A pobreza extrema caiu, mas a linha é muito baixa.
Annie Lowrey
Fonte: Carta Maior, com The Atlantic
Tradução: César Locatelli
Data original da publicação: 31/07/2020
Vivemos o que muitas vezes parece um período biblicamente terrível, marcado por extinções em massa, recessões profundas, epidemias, emergências climáticas, desigualdade e guerras eternas. Mas uma coisa, pelo menos, ficou melhor. Mais de um bilhão de pessoas escaparam da pobreza extrema – tantas, tão rapidamente, que o mundo poderá declarar, dentro de uma década, o fim dessa forma mais miserável de privação. “A taxa de pobreza global está agora mais baixa do que nunca na história registrada”, argumentou recentemente Jim Yong Kim, ex-presidente do Banco Mundial. “Esta é uma das maiores realizações humanas do nosso tempo.”
Ou talvez não. Em uma repreensão acídica aos líderes mundiais, Philip Alston, relator especial das Nações Unidas sobre pobreza e direitos humanos, argumenta que o esforço para acabar com a pobreza global fracassou. Mais pessoas vivem em privações agora do que há duas décadas. “Desperdiçamos uma década na luta contra a pobreza, com o triunfalismo equivocado bloqueando as exatas reformas que poderiam ter impedido os piores impactos da pandemia”, escreveu Alston em seu último relatório.
Então, quem está certo: Alston ou Kim? É difícil defender o argumento pessimista quando se olha para os números brutos e manchetes. A taxa global de extrema pobreza caiu de 36% em 1990 para 10% em 2015; o número de pessoas pobres caiu de 2 bilhões para 700 milhões. Mas Alston acredita que, concentrando-se apenas nesses números, o mundo está se iludindo.
As divisões entre os economistas do Banco Mundial e o relator especial da ONU são, em certo sentido, técnicas, sobre onde estabelecer a linha de pobreza. Eles são, em um sentido mais importante, interpretativos, sobre se o progresso foi rápido ou lento e se as contagens globais atuais de pobreza são louváveis ou trágicas.
Este é um reino de “sim-e” e “não-mas”, não refutações diretas. A pobreza extrema caiu rapidamente, mas a linha que a define é muito baixa: uma pessoa que vive abaixo dela não gasta mais de US$ 1,90 por dia, o suficiente em muitos países pobres para cobrir um pouco de amido, algumas frutas e legumes, um pouco de óleo de cozinha, um pouco de proteína, e é isso – sem sobrar nada para os serviços como água e luz, educação, assistência médica, transporte ou investimento em ativos geradores de riqueza, como uma vaca ou uma moto. Esse limiar de pobreza representa “um padrão de vida incrivelmente baixo, bem abaixo de qualquer concepção razoável de uma vida com dignidade”, argumenta Alston – é uma medida de destituição catastrófica, não uma medida de pobreza. Ele enfatiza também a falta de progresso nas linhas de pobreza de US$ 3,20 por dia e US$ 5,50 por dia. Metade do mundo vive com menos do que o último número.
Alston discorda do fato de que a linha de extrema pobreza do Banco Mundial é uma medida absoluta, não relativa: estabelece uma linha e vê quantas pessoas a atravessam, país por país, em vez de vincular o limiar de pobreza à renda mediana, país por país. Mas “a pobreza relativa é o que realmente conta nos dias de hoje”, disse-me Alston, ao capturar a exclusão social, e a maneira como viver com alguns dólares por dia é mais desafiador em países de renda média como Índia e Quênia do que em países de baixa renda como o Afeganistão e o Chade. “Em um país mais pobre”, explica o próprio banco, “a participação no mercado de trabalho pode exigir apenas roupas e alimentos, enquanto alguém em uma sociedade mais rica também pode precisar de acesso à internet, transporte e telefone celular”.
O banco também reconhece que a linha global de extrema pobreza é baixa. Ele gerou uma medida que inclui a pobreza relativa e produz contagens nas linhas de US$ 3,20 por dia e US$ 5,50 por dia. Seus economistas, pesquisadores e especialistas em programas enfatizam que elevar-se acima da linha da pobreza extrema não é garantia contra desnutrição, crescimento retardado, morte prematura ou qualquer outra consequência horrível da miséria.
Mas o argumento mais controverso e mais importante de Alston é que o foco no progresso medido na linha de US$ 1,90 por dia – a prevalência de argumentos “tudo está melhorando”, feitos pelos tipos que frequentam Davos, como Bill Gates e Steven Pinker – dificultou o progresso em direção à verdadeira erradicação da pobreza, direitos civis, inclusão social e um padrão básico de vida para todos. “Ao poder confiar tanto no número principal do Banco Mundial [US$ 1,90], eles podem dizer: ‘Veja, o progresso tem sido consistente. Estamos indo muito bem’”, disse Alston. “Pode-se concluir, a partir daí, que o triunfo do neoliberalismo trouxe benefícios muito significativos para as pessoas pobres. Enquanto, na realidade, não foi isso que aconteceu.”
E se líderes mundiais e instituições multilaterais se concentrassem na linha de US$ 5,50, ou medidas de pobreza que capturam exclusão social e privação relativa? E se a manchete fosse a de que metade do mundo ainda se qualifica como desesperadamente pobre, e a contagem de pessoas na pobreza permanece teimosamente alta em dezenas de países? E se a história não fosse de que estamos tendo sucesso, mas de que estamos falhando?
Essa história não capturaria todo o bem que aconteceu em termos de queda nas taxas de mortalidade infantil, aumento do número de matrículas nas escolas e desnutrição. Mas responsabilizaria o mundo pelo fato de que a pobreza é, sempre e em toda parte, uma escolha. A visão de Alston, e uma visão necessária, é que o mundo não pode esperar que a expansão econômica alce as pessoas para cima da linha da pobreza. Não se pode contar com pactos comerciais e projetos de infraestrutura e com as taxas de crescimento do PIB de 2,3 a 3,2% para fazê-lo. São necessárias intervenções diretas dos governos, o mais rápido possível, para eliminar a desigualdade e construir redes de segurança, mesmo nos lugares mais pobres.
Annie Lowrey é uma jornalista americana que escreve sobre política e política econômica para a revista The Atlantic. Anteriormente, Lowrey cobria a política econômica do The New York Times.