A OIT, cem anos depois, tenta definir o que é o trabalho

Eduardo Camín

Fonte: CLAE
Tradução: DMT
Data original da publicação: 29/01/2019

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) inaugurou as festividades que marcarão seu centenário ao longo deste ano de 2019 e anunciou a base do relatório que, para medir os desafios que se avizinham, encomendou há dois anos de uma comissão de especialistas independentes sobre o futuro do trabalho.

O que é surpreendente sobre o trabalho iniciado é que, na ausência do mundo real da informalidade, da fragmentação do emprego e do trabalho não pago diretamente, o relatório naufraga com recomendações com um mundo que não existe mais, tudo resumido em um fundo de emergência ambiental.

Início e presente

Talvez seja um fato pouco conhecido que a organização do trabalho nasceu em Versalhes. De fato, a Conferência da Paz estabeleceu uma Comissão sobre o direito internacional do trabalho e ordenou que desenvolvesse a Constituição de uma organização internacional permanente. O contexto, naquela época, era importante para dar uma resposta confiável à “questão trabalhista”, embora o objetivo apenas velado fosse direcionado em particular para conter o risco da internacionalização da revolução comunista de 1917 que parecia se estabelecer na Alemanha.

Um século depois, o contexto é totalmente diferente. Para medir os desafios futuros, a OIT confiou a uma comissão de especialistas independentes, dois anos atrás, para pensar sobre o futuro do trabalho.

Presidido pelo Presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, e pelo primeiro-ministro da Suécia, Stefan Löfven, a Comissão propõe uma visão de um programa centrado nas pessoas, com base no investimento nas capacidades dos indivíduos, nas instituições do trabalho e no trabalho decente e sustentável. Entre as dez recomendações estão:

– Uma garantia universal de emprego que proteja os direitos fundamentais dos trabalhadores, salários que permita um padrão de vida digno, horas de trabalho limitadas e locais de trabalho seguros e saudáveis.

– Uma garantia de proteção social desde o nascimento até a velhice, que atenda às necessidades das pessoas durante todo o seu ciclo de vida.

– Um direito universal à aprendizagem ao longo da vida, que permita que as pessoas sejam treinadas, adquiram novas habilidades e melhorem suas qualificações.

– Uma gestão de mudança tecnológica que favoreça o trabalho decente, inclusive através de um sistema de governança internacional de plataformas de trabalho digitais.

– Maiores investimentos em economias rurais, verdes e de assistência.

– Uma agenda transformadora e mensurável em favor da igualdade de gênero.

– A reestruturação de incentivos às empresas para estimular investimentos de longo prazo.

Esse relatório é o resultado de uma revisão realizada durante 15 meses pelos 27 membros da Comissão Mundial, composta por personalidades proeminentes do mundo empresarial, trabalhista e acadêmico, grupos de estudos e organizações governamentais e não-governamentais.

O outro lado do relatório

Aqueles que esperavam uma visão ambiciosa ficarão desapontados. O gênio de cada especialista parece ter diminuído – para não dizer silenciado – neste trabalho de grupo, já que o ponto de partida e o estado de realidade estão ausentes do relatório. Como resultado, o texto flutua sobre a ambiguidade das boas intenções e a falta de cimento no concreto do trabalho humano no início do século XXI torna-se evidente.

Embora a definição de trabalho adotada pela OIT cubra todas as atividades relacionadas com a produção de bens, serviços individuais e coletivos, o texto da Comissão centrou-se apenas no trabalho remunerado. Deixa de fora dois importantes universos socioeconômicos: por um lado, o trabalho remunerado em outros contextos, como os salários (independentes e informais) e o trabalho que se realiza sem remuneração direta – como o trabalho doméstico.

Recordemos que o trabalho doméstico tão importante em volume quanto o trabalho remunerado – segundo a OIT, estima-se que haja 67 milhões de pessoas – é outro aspecto que a Comissão realmente não aborda, exceto quando se fala do mundo rural nos países em desenvolvimento. Esse silêncio talvez seja menos surpreendente porque essa atividade escapa de qualquer estatística séria de trabalho, da mesma forma que é ignorada pelas estatísticas de produção.

