A onda de greves que precedeu o fim do governo Dilma

Fotografia: Fernando Frazão/Agência Brasil

Nem sempre a greve é um sinal de força do movimento sindical. Muito pelo contrário, o que aparentemente é uma demonstração de poder pode revelar na verdade a fragilidade do movimento.

Alexandre Sampaio Ferraz e Sidney Jard da Silva

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 21/09/2021

A greve é o instrumento mais radical que os trabalhadores têm para pressionar os patrões, sejam eles grandes empresas multinacionais, instituições financeiras ou governos. O imaginário sindical brasileiro é marcado por grandes greves heroicas: Contagem e Osasco, em 1968; ABC Paulista, em 1978; Volta Redonda, em 1988; e, a greve nacional dos petroleiros de 1995. Duramente reprimidas pelos aparatos policiais do Estado, todas são celebradas muito mais pelos seus significados políticos do que pelos seus ganhos econômicos.

Contudo, nem sempre a greve é um sinal de força do movimento sindical.[1] Muito pelo contrário, o que aparentemente é uma demonstração de poder pode revelar na verdade a fragilidade do movimento, suas divisões internas e os erros na avaliação dos contextos históricos. A ascensão do movimento grevista no início dos anos 1960 não impediu o golpe civil-militar de 1964. O aumento do número de greves a partir de 2013 não foi capaz de evitar o golpe parlamentar de 2016.[2]

Realizar uma greve exige e demonstra uma surpreendente capacidade de organização coletiva dos trabalhadores e dirigentes sindicais. Um movimento grevista requer inúmeros esforços e comprometimento com uma série de regras estabelecidas pela chamada Lei de Greve, Lei nº 7.783 de 1989, como a obrigatoriedade de comunicar a paralisação ao empregador com no mínimo 48 horas de antecedência, além de cumprir o determinado pelos estatutos dos próprios sindicatos em relação ao quórum e votos necessários para sua aprovação.

A greve pode ser vista como uma demonstração de força organizativa das entidades sindicais, buscando tanto sua legitimação para negociar e representar os trabalhadores quanto o reconhecimento das pautas de reivindicações em jogo. A explosão de greves entre 1983 e 1996, na busca da afirmação do próprio direito de greve e da organização sindical, bem como da legitimação das reivindicações trabalhistas por melhores salários e condições de trabalho se insere nesse contexto.

O país viveu durante esses anos um momento conturbado de transição de regime, da ditadura para democracia, e uma grave crise inflacionária que teve seu “fim” com a estabilização da moeda em 1996, dois anos depois da implantação do Plano Real em março de 1994. Os sindicatos passaram da ilegalidade para legalidade, sendo restaurada na sua essência a estrutura corporativa varguista, mas com importantes modificações no que se refere à liberdade e autonomia sindical, bem como ao direito de associação e de greve.

Nesse mesmo período, a CUT se consolidou como a maior e mais combativa central sindical do Brasil, mas foi incapaz de conquistar a hegemonia no interior de um sindicalismo fragmentado, no qual a estrutura sindical determina que a unidade básica das organizações seja o município e a categoria profissional. Além de dificultar a unificação das lutas e negociações geográfica e profissionalmente, o sistema sindical brasileiro também cria uma dificuldade temporal ao estabelecer que cada categoria deve ter uma “data-base” específica, isto é, um momento determinado para negociar isolando-as das demais categorias.

Contudo, o engessamento da estrutura sindical na base não impediu o pluralismo na cúpula com a criação de diversas outras centrais: CGT, CGTB, Conlutas, CTB, Força, Intersindical, UGT etc. Cada uma abriu uma nova frente de luta acomodando diferenças partidárias e distintas bandeiras sindicais. A emergência do movimento popular nesse mesmo período também foi importante, colocando os sindicatos como atores fundamentais do jogo democrático, mas não foi suficiente para superar a fraqueza estrutural das instituições criadas pelo varguismo. O corporativismo estatal brasileiro deu um passo em direção ao corporativismo societal dos países mais desenvolvidos, mas manteve “seus pés de barro” atolados na estrutura sindical oficial.[3]

Entre 1997 e 2010, o sindicalismo propositivo ganhou terreno. O desemprego cresceu rapidamente e se manteve elevado até 2003, derrubando a disposição grevista dos trabalhadores. Nem a alta inflacionária no fim do governo FHC e início do governo Lula foi capaz de mobilizar a militância. A tentativa de reforma da estrutura sindical fracassou revelando a fragilidade de um pacto do tipo neodesenvolvimentista envolvendo sindicatos, governo e entidades patronais. A saída apaziguadora ao estilo lulista teve vida curta, garantindo às centrais um novo lugar ao sol com recursos do imposto sindical e assento nos espaços de negociação tripartite, mas deixando intocada as regras da velha estrutura ainda tão eficiente na cooptação e fragmentação das entidades sindicais de base e de cúpula.

