O precariado move-se. No Brasil, greve dos Rappis, em 1º/7. Na Europa, cresce a CoopCycle, rede de cooperativas de entrega. Com a mesma tecnologia das grandes plataformas, vem com itens a mais: solidariedade, proteção e direitos sociais.
Shyam Krishna
Fonte: Outras Palavras, com RedPepper
Tradução: Simone Paz
Data original da publicação: 25/06/2020
A pandemia escancarou a precariedade e as más condições enfrentadas pelos trabalhadores da Gig Economy [forma como é chamada a economia alternativa, que engloba trabalhos temporários, como autônomos e freelancers]. Quando a maré acalmar, esses trabalhadores que estavam na linha de frente da crise, conseguirão construir um futuro mais justo? Os trabalhadores que aparecem em Reclaiming Work [algo como “Trabalho Reivindicado”] acreditam que sim. Esse breve documentário, de Cassie Quarless e Usayd Younis, da produtora Black & Brown Film, apresenta cooperativas de entregadores (de bicicleta ou motoboys) que oferecem uma alternativa socialista às gigantes Deliveroo [aplicativo de entrega de comida, popular na Europa] e Uber. De fato, La Pájara, uma das cooperativas que aparecem no documentário, foi formada após alguns onda de protesto contra a Deliveroo em Madri. Cooperativas como essas são apoiadas por uma federação ainda mais ampla, a CoopCycle — uma “cooperativa de plataforma” que controla os principais modelos econômicos do capitalismo de plataforma. Esse movimento é fruto do esforço de trabalhadores que se encontraram na esperança de criar uma alternativa justa contra a exploração desenfreada de trabalhadores dentro da Gig Economy, ou “Economia dos Bicos”.
O filme deixa claro que cooperativas e esforços como esses são necessários para promover e proteger o bem-estar dos trabalhadores. Nas palavras dos fundadores, a CoopCycle trabalha contra o “capitalismo rentista”, que levou à quase monopolização econômica de grandes empresas que não contribuem e só controlam. O desafio que as cooperativas de plataforma enfrentam é o de socializar um mercado de trabalho que apresenta salários injustos e uma constante piora das condições de trabalho nessas empresas. Essa injustiça vem sendo contestada por trabalhadores do mundo inteiro, inclusive por parceiros da CoopCycle, como a Molenbike na Bélgica, a Mensakas na Espanha ou o York Collective no Reino Unido. O modelo de cooperativa surgiu também em outros setores digitais, como o Fairmondo, mercado online com base no Reino Unido, e o site norte-americano de compartilhamento de quartos, Upandgo.
A narrativa do documentário Reclaiming Work é eficaz em demonstrar a esperança que essas cooperativas de plataforma representam para os trabalhadores. Mas há algo mais encorajador no que está sendo alcançado. Existe uma saída real para os trabalhadores escaparem do domínio do que pode se tornar um monopólio de plataformas digitais.
Para além da evidente erosão dos direitos trabalhistas nestas plataformas, há também a desonesta classificação dos empregados como “autônomos” em quase todas as formas de trabalho digital comercial. Os trabalhadores são fragmentados como parceiros individuais e as plataformas os abandonam aos seus próprios “dispositivos” — mas mantendo um controle muito rígido de seu trabalho diário. Elas mantêm um controle exclusivo da tecnologia envolvida e dos dados utilizados na prestação de serviços, como a entrega de alimentos.
Então, por onde começamos a derrubar um edifício digital desse tamanho? É aí que a CoopCycle e alternativas semelhantes como essa entram em cena. Eles fornecem as funções críticas que formam a espinha dorsal dos negócios da Economia de Bicos. Os principais componentes da cooperativa de plataforma incluem software, aplicativos para smartphones, mapeamento, seguros e construção de alianças com potenciais fornecedores. Essa tecnologia, que permite todas essas funções da CoopCycle, é gratuita e aberta a qualquer cooperativa. Isso é essencial, pois a partir dessa tecnologia se consegue reunir grupos e cooperativas como o La Pájara ou o York Collective com trabalhadores isolados — conectando-os com os clientes e com fornecedores de alimentos.
As cooperativas são financiadas por meio das contribuições dos trabalhadores, definidas e compartilhadas de maneira justa e transparente. A gestão de uma plataforma cooperativa é, portanto, democrática, fornecendo não apenas uma voz aos trabalhadores, mas profissionalizando de verdade seus trabalhos dentro da Economia de Bicos, e dando a eles o controle de como isso é definido. Assim, os trabalhadores também ganham proteção real na forma de seguros e de representação legal que, em muitos casos, são inexistentes nas plataformas convencionais. Para Kevin, da CoopCycle, essa é apenas uma forma digital da luta de classes. Agora, a tecnologia pode ser usada para ajudar os trabalhadores a desfrutar os meios de produção e inaugurar um bem verdadeiramente comum.
Essa trilha, criada a partir das plataformas de cooperativismo para um futuro mais justo, não está livre de obstáculos. Muitas dessas cooperativas foram criadas num ambiente mais favorável, dentro da administração europeia e de seu apoio a modelos de economia social. No Reino Unido, a pauta política dominante caminhou rapidamente nessa direção, em 2016, quando as cooperativas de plataforma surgiram como áreas tecnológicas centrais na proposta do manifesto da democracia digital do Partido Trabalhista. Mas o debate, agora, volta-se para questões sobre o que acontecerá no pós-Brexit e, principalmente, sobre o que os trabalhadores britânicos da Economia de Bicos devem esperar para o pós-pandemia
Isto nos leva de volta ao início do documentário, que sugere um futuro modulado pela pandemia. Indiscutivelmente, os problemas enfrentados pelos trabalhadores nas linhas de frente da crise não mudaram, apenas se aceleraram sob o espectro do vírus. Talvez as cooperativas de plataforma possam oferecer uma alternativa à sociedade do controle digital, uma questão que nos afligia muito antes da chegada da pandemia. Como pondera Cristina, do La Pájara, agora podemos começar a planejar erradicar as plataformas que exploram o trabalho usando, justamente, as ferramentas digitais criadas pelo próprio capitalismo. Somente agora elas poderão ser cooptadas pelos trabalhadores para socializar a indústria.
Shyam Krishna pesquisa o trabalho digital e as práticas de Gig Economy. Também, é candidato a doutorado na Royal Holloway, da University of London.