O livro de Engels é muito mais do que reportagem das terríveis condições em que os trabalhadores viviam. Tecida no desenvolvimento da obra, há uma análise econômica do capitalismo que Marx e Engels desenvolveriam mais tarde, mas que, mesmo nesta fase, eram centrais.
Michael Roberts
Fonte: Carta Maior, com Blog do Autor
Tradução: César Locatelli
Data original da publicação: 17/03/2020
Nesse dia, 15 de março de 1845, Friedrich Engels publicou sua obra-prima da análise social, A condição da classe trabalhadora na Inglaterra. Este ano é o 200º aniversário do nascimento de Engels [28 de novembro de 1820]. Abaixo está um pequeno extrato (aproximado) do meu próximo livro sobre a contribuição que Engels fez à economia política marxiana.
Engels tinha apenas 24 anos quando escreveu a Condição. Ele já havia desenvolvido ideias de esquerda quando foi despachado para a Inglaterra no final de 1842 para trabalhar na empresa da família, Ermen and Engels, fabricantes de linhas de costura em Manchester. Ele chegou à Inglaterra apenas algumas semanas após a greve geral Cartista de 1842 que, apesar de seu fracasso ao final, havia demonstrado o poder potencial dos trabalhadores.
O centro da greve foi em Manchester e nas áreas circundantes de Lancashire e Cheshire, as áreas de produção têxtil. A Inglaterra era de longe a economia industrial mais avançada do mundo, tendo sido palco da Revolução Industrial. Já liderava o mundo na produção de algodão, carvão e ferro. Sua classe trabalhadora também era a mais avançada do mundo, organizada pelo movimento Cartista.
Engels ficou horrorizado com a pobreza e a miséria que viu em Manchester. A cidade cresceu em torno da indústria do algodão e era uma massa de favelas imundas. Mortalidade infantil, doenças epidêmicas e superlotação eram todos fatos da vida. Os imigrantes irlandeses chegavam a um quarto da população da cidade, levados por condições ainda piores em seu próprio país. A pobreza existia nas cidades antigas e nas áreas rurais – como havia acontecido na Alemanha -, mas o crescimento das grandes cidades exacerbou e acentuou essas condições.
A nova classe trabalhadora logo passaria a representar o grosso da massa da população, pois os métodos capitalistas de fabricação destruíram muitos dos antigos artesãos ou classes médias, transformando a maior parte deles ou de seus filhos em trabalhadores. As necessidades da indústria de transformação levaram à construção de fábricas e moinhos e houve uma rápida urbanização. As cidades industriais evoluíram para as grandes cidades que Engels observou quando visitou a Inglaterra pela primeira vez.
À noite e nos fins de semana, quando não trabalhava na empresa de seu pai, Engels ia com sua nova namorada e operária, Mary Burns, a vários distritos da classe trabalhadora. No livro, ele descreve detalhadamente as condições de vida nessas cidades, usando uma variedade de reportagens da imprensa contemporânea, investigações oficiais e até diagramas das casas germinadas que formaram as primeiras favelas de Manchester.
Engels resumiu a posição dos mais pobres. “Em 1842, a Inglaterra e o País de Gales contavam com 1.430.000 habitantes, dos quais 222.000 eram encarcerados em oficinas – a Bastilha da Lei dos Pobres, como as pessoas comuns chamam. – Graças à humanidade dos Whigs! [Whigs eram membros ou apoiadores do maior grupo político britânico que buscava limitar o poder real e incrementar o poder parlamentar] A Escócia não tem Lei dos Pobres, mas pessoas pobres em abundância. A Irlanda, aliás, pode se orgulhar do número gigantesco de 2.300.000 mendigos. ”
Mas o livro de Engels é muito mais do que reportagem das terríveis condições em que os trabalhadores viviam. Tecida no desenvolvimento da obra, há uma análise econômica do capitalismo que Marx e Engels desenvolveriam mais tarde, mas que, mesmo nesta fase, eram centrais. Engels começa analisando como a revolução industrial transformou as velhas maneiras de trabalhar a tal ponto que criou toda uma classe de trabalhadores assalariados, o proletariado.