O número de centrais oficiais e não oficiais não parou de crescer, os recursos do imposto irrigaram a disputa independentemente da representação na base e o crescimento do emprego “inflacionou” as expectativas das lideranças sindicais. No início do governo Dilma, o número de greves cresceu rapidamente e explodiu em 2013, mantendo-se elevado até a sua destituição do poder por um processo de impeachment ilegítimo aos olhos dos dirigentes sindicais cutistas, mas apoiado ou pelo menos legitimado por centrais concorrentes.

Fonte: Dieese

Muitos viram na retomada do movimento grevista sinais da consolidação da esquerda no poder. Contudo, as estratégias maximalistas no interior do movimento sindical, com uma forte disputa entre as centrais, acabaram por selar o breve destino do ensaio neodesenvolvimentista da era Lula. A reforma trabalhista do governo Temer, que minou o poder dos sindicatos extinguindo sua principal forma de financiamento, o “imposto sindical”, só pode ser entendida nesse contexto mais amplo de aumento de mobilizações grevistas setoriais incapazes de impor uma agenda de concertação social global.

A explosão de greves de 2013 contém uma lição importante para aqueles que agora pensam em uma nova reforma sindical. Não adianta querer voltar a um passado mítico de greves heroicas (1968, 1978, 1988, 1995). É preciso aprender com a história não para repeti-la, mas sim para abrir novas possibilidades para o presente e para o futuro. Um movimento sindical forte não se faz resolvendo apenas o modelo de seu financiamento, é preciso que as organizações sejam fortes e tenham voz no debate econômico e político, para isso é preciso reduzir a fragmentação e as disputas internas.

Países com movimento sindical centralizado têm melhores salários, melhor IDH, melhores condições de vida; muitas vezes negociadas na forma de benefícios indiretos como saúde e educação públicas de qualidade para todos. Sindicatos abrangentes, unindo diversas categorias e negociando sob o guarda-chuva de um número reduzido de centrais são capazes de prover aos trabalhadores um padrão de vida superior ao que conseguiriam fragmentados na competição individual ou trancados no corporativismo de uma categoria isolada.[4]

Em síntese, mais do que aumentar o número de greves, o grande desafio do sindicalismo brasileiro é reduzir a fragmentação das entidades sindicais de base e de cúpula. A voz dos trabalhadores depende do poder de organização sindical para conquistar o peso político necessário para obter ganhos econômicos efetivos e melhora na qualidade de vida que são impossíveis de se conquistar por meio do jogo do “livre mercado”. Com os sindicatos unidos em torno de um compromisso com o desenvolvimento inclusivo, o país poderá recuperar o caminho do desenvolvimento perdido: investimento, emprego, saúde, cultura, educação, casa e comida para todos.

Notas

[1] Como observa Murillo (2000: 9): “As greves e outros protestos custam caro para os sindicatos e, portanto, os dirigentes sindicais preferem ameaçar com ações sindicais ao invés de praticá-las de fato (…) Sindicatos fortes deveriam conseguir obter concessões mesmo sem militância, já que o governo preferiria evitar o pagar para ver”. Murillo, Maria V. (2000), “From Populism to Neoliberalism: Labor Unions and Market Reforms in Latin America”. World Politics, v. 52, n. 2: 135–168.

[2] Singer, André. (2018), O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma  (2011-2016). São Paulo, Companhia das Letras.

[3] Comin, Alvaro A. (1994), “A experiência de formação das centrais sindicais no Brasil”. In: Oliveira, C. A. (org.): O mundo do trabalho: crise e mudança no final do século. São Paulo, Scritta.

[4] Przeworski, Adam; Wallerstein, Michael. (1988), “Structural Dependence of the State on Capital”. American Political Science Review, v. 82, n. 1: 11–29.

Alexandre Sampaio Ferraz é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

Sidney Jard da Silva é professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisador visitante sênior na Universidade de Coimbra (UC).

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