As estatísticas da OIT mostram que, em nível mundial, o ganho salarial é menos da metade do trabalho remunerado. Se corresponde a 85% dos “empregos” (em sentido estatístico) em países de alta renda, a proporção cai para 25% nos países menos desenvolvidos, onde o serviço público é o principal provedor desse tipo de trabalho.

O resto é da responsabilidade dos trabalhadores autônomos e dos membros da família. Mesmo que a Comissão solicite a extensão do diálogo social, a aprendizagem permanente, a cobertura universal de previdência social, as condições de trabalho decente e a garantia de um salário digno para todos, constituem uma lacuna enorme no contexto atual da loucura capitalista.

82% da riqueza mundial gerada em 2018 foi para 26 bilionários – o 1% mais rico da população mundial -, enquanto que os 50% mais pobres – 3.700 milhões de pessoas – não se beneficiaram desse crescimento, de acordo com o recente Relatório da Oxfam.

Na verdade, o relatório dos especialistas propõe a expansão de um modelo que está se esgotando na maioria dos países como resultado da “uberização” e da fragmentação do trabalho.

Embora esteja totalmente compreendido na definição de trabalho adotada pela própria OIT, a Comissão do Centenário da OIT não esgota (e está longe de o fazer) o problema do futuro do trabalho. Também destaca que a inteligência artificial, a automação e a robótica levarão a uma perda de empregos, de forma que as habilidades se tornarão obsoletas.

No entanto, muitos pensam que esses mesmos avanços tecnológicos, juntamente com o ecologização das economias, também criarão milhões de empregos, se novas oportunidades forem aproveitadas.

Esse tipo de diálogo social “pode contribuir para a globalização, beneficiando a todos nós”, disse o primeiro-ministro sueco e co-presidente da Comissão Mundial, Stefan Löfven. “O mundo do trabalho passa por grandes mudanças que criam inúmeras oportunidades para mais e melhores empregos. Mas governos, sindicatos e empregadores precisam trabalhar juntos para tornar as economias e os mercados de trabalho mais inclusivos “, acrescentou.

Todo esse ar de festas do centenário da OIT tem muito sabor à conciliação de classes, custando ainda a admitir, sem tratarmos de desatualizações, que a luta de classes é um fenômeno que se refere ao eterno conflito entre as duas classes sociais existentes, entre aqueles que produzem e aqueles que não produzem, entre aqueles que sem trabalhar assumem a produção e excluem aqueles que trabalham.

É a luta entre exploradores e explorados; entre esses 26 bilionários, que se destacam entre os relatórios, entre esse 1% mai rico da população mundial, que abarca a mesma riqueza de 3.700 milhões de seres humanos.

A luta de classes, isto é, a luta entre trabalho e capital, não é um conceito que pertence ao passado. Em um mundo de crescente desigualdade, é uma realidade mais relevante do que nunca.

Com a vitória do neoliberalismo, os governos pararam de agir como mediadores entre capital e trabalho com o objetivo de abrandar a desigualdade. Portanto, sindicatos que ainda são baseados apenas na ideia de associação, são frequentemente incapazes de travar lutas ofensivas. Na melhor das hipóteses, eles lutam para manter o status quo e, mesmo assim, na maioria das vezes não conseguem.

Isto gerou uma sensação, quase uma necessidade urgente de que outras vozes sejam ouvidas em 2019 e que possam fornecer à organização sediada em Genebra outras análises e outras hipóteses de trabalho, a fim de enfrentar o mundo real da informalidade, da fragmentação do trabalho e do trabalho remunerado indiretamente, todos em um fundo de emergência ambiental. Inteligência artificial sim, robotização sim, mas a justiça social, onde está?

Eduardo Camín é jornalista uruguaio, membro da Associação de Correspondentes de Imprensa da ONU em Genebra. Associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE, www.estrategia.la).

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