Talvez esse contexto histórico da pandemia da Covid-19 possibilite aclarar o impacto da contrarreforma trabalhista e previdenciária no bojo das reformas neoliberais que ofendem a dignidade da pessoa humana nas últimas três décadas.
Genilson C. Marinho
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 29/04/2020
Indiscutivelmente as medidas educacionais colocadas em prática nesse período de quarentena da pandemia da Covid-19 trouxeram novas reflexões a pesquisadores e profissionais que atuam na Educação, sobretudo em função da ausência de postura democrática, expressa nas propostas apresentadas como uma forma de cumprir o calendário escolar previsto para 2020.
Contudo, dentre as medidas formuladas condicionais à suspensão das atividades presenciais, destacam-se a adoção e a contratação de ferramentas digitais visando instrumentalizar a Educação a Distância (EAD) nas escolas da educação básica públicas e privadas.
As entidades que historicamente defendem a escola pública, gratuita, estatal, laica e de qualidade social ficaram à margem do debate central do direito à educação e se posicionaram contrárias. Para a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE) ficou bastante evidente que os interesses econômicos se sobrepuseram em muitas medidas emergenciais, pois excluíram educadores/as e estudantes/as desse importante debate.
Talvez esse contexto histórico da pandemia da Covid-19 possibilite aclarar o impacto da contrarreforma trabalhista e previdenciária no bojo das reformas neoliberais que ofendem a dignidade da pessoa humana nas últimas três décadas. Os/as trabalhadores/as em educação têm sido brutalmente afetados por uma ofensiva conservadora, retirando direitos trabalhistas, direitos à alimentação, à saúde e o direito à liberdade de cátedra, enquanto exacerbam as desigualdades de gênero, raça e econômica.
Estas medidas têm vilipendiado a classe trabalhadora e, principalmente, a categoria do magistério público do Brasil, iniciada mundialmente nos anos 1970, continuaram com força num cenário de desaceleração econômica em resposta à crise estrutural do capital.
Uma consequência das medidas adotadas pelas políticas neoliberais foi o aprofundamento das desigualdades socioeconômicas na sociedade brasileira, com impactos desproporcionais, sobretudo para aqueles já em situação de vulnerabilidade em decorrência da aprovação da Emenda Constitucional N.º 95/2016, denominada “ PEC da morte”, congelando os investimentos sociais por 20 anos, reduzindo concursos públicos e achatando os reajustes salariais.
Sob as mais diferentes nuances e perspectivas, medidas regressivas em nome da austeridade fiscal, contribuíram ativamente para a criação de um número cada vez maior de empregos de estatuto precário no campo educacional. Milhares de profissionais da educação vivenciam condições desprovidas de direitos e em condições de instabilidade cotidiana, dada pelo trabalho temporário, eventual, contratos de tempo parcial, por hora, entre outros.
Vivemos um novo padrão de organização denominado de “uberização do trabalho” (ANTUNES, 2019; POCHMANN, 2016). Na era digital a realidade contemporânea, desprovida de direitos, mascara a falsa ideia de empreendedores em plena apologia dos smartphones e dos aplicativos como Uber, iFood, 99, Uber Eats e tantos outros, do movimento geral do capital, onde o lucro predomina perigosamente sobre o valor da vida.
Os efeitos perversos sob as quais os/as trabalhadores/as das redes estaduais e municipais da educação básica estão inseridos são preocupantes. Eles são contratados de acordo com as necessidades eventuais do poder público e arcando com a transferência de custos e riscos, distintamente do que caracteriza a relação salarial segura presente no setor público, tendo impactos óbvios na saúde e qualidade de vida dos docentes.
Tal situação, de acordo com pesquisas da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE), ocasionam sobrecarga psíquica responsável pelo estresse, por doenças e perturbações que vão do esgotamento à hipertensão e de depressões a até neuroses e psicoses. Há ainda os que ocasionam problemas físicos provocados pela falta de exercícios e de alimentação adequada, o que tem permitido caracterizar um quadro de doenças profissionais da categoria do magistério.
Mas como frisamos inicialmente, as proposições educacionais referentes às medidas a serem tomadas contra a pandemia da COVID-19, encarnou uma escola distante da situação real, pois além dos problemas estruturais das escolas, todo início de ano letivo temos falta de docentes nas redes públicas (estaduais e municipais).