A introdução de máquinas na produção de têxteis, carvão e ferro transformou a economia britânica na mais dinâmica do mundo, criando uma massa de redes de comunicações – pontes de ferro, ferrovias, canais – o que, por sua vez, levava a mais desenvolvimento industrial.
Engels descreve a própria natureza do sistema capitalista. A competição entre os capitalistas os leva a pagar aos trabalhadores o mínimo possível, enquanto tentam extrair cada vez mais trabalho deles: ‘Se um fabricante puder forçar as nove mãos a trabalhar uma hora extra diariamente pelo mesmo salário, ameaçando demiti-los numa época em que a demanda por mãos não é muito grande, ele elimina a décima e economiza muitos salários. Por sua vez, isso leva à competição entre trabalhadores por empregos e à criação de um grupo de desempregados que podem ser atraídos para a força de trabalho quando os negócios estão em expansão e demitidos novamente quando estão vagarosos”.
A existência desse exército de reserva de trabalhadores não qualificados e desempregados – especialmente entre os irlandeses imigrantes nas cidades da década de 1840 – reduz o nível de salários e condições para todos os trabalhadores.
Engels desenvolveu uma teoria dos salários. A competição intraclasse, entre trabalhadores, é que era “a arma mais forte contra o proletariado nas mãos da burguesia”, o que explica “o esforço dos trabalhadores para anular essa competição através de associações”. Na ausência de contrapressão sindical, a vantagem está com a classe empregadora, que “ganhou o monopólio de todos os meios de existência” e “que está protegida em seu monopólio pelo poder do Estado. Essa sindicalização que ajuda a sustentar os níveis salariais reais e a participação do trabalho na produção tem, desde então, sido confirmada por muitos estudos.
E, à frente de Marx, Engels começou a explicar como os trabalhadores eram explorados, apesar de receberem um “salário justo por um dia justo de trabalho”.
Engels: “A burguesia oferece [ao proletário] os meios de vida, mas apenas em troca por um ‘equivalente’ de seu trabalho”, e “até permite que ele tenha a impressão de que age por sua livre escolha, ao fazer um contrato com seu livre e irrestrito consentimento, como um agente responsável que alcançou sua maioridade”, embora ele seja “de direito e, de fato, o escravo da burguesia””.
Assim, “o trabalhador de hoje parece ser livre porque não é vendido em definitivo, mas em prestações a cada dia, semana, ano e porque nenhum proprietário o vende a outro, mas ele é forçado a vender a si próprio, não sendo escravo de nenhuma pessoa em particular, mas de toda a classe de proprietários de propriedades”. Mais tarde, Marx desenvolveria completamente essa noção na categoria “força de trabalho” como objeto de compra pelos empregadores.
Outro conceito brilhante desenvolvido por Engels foi antecipar a lei geral de acumulação de Marx e sua natureza dupla. Por um lado, a introdução de novas máquinas ou tecnologias leva à perda de empregos para os trabalhadores que usam tecnologia ultrapassada. Por outro lado, as novas indústrias e técnicas conseguiam criar novos empregos. Novamente, esse debate sobre o impacto da tecnologia e do emprego é bem atual com o advento dos robôs e da inteligência artificial agora.
Engels descreve a fiação e a tecelagem domésticas sob condições de “aumento constante da demanda pelo mercado doméstico, acompanhando o lento aumento da população”. A “vitória do trabalho da máquina sobre o trabalho manual” – refletindo a vantagem competitiva das novas tecnologias – implicou “uma rápida queda no preço de todas as mercadorias manufaturadas, prosperidade do comércio e da manufatura, conquista de quase todos os mercados estrangeiros desprotegidos, a repentina multiplicação de capital e riqueza nacional”. E também “uma multiplicação ainda mais rápida do proletariado” e “a destruição de toda a propriedade e de toda a segurança no emprego da classe trabalhadora”.
Portanto, a industrialização e a introdução de máquinas destroem as pequenas empresas e o trabalho autônomo e levam as pessoas a grandes locais de trabalho, onde os empregos surgem na medida em que as empresas com melhor tecnologia e custos mais baixos conseguem ganhar participação de mercado em casa e no exterior.
