Um levantamento feito pelos pesquisadores do Laboratório do Futuro do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia – COPPE da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ indica que, nas próximas duas décadas, as atividades realizadas por aproximadamente 60% dos trabalhadores brasileiros serão automatizadas. “Considerando os municípios com mais de 10.000 trabalhadores, o impacto varia entre 56% (Caxias-MA) e 81% (Nova Serrana-MG), sendo a média e a mediana do índice 69%. Todos os municípios do país tendem a ter algum impacto, mas a diversidade entre os casos de cada um dificulta uma análise generalizada”, diz o engenheiro Yuri Lima ao comentar o estudo. De acordo com o pesquisador, esta e outras pesquisas realizadas pelo Instituto do Futuro sugerem que o impacto da automação “tende a se concentrar sobre os trabalhadores mais vulneráveis (menor renda, jovens e menor nível de formação), que terão mais dificuldades para se requalificar”. Para reduzir os efeitos negativos desse processo, aconselha, “será preciso uma atuação conjunta de atores sociais como governos, empresas, sindicatos e instituições de ensino”. E acrescenta: “Não devemos encarar com medo a projeção apresentada, mas sim como uma preocupação que não pode ser ignorada”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o engenheiro frisa que tanto o debate sobre automação quanto sobre o futuro do trabalho no Brasil ainda “é muito incipiente”, se comparado com o modo como a discussão tem sido feita em países como Alemanha, Reino Unido e Japão. “Em geral, quando se vê uma discussão sobre o futuro do trabalho no Brasil, tende a ser uma importação de ideias do exterior. É preciso entender que o Brasil é muito diferente dos países economicamente desenvolvidos. Assim, a produção de conhecimento sobre o tema precisa ser feita considerando as particularidades nacionais”, diz.
Apesar de compreender a automação como um processo que irá representar “um ganho de produtividade”, Lima destaca que “num país de desemprego acima dos dois dígitos, a proteção do trabalhador deve ser prioridade”.
Yuri Lima é graduado em Engenharia de Produção pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, mestre em Engenharia de Produção pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia – COPPE da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, na área de Gestão e Inovação e foco em Projeto Organizacional e Organização do Trabalho, e cursa doutorado em Engenharia de Sistemas e Computação na mesma universidade. Atualmente é pesquisador do Laboratório do Futuro da COPPE/UFRJ, onde coordena a linha de Futuro do Trabalho.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Segundo levantamento do Laboratório do Futuro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, a automação ameaça mais da metade dos empregos em todos os 5.570 municípios do país até 2040. Pode nos explicar como foi feito esse levantamento? Em que consiste essa ameaça?
Yuri Lima – A pesquisa envolveu, num primeiro passo, a conversão da probabilidade de automação do estudo de Frey & Osborne (Oxford) para permitir comparações internacionais. Em seguida, realizamos cruzamentos com outras informações sobre os trabalhadores (sexo, idade, escolaridade e salário) e empresas (tamanho e setor). Também calculamos um índice para cada um dos 5.570 municípios do país para geoespacializar o impacto da automação.
A ameaça consiste nos quase 27 milhões de trabalhadores formais (60% do total) que se encontram em ocupações com alta probabilidade de automação (acima de 70% de risco) nas próximas décadas.
IHU On-Line – O que esses dados revelam acerca do desenvolvimento tecnológico no Brasil?
Yuri Lima – A análise histórica que fizemos ajuda a responder essa questão. Entre 2003 e 2016 mais de nove milhões de empregos foram criados em ocupações com alta probabilidade de automação (70% ou mais), sendo seis milhões acima de 90% de probabilidade de automação distribuídos principalmente nas áreas de Suporte Administrativo, Construção & Extração e Serviços. Do outro lado do espectro, onde estão as ocupações com baixa probabilidade de automação (30% ou menos), 3,8 milhões de empregos foram criados principalmente em educação, saúde, gestão e computação, Engenharia e Ciência.
Quando observamos a Suíça e o Reino Unido, países avançados que têm análise similares, algo bem diferente aconteceu nos últimos 10 ou 20 anos. Nesses países, o emprego foi reduzido nas ocupações com maior probabilidade de automação e as ocupações com menor probabilidade de automação foram as que mais tiveram aumento em termos de número de empregos.
