Novo olhar sobre os ricos trabalha catarticamente com a ideia de que não há nenhuma forma sublime de amar entre eles. Nenhuma felicidade, senão as mesmas mediocridades triviais que nos esperam ao fim da corrida da prosperidade.
Christian Dunker
Fonte: Boitempo
Data original da publicação: 29/05/2023
Séries como Succession, criada por Jesse Armstrong (HBO, 2018-2023), e White Lotus, dirigida por Mike White (HBO, 2021-2022), fizeram grande sucesso no Brasil. De fato, somos exportadores de milionários, chegando a expatriar dois mil deles somente no ano de 2018. Mas depois da fuga de cérebros que caracterizou o regime Bolsonaro, observou-se uma verdadeira revoada de jovens ricos à procura de faculdades estrangeiras. Quando pergunto para vários deles onde querem estudar, sugerindo que a excelência pode querer dizer diferentes coisas em diferentes áreas e profissões, muito frequentemente escuto como resposta: “olha, o lugar não importa muito, a carreira eu também não sei direito, o que eu quero é estudar fora”. O verbo “estudar” surge assim como a palavra mais fraca e indeterminada da oração. Acompanhando vários destes jovens, indo e vindo, vejo que a experiência é em geral muito benéfica e transformadora, quando não é completamente desastrosa. Facilidades acessíveis a qualquer aluno de classe média são ressignificadas à luz da precariedade dos alojamentos universitários e da ausência de serviçais. O senso de privilégio muda muito quando você deixa de ser branco transparente e passa a ser mais um latino, perdido na língua nativa, comportando-se como um estrangeiro atrapalhando o tráfego.
Nossa nova obsessão com os ricos foi anunciada pela diminuição gradativa, durante os anos de covid-19, dos excessos de consumo e exibições de posses, onde o fino e luxuoso cedeu espaço para o tosco. Nos acostumamos com uma estética vulgar do poder e, o que me parece mais importante, um declínio de que a educação é o elemento decisivo para ascensão social. Se até então vigorava uma narrativa como: “Posso estar preso em uma série de restrições por isso aceito minha condição de pobre, miserável ou remediado, desde que possa, de alguma maneira sonhar que meus filhos terão uma vida melhor que a minha se eles conseguirem estudar.” Ou na sua versão complementar: “Posso estar bem estabelecido agora, mas para justificar minhas posses e me fazer reconhecer membro permanente dos ricos, preciso adquirir mais cultura e educação, senão para mim, para meus descendentes.”
Isso parecia plausível em uma paisagem composta por números dramáticos de exclusão escolar, analfabetismo funcional e a segregação meritocrática das universidades. A bem-sucedida política de inclusão escolar, as ações afirmativas em torno das cotas, bem como a acessibilidade e barateamento digital dos saberes, alteraram este quadro. Desde 2013, todos leram o livro de Picketty ainda que montados em suas bikes. De repente, ficou claro que a acumulação de riquezas não está caindo, nem com políticas de redistribuição, nem com desenvolvimento, nem com redução das taxas de natalidade, nem com a distribuição de conhecimento digital gratuito para as massas. É como se a ficha de Bourdieu tivesse caído toda de uma vez e nos déssemos conta, aqui na periferia, que estamos diante do que Jodi Dean chamou de uma refeudalização do mundo. Nossa única chance de entrar no páreo do capital financeiro, social e cultural acontece quando se é herdeiro ou quando se acerta a mina de ouro cada vez mais rara do unicórnio, esta outra figura medieval. Você pode escolher o caminho do cavaleiro cruzado da start-up, pensar que achou o Santo Graal dos talentos divinos da internet, ou tentar a sorte como pregador digital do apocalipse. O mundo fora da feudo-bolha se tornou tão complicado que aquele casal de White Lotus se declara ungido pela felicidade desde que parou de acompanhar as notícias.