A evidência empírica apoia a tese de Engels. Carl Frey considera que as primeiras invenções da Revolução Industrial foram predominantemente substituidoras de não de obra: “Se a tecnologia substituir o trabalho nas tarefas existentes, os salários e a parcela da renda nacional que cabe ao trabalho poderão cair. Se, ao contrário, as mudanças tecnológicas aumentarem o trabalho, tornarão os trabalhadores mais produtivos nas tarefas existentes ou criarão atividades inteiramente novas intensivas em trabalho, aumentando assim a demanda por trabalho. ”
A divergência entre produto e salário, em outras palavras, é consistente com o fato de ser este um período em que a tecnologia estava substituindo principalmente o trabalho. Os trabalhadores artesanais no sistema doméstico foram substituídos por máquinas, muitas vezes operadas por crianças – que tinham muito pouco poder de barganha e, com frequência, trabalhavam sem salários.
“A crescente participação de capital na renda fez com que os ganhos do progresso tecnológico fossem distribuídos de maneira muito desigual: os lucros corporativos foram capturados pelos industriais, que os reinvestiram em fábricas e máquinas”.
Havia uma lacuna crescente entre os salários e o aumento da produtividade, à medida que os trabalhadores eram deslocados pelas novas tecnologias e os salários nominais eram mantidos estagnados. Robert Allen caracterizou o período, particularmente após o fim das Guerras Napoleônicas até o momento em que Engels chegou a Manchester como ‘a Pausa de Engels’.
No entanto, Engels também oferece o outro lado da moeda. Existem “outras circunstâncias” em jogo, incluindo o reemprego gerado pelos custos reduzidos resultantes das novas tecnologias: “A introdução das forças industriais já mencionadas para aumentar a produção leva, com o tempo, a uma redução dos preços dos produtos. artigos produzidos e o consequente aumento do consumo, de modo que uma grande parte dos trabalhadores deslocados finalmente, após um longo sofrimento, encontra trabalho novamente em novos ramos de atividade”.
Engels rejeitou veementemente a explicação malthusiana. O crescimento populacional é uma resposta às crescentes oportunidades de emprego, e não vice-versa: mas esse argumento não é uma apologia ao capitalismo, porque novos empregos não duram: “assim que o agente consegue se sentir em casa em um novo ramo, se ele realmente consegue fazê-lo, isso também lhe será tirado e, com isso, o último resquício de segurança que lhe restava para ganhar seu pão.”
E ele observa cuidadosamente as opiniões dos próprios trabalhadores: “que os salários em geral foram reduzidos pela melhoria das máquinas é o testemunho unânime dos agentes. A afirmação burguesa de que a condição da classe trabalhadora foi melhorada por máquinas é proclamada falsa, com o mais absoluto vigor, em todas as reuniões de trabalhadores nos distritos fabris.”
Estava Engels correto (e os trabalhadores com quem ele conversou) sobre a falta de crescimento dos salários reais na Grã-Bretanha da década de 1840? Historiadores econômicos, pois, no geral, concordam. A “pausa de Engels” foi confirmada. À medida que o produto interno bruto per capita crescia, os salários reais da classe trabalhadora britânica permaneciam relativamente constantes.
Os dois principais estudos sobre “salários reais” [abaixo] mostram que eles ficaram mais ou menos estacionados entre 1805 e 1820, um período de depressão econômica na Inglaterra. Houve uma recuperação na década de 1830. Mas os “anos 1940 de fome”, como eram chamados, viram uma queda significativa nos salários reais, principalmente por causa do aumento dos preços dos alimentos que não foram eliminados até a abolição das leis do milho em 1846. E durante os anos quarenta houve duas quedas em 1841 e 1847, com o estudo de Engels abrangendo ambos. Em 1847, os salários reais estavam estagnados, na melhor das hipóteses, por mais de dez anos.
A conclusão de Engels foi que a principal causa dos baixos salários era o poder dos empregadores sobre os trabalhadores não sindicalizados, a ameaça do maquinário e do ciclo industrial sob o capitalismo. Essa conclusão ainda se mantém 175 anos depois.