Esse é um dos reflexos do baixo investimento em pesquisa e educação no Brasil. Não tem como criar emprego em atividades de alto valor agregado que tendem a exigir um nível de escolaridade mais alto sem ter o mercado de trabalho preparado para isso.
IHU On-Line – Outro dado da pesquisa é de que Sul, Sudeste e Centro-Oeste, regiões mais industrializadas, sentirão os maiores impactos da automação. O que isso revela acerca da indústria nacional? Em que medida essa indústria já vive a transformação de uma Revolução 4.0?
Yuri Lima – Isso revela que ainda há um grande espaço para entrada da automação na indústria brasileira. A baixa utilização de robôs no Brasil é um dado que mostra isso. Para além da indústria, entendemos que os setores de serviços e varejo, muito fortes nessas regiões, também puxam o índice de automação para cima.
IHU On-Line – Em que setores da economia a automação já é uma realidade e em quais ela tende a crescer?
Yuri Lima – A automação ainda tem espaço para crescer em todos os setores da economia no Brasil. Alguns estão mais avançados, como a agronomia. Ainda há uma baixa utilização de robôs no Brasil quando comparado com outros países, como Alemanha e Japão. Fora a aplicação mais óbvia na indústria, a robótica tem sido adotada fortemente em setores como o da saúde. Outros exemplos de setores com potencial para automação que tendem a ser ainda mais explorados no futuro são a administração pública, o direito, a construção e o comércio.
IHU On-Line – Como o processo de automação tem acontecido no campo? Quais foram as consequências desse processo?
Yuri Lima – Atualmente, a automação já se encontra em estágio bem avançado no campo. O movimento do trabalho foi do campo para as indústrias e das indústrias para o setor de serviços.
IHU On-Line – Depois do campo, a automação brasileira está chegando à indústria. Qual será o próximo estágio e quais os impactos no mundo do trabalho?
Yuri Lima – A indústria passou por um forte processo de automação ao longo das últimas revoluções industriais. O próximo estágio é a indústria 4.0, que representa uma forte integração entre diversas tecnologias já existentes dentro das fábricas. As fábricas as tornam cada vez mais automatizadas e integradas, principalmente com o impacto da Internet das Coisas.
IHU On-Line – Qual deve ser o impacto dessa automação na realidade de municípios? Quais os desafios para as cidades lidarem com esses cenários?
Yuri Lima – Considerando os municípios com mais de 10.000 trabalhadores, o impacto varia entre 56% (Caxias-MA) e 81% (Nova Serrana-MG), sendo a média e a mediana do índice 69%. Todos os municípios do país tendem a ter algum impacto, mas a diversidade entre os casos de cada um dificulta uma análise generalizada. Temos trabalhado para regionalizar mais a nossa pesquisa e alguns resultados já podem ser visualizados na plataforma LABORe Gov.
Nossa visão é a de que cada cidade precisa diagnosticar, a partir dos dados e das pesquisas disponíveis e de outras a serem realizadas, a sua situação. Sem esse primeiro passo, torna-se difícil entender o cenário atual e, muito menos, realizar projeções, dificultando a elaboração e o acompanhamento de políticas públicas efetivas.
IHU On-Line – Como o Brasil vem discutindo, tanto em termos de políticas públicas como em fóruns de iniciativa privada, a automação do mercado de trabalho?
Yuri Lima – Não só a automação, mas o debate sobre o futuro do trabalho no Brasil ainda é muito incipiente. Essa discussão já tem sido considerada importante por diversos países há alguns anos. Dentre os países que se encontram na frente nessa discussão podemos destacar a Alemanha e o Reino Unido, onde o tema está presente nos governos, instituições de pesquisa, empresas, sindicatos e na sociedade.
Em geral, quando se vê uma discussão sobre o futuro do trabalho no Brasil, tende a ser uma importação de ideias do exterior. É preciso entender que o Brasil é muito diferente dos países economicamente desenvolvidos. Assim, a produção de conhecimento sobre o tema precisa ser feita considerando as particularidades nacionais. Além disso, o país é de proporções continentais e é muito complicado fazer generalizações quando olhamos para diversidade socioeconômica dos 5.570 municípios brasileiros.