O que há de novo nesta volta do parafuso dos ricos é que eles dispensam qualquer necessidade de justificar culturalmente sua própria condição. Suas infantilices toscas, seu uso errático do consumo de luxo, seu desprezo pela sabedoria dos conselheiros e seu excesso de preocupação com o poço infinito do próprio narcisismo não demandam nenhum futuro diferente, apenas mais do mesmo e, no fim, o apocalipse sem sonho, descrito por Mike Davis. Talvez isso explique o ódio do Logan Roy por seus filhos, ou seja, eles não conseguem entender o sentido de uma vida feita de superação, cheia de obstáculos, negociações de contrariedades e interesses, de sacrifícios ponderados. Mas isso seria apenas recapitulação do pathos da futilidade dos ricos, não fosse o fato de que agora suas pequenas razões, motivos e causas, suas mazelas e sofrimentos mesquinhos, de repente, tornaram-se acessíveis a todos. Agora, qualquer um pode ter seus “white people problems” porque qualquer um pode se anestesiar na ilha de Circe, enquanto a tempestade corre solta lá fora.
Intervindo como palestrante em muitas escolas e empresas Brasil afora, acompanhei a transformação da paisagem intelectual dos brasileiros ricos. A benéfica diminuição da reverência pela alta cultura de matriz europeia, ao invés de produzir a humildade diante da descoberta dos Novos Mundos, gerou, ao contrário, uma espécie de arrogância reforçada com as próprias crenças e convicções, digitalmente maquiada. Novos-ricos e antigos-pobres celebram, assim, mesmos valores, mesmas monetização de opiniões, mesmos cancelamentos, mesmas redes de sociabilidade digital. Assim como antes vimos adultos e adolescentes vestirem-se, amarem-se e consumirem-se progressivamente da mesma maneira, agora todos concordam que ricos não precisam ter vidas de ricos. Ademais, pobres podem escolher manias de ricos, como sempre. Mas a aplicação da regra continua diferenciada. Enquanto Greg, o desajeitado primo pobre vivendo na família-empresa de Logan Roy, precisa aprender a se vestir e a evitar gafes, o filho Connor pode escolher permanecer na antiga autenticidade moral texana. Enquanto o genro Tom é ridicularizado por seu apego aos relógios caros, o filho Roman pode continuar a jogar videogames. Enquanto Shiv dá festas em autênticos castelos escoceses, celebrando as origens da família, a primeira esposa de Logan Roy continua “inautêntica” e envergonhando todos em público.
É aqui que nossos olhos se voltaram para os agora chamados 1% mais ricos do mundo. Todos sabem que eles ficam com quase 2/3 da riqueza existente (US$42 trilhões). Eles têm seis vezes mais dinheiro que 90% da população global de 7 bilhões de pessoas. Eles conseguiram amealhar, apenas na última década, metade de toda riqueza criada. Enquanto o resto do mundo tenta desesperadamente aumentar a produtividade, reduzir desemprego diante do barateamento tecnológico, fazer a lição de casa da austeridade, a diferença entre ricos e pobres continua a aumentar. A ONU disse a Elon Musk: “seus 6.6 bilhões de dólares são suficientes para acabar com a fome no mundo, mas isso só consegue acalentar a raiva e o ódio contra aquela elite mambembe que você alcança com seu braço”. Enquanto isso a verdadeira elite continua rindo à toa em Taormina ou no Havaí. Ou seja, neste quadro, esperar soluções “voluntaristas” parece uma tolice, a não ser que estejamos falando do 1% das vontades que importam.
Este novo olhar sobre os ricos trabalha catarticamente com a ideia de que não há nenhuma forma sublime de amar entre eles. Nenhuma felicidade, senão as mesmas mediocridades triviais que nos esperam ao fim da corrida da prosperidade. O terrorismo familiar, representado por Logan Roy, o déficit de reconhecimento crônico que vemos em Tanya McQuoid, mostram o que acontece quando a família se estrutura como um negócio e os negócios se estruturam como uma família. É a lógica da herança, real, simbólica e imaginária, que está por trás desta desobsessão. Dentro dela sou assombrado pela impostura de viver como “já sendo” mesmo sabendo que “ainda não tenho” ou pela projeção de que “mesmo não tendo eu já quase sou”.
