A penhora do bem de família e o impacto sobre a população endividada

O Projeto de Lei nº 4.188/2021 passa a permitir que bancos e instituições financeiras penhorem o único imóvel de uma família para quitar dívidas, em qualquer situação na qual o imóvel seja dado como garantia real.

David Igor Rehfeld e Enrico Sarti

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 13/06/2022

O Instituto Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) apontou que 33 milhões de pessoas estão passando fome no Brasil e que mais 58% da população vive em insegurança alimentar. Em abril de 2022, a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor constatou que mais de 73,5% dos lares tinham dívidas. Ainda mais alarmante, a inadimplência das famílias atingiu 24,6% dos lares no mesmo mês, enquanto 10,1% das famílias do Brasil foram incapazes de quitar as dívidas atrasadas. As taxas citadas constatam o óbvio: após uma crise econômica e sanitária que acentuou as desigualdades sociais, a família brasileira está endividada como em poucos momentos da história recente do país.

Esse é o pano de fundo para o Projeto de Lei 4188/2021, de autoria do Poder Executivo, aprovado pela Câmara dos Deputados no dia 1º de junho deste ano. O projeto de lei em questão institui um marco legal para o uso de garantias destinadas à obtenção de crédito no país, dispondo, primordialmente, sobre o Serviço de Gestão Especializado de Garantias e a sua operacionalização. Dentre outras medidas, o PL em questão traz alterações à Lei nº 8.009/1990, que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, conhecida como a “Lei do Bem de Família.

A Lei do Bem de Família prevê que o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo exceções específicas previstas na própria lei.

A impenhorabilidade é um mecanismo que visa assegurar um patrimônio mínimo ao devedor que não poderá ser atingido por dívidas. O Código de Processo Civil traz, em seu artigo 833, um rol de hipóteses de impenhorabilidade. Cada hipótese está relacionada a um direito fundamental específico, previsto na Constituição, visando sempre à tentativa de concretização do fundamento primordial da República Federativa do Brasil: a dignidade da pessoa humana.

A proteção conferida pela Lei nº 8.009/90 ampara-se no direito constitucional à moradia e, em nível doutrinário, na tese de Luiz Edson Fachin, intitulada “O estatuto jurídico do patrimônio mínimo”. A Teoria do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, amparada na dignidade da pessoa humana, sustenta que, em perspectiva constitucional, as normas civis devem sempre resguardar um mínimo de patrimônio, para que cada indivíduo tenha vida digna[1].

O Projeto de Lei nº 4.188/2021 passar a permitir que bancos e instituições financeiras penhorem o único imóvel de uma família para quitar dívidas, em qualquer situação na qual o imóvel seja dado como garantia real.

O PL dividiu opiniões entre os parlamentares. A bancada de centro-esquerda considera o PL um enorme retrocesso, uma vez que poderá fazer com que as famílias hipossuficientes economicamente possam perder a sua moradia para os grandes bancos. Já a base do governo defendeu que a proposição zela pela coerência porque não se deve proteger alguém que oferece imóvel em garantia e, diante do descumprimento de obrigações garantidas, alega a impenhorabilidade do seu bem.

Do ponto de vista jurídico, é necessário que se faça uma interpretação teleológica da norma, isto é, antes que essa seja suprida, deve o legislador atentar para a razão pela qual a norma foi instituída e, se faz sentido suprimi-la na atual situação econômica do país. Segundo a Corte Especial do STJ, “a Lei nº 8.009/90 foi concebida para garantir a dignidade e funcionalidade do lar. Não foi propósito do legislador permitir que o pródigo e o devedor contumaz se locupletem, tripudiando sobre seus credores. Na interpretação da Lei nº 8.009/90, não se pode perder de vista seu fim social”.[2]

Em um dos momentos mais alarmantes na história do Brasil, chama atenção que a tramitação do projeto tenha se dado em caráter de urgência, despindo a sociedade de qualquer possibilidade de discussão acerca do futuro das famílias endividadas, que hoje representam três em cada quatro dos brasileiros.

No que concerne às consequências jurídicas decorrentes da aprovação do PL, a disciplina anterior relacionada aos imóveis de família permitia o oferecimento do único imóvel da família para garantia apenas nos casos de hipoteca.

Todavia, a partir do texto final do PL aprovado pela Câmara, essa penhora poderá ocorrer em qualquer situação na qual o imóvel foi dado como garantia real, independentemente da obrigação garantida. Além disso, é possível que os imóveis de família sejam penhorados mesmo diante de dívidas contraídas por terceiros, como no caso do oferecimento à penhora de um pai como garantia real das dívidas dos filhos.

Na prática, a aprovação do PL acirra a desigualdade social, subvertendo os valores dispostos na “Lei do Bem de Família”, que visou proteger o devedor de que as suas dívidas possam atingir a dignidade de seu lar, incluindo-o no número crescente de brasileiros abaixo da linha da miséria.

Nesse aspecto, cabe retomar o posicionamento clássico manifestado pelo Supremo Tribunal Federal quando declarada ilícita a prisão civil de depositário infiel[3], o qual se refletiu em mandamento presente no Artigo 7º do Pacto de São José da Costa Rica: “Ninguém deve ser detido por dívidas”. Questiona-se, então: até que ponto a detenção a que se refere a Convenção Americana sobre Direitos Humanos é somente carcerária? Quando se tem milhões de famílias devastadas após a maior crise econômica-sanitária do Século XXI, podendo ser condenadas à miséria e, por consequência de uma dívida, perderem o imóvel que habitam, só parece haver uma resposta humanamente viável.

Notas

[1] FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001

[2] STJ-Corte Especial, Resp 109.351, Min.Gomes de Barros, DJU 25.5.1998

[3] Súmula 25 do STF.

David Igor Rehfeld é advogado e sócio do escritório Pires, Kaufmann e Rehfeld Advogados Associados. 

Enrico Sarti é advogado em São Paulo formado pela USP.

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