IHU On-Line – O país tem hoje um alto número de desempregados. O quanto essa automação já vem influenciando esses índices de desemprego?
Yuri Lima – Na minha visão, a situação atual da taxa de desemprego, que supera os dois dígitos há mais de três anos, se deve, principalmente, à turbulência política pela qual o país passa desde 2013 e que ajudou no surgimento da crise econômica de lenta recuperação na qual nos encontramos. Como automação envolve investimento por parte dos empresários, o que tem sido baixo dada a insegurança econômica, acredito que a automação tenha tido pouco impacto no desemprego no país.
IHU On-Line – Apenas a qualificação profissional de uma massa de desempregados não assegura a empregabilidade, pois com a automação também se reduz o número de postos de trabalho. Correto? Como responder a essa realidade pensando além da ideia de qualificação de seres humanos para operarem máquinas?
Yuri Lima – A qualificação é fundamental, mas não pode ser a única ação. É preciso melhorar a educação como um todo e isso passa por entender que a automação não é um processo que resulta apenas na destruição de postos de trabalho, mas que pode envolver o deslocamento do trabalhador para atividades que a máquina ainda não executa. Assim, dificilmente um trabalhador não terá que interagir com uma máquina no futuro, e preparar esses trabalhadores exige uma forte inclusão da tecnologia nos currículos.
Para além das mudanças na educação, é preciso planejamento na adoção da automação. Isso ajuda a reduzir o impacto negativo da automação.
IHU On-Line – Quais os desafios para o Brasil não frear os avanços em tecnologia e automação, mas, ao mesmo tempo, não jogar uma massa de trabalhadores no desemprego?
Yuri Lima – É preciso entender que num país de desemprego acima dos dois dígitos, a proteção do trabalhador deve ser prioridade. Dito isso, tem uma grande diferença entre proteger os trabalhadores e proteger determinados empregos. Proteger o trabalhador só pode ser feito com planejamento, entendendo quais tecnologias emergentes podem impactar quais ocupações no futuro e encontrar trajetórias de requalificação para os trabalhadores impactados. Isso leva tempo e deve ser visto como uma obrigação moral de qualquer empregador responsável que realizar esse tipo de previsão, assim como planejar diversos outros aspectos do seu negócio com antecedência caso deseje bons resultados. Os sindicatos e governos também têm papel fundamental nesse planejamento e devem realizar seus próprios esforços nesse sentido. Proteger o emprego, por outro lado, é uma atividade reativa, por vezes necessária para evitar catástrofes maiores causadas pela falta de planejamento.
A automação tende a representar um ganho de produtividade que, como se sabe, não é muito alta no Brasil. Assim, a automação se torna importante para aumentar a competitividade da produção brasileira e fazer o país avançar economicamente. Em suma, a automação, quando feita de forma responsável, é elemento fundamental para o avanço socioeconômico.
IHU On-Line – Que contribuições as universidades podem dar ao processo de automação em curso no país?
Yuri Lima – Caso recebam o investimento necessário, as universidades têm grande capacidade de atuarem ainda mais como polos de inovação gerando tecnologia nacional. As universidades também podem contribuir produzindo conhecimento sobre como lidar com as novas tecnologias a partir de diversos pontos de vista como o legal, ético, social e também de saúde.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Yuri Lima – Tanto o nosso estudo quanto estudos anteriores demonstraram que o impacto da automação tende a se concentrar sobre os trabalhadores mais vulneráveis (menor renda, jovens e menor nível de formação) e que terão mais dificuldades para se requalificar. Dessa forma, para reduzir o impacto negativo da automação, será preciso uma atuação conjunta de atores sociais, como governos, empresas, sindicatos e instituições de ensino. Não devemos encarar a projeção apresentada com medo, mas sim como uma preocupação que não pode ser ignorada.
Fonte: IHU On-Line
Texto: João Vitor Santos
Data original da publicação: 17/12/2019