Além dos herdeiros há os “white passing friends”, os ricos culpados, os ricos desculpados, os ricos complexados, os ricos fetichizados, os que se sentem ricos porque servem aos ricos, os que se permitem e os que se impedem de “curtir”. No fundo, a atração destes novos ricos é que eles são exatamente como outras pessoas, só que mais exagerados.
O resultado é uma nova forma, assumida e pactuada de sofrimento. Kendall, Roman, Shiv e Connor formam o quarteto de filhos em Succession. Eles estão unidos para tomar a empresa do pai, como vingança pelos seus atos continuados de desamor, devastação e manipulação contra os filhos. Como que devolvem ao pai a demanda suposta de que ele esperava filhos mais roots: mais agressivos, mais adultos, mais gananciosos, menos entregues aos prazeres narcísicos da cocaína branca e do narcisismo das pequenas diferenças. Mas ao provar para o pai que eles já são adultos, tão adultos que podem se rebelar contra ele, estes acabam denunciando, ainda mais sua própria infantilidade. O quarteto estruturalmente oposto, formado por Tom (marido de Shiv), Greg (sobrinho pobre de Logan), as esposas e os funcionários de Logan Roy, luta para “entrar” na família. Eles exploram, acentuam e manipulam fissuras internas da família para criar sua própria ascensão social.
A abertura de Succession, em tom triste e memorialístico, traz imagens melancólicas da felicidade. A abertura da primeira temporada de White Lotus recupera o mesmo tema, com seu papel de parede tropical, com imagens de flores e animais, estilizando o século XVI e a descoberta da América, com a trilha sonora que hibridiza Mozart e música eletrônica. Na segunda temporada, a abertura de White Lotus evolui para uma paisagem meio barroca, cujos detalhes de sexo e sangue são crescentemente acelerados. Mas em vez do claro-escuro, das torções e da angústia barroca, temos excesso de claridade, sexo e maldade mostrados a céu aberto. Moral da história: vista de longe, a imagem deste passado encobre a obscenidade e brutalidade do gozo. Mas parece que ninguém quer ver as coisas de perto. Álbum de família da desolação, papel de parede borrado ou afrescos mórbidos, estes novos novos ricos são incapazes de contar ou de recontar os detalhes sobre a história de seu próprio dinheiro.
Neste novo tipo de feudalismo, a aristocracia continua a ser de sangue e as cortesãs, ministros, cardeais e conselheiros continuam a ser o suplemento excessivo do poder. Mas há sobretudo algo envelhecido e passadiço. O sabor é de velha riqueza, ilustrado, por exemplo, na segunda temporada, nas encostas da Sicília – aliás, lembremos a antiga colônia grega, ocupada pelos romanos, retomada pelos mouros e depois elevada ao Reino das Duas Sicílias. É ali que a vida em forma de condomínio passa férias, nestes condomínios agora chamados resorts. É ali que os comedores de lótus se anestesiam assim como na viagem do divino Ulisses passando pela ilha da feiticeira. Mas, ao contrário do mito hindu que venera a flor de lótus porque ela nasce no lodo, purificando-se enquanto cresce através da água, o condomínio de Circe transforma as pessoas em porcos sem que elas percebam. No fulcro do capitalismo tudo se passa como se não existisse conflito real, tudo depende da vontade soberana deste novo Leviatã ou então da capacidade de se anestesiar, esquecer e parar de sofrer.
