãos espanhóis possam expressar, desta vez claramente, sua decisão soberana sobre as políticas postas em prática pelo Partido Popular. Esta forma de participação que corrige os desvios políticos que podem se dar entre uma representação parlamentar discordante com a vontade majoritária dos cidadãos, articula-se tecnicamente de diferentes formas, mas uma das mais conhecidas é a do referendo derrogatório. Na Itália, um partido ou coalizão de partidos com representação parlamentar pode impulsionar a convocação de um referendo que derrogue normas aprovadas pelo parlamento sempre que recolher uma quantidade notável de assinaturas de apoio de cidadãos. O modelo italiano garante a primazia das maiorias sociais de rechaço a normas em vigor aprovadas pelo parlamento que se consideram contrárias à vontade cidadã. É um modelo mais garantidor da soberania da política democrática.
Essa referência é apropriada porque na Itália foi posto em marcha um referendo para derrogar duas modificações centrais da legislação trabalhista derivada da crise. A primeira, a introdução no sistema jurídico italiano – obra do último governo Berlusconi – da “negociação coletiva de proximidade”, de acordo com a qual qualquer acordo ou convênio de empresa pode derrogar ou não aplicar a regulamentação do convênio de setor ou da normativa estatal sobre qualquer condição de trabalho. A segunda, e mais conhecida, a modificação do artigo 18 do Estatuto dos Trabalhadores italiano, obra do governo “técnico” de Monti, que debilita e deixa sem efeito a reintegração forçosa do trabalhador despedido no caso de demissão objetiva ou por motivos econômicos que se declare improcedente.
O significado desses dois preceitos é claro. Pretende-se recuperar a função normativa e vinculante da negociação coletiva gestionada sindicalmente, sem que a atomização do coletivo mediante a crise funcione como variável independente do ordenamento sindical de fato. E o valor simbólico do art. 18 do Estatuto dos Trabalhadores tem a ver diretamente com a garantia da estabilidade no emprego enquanto eixo de um trabalho respeitado e valorizado como centro da sociedade.
Isso implica em apresentar ao futuro governo italiano, que sairá das urnas em abril de 2013, um dilema fundamental que se expressa em uma relação de contraste entre a soberania democrática e popular – a decisão majoritária de reestabelecer linhas claras no desenho constitucional do trabalho – e a soberania dos mercados financeiros e da troika, que consideram irrelevante a garantia dos direitos trabalhistas e sociais e condicionam o refinanciamento da dívida italiana ao colocar em prática políticas neoliberais de restrição de direitos e liberdades.
Por isso, aqui e ali, em todas as partes, a luta pela defesa do valor político do trabalho com direitos se une diretamente à recuperação da democracia e da capacidade dos cidadãos de decidir a política que se ajuste à economia e à sociedade.
Antonio Baylos é Doutor em Direito pela Universidad Complutense de Madrid; Professor Catedrático de Direito do Trabalho e Seguridade Social na Universidad de Castilla La Mancha – Madrid; Diretor do Departamento de Ciência Jurídica da Facultad de Derecho y Ciencias Sociales de Ciudad Real; Diretor do Centro Europeu e Latino-americano para o Diálogo Social (CELDS).