O problema não é novo e se repete todo ano. É grande o número de professores “readaptados”, afastados temporária ou permanentemente para atividades administrativas, ou afetados por alguma doença, outros sobrecarregados pelos diferentes afazeres e salários baixíssimos, abandonam a docência e, por último, temos docentes que anteciparam a aposentadoria em virtude das recentes reformas.
De modo geral, jamais em nossa história nos sentimos tão fragilizados que, por sinal, não se trata de nenhuma novidade, mas devido a este momento de tanta perplexidade, alcançou uma dimensão extraordinária, expondo a necessidade de investir fortemente em educação, seja do ponto de vista de acesso aos insumos tecnológicos, seja por problemas de desemprego e profundos cortes na renda familiar, cuja condição existencial encontra-se precarizada ao ponto de serem descartáveis.
Parece que a oferta de formação continuada dos docentes não está posta em questão, pois a situação atual do processo de precarização docente rege-se cada vez mais pelo modelo que o docente é cumpridor de tarefas, deixando de ser considerado sujeito pensante, perdendo sua autonomia intelectual.
Então, como exigir de um profissional que perdeu sua capacidade de pensar e refletir? Como transformar aulas presenciais para aulas mediadas por diferentes tecnologias no contexto da COVID-19? As medidas governamentais para o enfrentamento da pandemia vêm procurando manter os contratos precários sem garantias trabalhistas?
Neste contexto, a resposta tem sido dada segundo este viés de mercantilização. Empresas, corporações e fundações que participaram ativamente no processo de elaboração e implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no Ensino Fundamental e no Ensino Médio, estão adaptando suas assessorias técnicas e ofertando suporte a distância para viabilizar a aprendizagem remota.
A este respeito, não é exagero afirmar que as medidas emergenciais podem transformar o trabalho remoto em modalidade EAD na educação básica, um antigo desejo dos grupos que se vinculam às fundações Roberto Marinho, Instituto Itaú, Instituto Ayrton Senna, Fundação Lemann entre outras. Segundo Andreas Schleicher, principal responsável do relatório PISA da OCDE, comentando sobre o cenário pós-pandemia, afirmou que os “professores terão que mudar seu jeito de ensinar depois da quarentena”(2020). Para ele num cenário de grave crise econômica e crises correspondentes, a educação remota será crucial, os professores deveriam se esforçar mais.
Em meio ao turbilhão de decretos e medidas provisórias, somos submetidos a normalidade da anormalidade. Não há garantias de que essa lógica do “sacrifício” imposta se cumpra. É fato que, essas normas e medidas adequadas a nova temporalidade do capital no contexto do Covid-19, são temporárias, mas produz efeitos destrutivos e ampliam modalidades contratuais precárias que se traduzem em trajetórias incertas pós-Covid-19, tendo impactos óbvios na saúde e qualidade de vida do trabalhador.
Portanto, no momento que começa a discutir os rumos da educação com a flexibilização da quarentena, é crucial que nossa categoria docente estabeleça estratégias de luta contra a redução de jornada, de salário e todas as medidas excepcionais relacionadas ao período de enfrentamento da pandemia, bem como a defesa da garantia de salários, direitos, contratações, concursos públicos e investimentos nas redes públicas de educação.
Referências
ANTUNES, RICARDO. O privilégio da servidão o novo proletariado de serviços na era digital. 1. Ed. São Paulo: Boitempo,2019.
SCHLEICHER, Andreas. Entrevista. “Professores terão que mudar seu jeito de ensinar depois da quarentena”. Disponível em: https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-04-23/professores-terao-que-mudar-seu-jeito-de-ensinar-depois-da-quarentena.html
POCHMANN, M. Entrevista. Revista Poli: saúde, educação e trabalho, Rio de Janeiro, ano IX, n. 48, nov./dez. 2016.
Genilson Cordeiro Marinho é doutor pela Universidade Nacional de La Plata/Arg. Licenciado em História-USP. Mestre em Educação –UFPE. Professor da educação básica e ensino superior, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil-HISTEDBR/UFSCar-Sorocaba e no Núcleo de Estudos e Pesquisas de Educação em Direitos Humanos-NEPEDH/UFPE.