A nova obsessão nacional sobre a herança e anestesia, reedita a antiga obsessão novelesca com a vida dos ricos, desde Odete Roitman até a revista Caras. Mas agora não há mais heróis capazes de sobreviverem ao Instagram. Lembremos que a obsessão se caracteriza pelo deslocamento da cena real conflitiva para uma cena substitutiva. Nesta cena paralela passamos a observar nossas peripécias imaginárias como protagonistas de um drama do qual estamos seguros. Assim nos permitimos viver o lado B da vida, como um personagem heroico, assistindo a si mesmo, por procuração, sem compromisso, contando com a desculpa que elite é sempre o outro (de preferência aquele que está do outro lado na arquibancada). Isso acontece com o que venho chamando de elite sem aspas, cuja inconsequência veio unida e reforçada por este novo padrão de riqueza. Para estes novos tempos, seria mais justo falar em uma inversão da obsessão, ou seja, uma desobsessão, no sentido de que nos fixamos em protagonismos irrelevantes, palavras irresponsáveis e juízos erráticos, que preservam sem deformação sua posição na arquibancada da miséria. Tirando luxos e condimentos, adereços e Adornos (com “A” maiúsculo em homenagem ao pensador alemão) pobreza psíquica e riqueza real fazem parte da mesma desobsessão com a autoverdade, para empregar aqui o termo de Eliane Brum.
Esta nova desobsessão das classes médias brasileiras se ajusta perfeitamente à descompressão narcísica que atravessou o país nos últimos seis anos. Ela consistiu em transformar o sentimento perspectivo de futuro em um acontecimento já dado, levando de quebra o apagamento do passado. Como aquele que tem tanta certeza dos lucros vindouros que já começa a “gastar por conta” e como aquele que corrompe, ilude e mente “porque todo mundo faz”, no condomínio da autoverdade, se os miseráveis passaram à condição de pobres e os pobres à de classe média trabalhadora, efeito dos anos de Lulo-Petismo, parece natural que a antiga classe média comece a sentir-se como “já fosse” classe média alta, e esta como se “já-fossem” super-ricos nascidos em Miami. Portanto, quando nossos rebentos vão estudar fora, eles na verdade só estão voltando para casa. Até mesmo a velha Coimbra voltou à moda, junto com a recolonização reversa de Portugal. Enquanto isso, o Brasil real empobrece, o desemprego cresce e a covid-19 avança sob o manto de invisibilidade digital e sob efeito da anistia como anestesia.
Outa consequência desta reconfiguração do tabuleiro aspiracional é que rompemos o antigo pacto histórico entre certos setores das classes médias e certos grupos das classes trabalhadoras, pacto de elite (trabalhadora e intelectual, operário camponesa) que aliás estava na origem do Partido dos Trabalhadores. Hoje temos uma elite de esquerda rodando em torno deste rodoanel socialista que ligaria a USP ao ABC e outra elite de esquerda querendo cobrar pedágio. Enquanto isso, White Lotus e Succession continuam a gramar na quebrada.
Tudo se passa como se com a proliferação da ideia de que qualquer um pode criar a própria elite para si mesmo, incluindo a elite dos escolhidos por Deus, a elite digitalmente autoconstruída ou a mera sensação de elite, que pode ser vendida a preço módico, compartilhando da mesma miséria psicológica para dentro e a mesma felicidade exibicionista para fora. Chegamos assim à curiosa e paradoxal solução brasileira para a luta de classes: a simples negação generalizada da não-elite, ódio aos ricos e ressentimento de classe.
Christian Dunker é psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), obteve o título de livre-docente em psicologia clínica após realizar pós-doutorado na Manchester Metropolitan University (2003). Atualmente é analista membro de Escola do Fórum do Campo Lacaniano. Tem experiência na área clínica com ênfase em psicanálise, atuando principalmente com estrutura e epistemologia da prática clínica, teoria da constituição do sujeito, metapsicologia, filosofia da psicanálise e ciências da linguagem. Coordena, ao lado de Vladimir Safatle e Nelson da Silva Jr., o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (Latesfip-USP).