Com a desindustrialização e o ingresso subalterno na globalização neoliberal, industriais viraram rentistas e comerciantes. Abriram espaço para o agronegócio se vender como ilha de prosperidade – e transformar Brasil em “fazendão do mundo”.
Marcio Pochmann
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 08/09/2021
O manifesto em defesa da manutenção da estabilidade institucional lançado exclusivamente por entidades do segmento econômico do agronegócio no dia 30 de agosto revela fissuras no interior do domínio burguês. Depois de mais de três décadas de inserção subalterna do Brasil na globalização, o poder da oligarquia agrária se impôs novamente, com forças para subordinar as demais frações do capital.
Enquanto as instituições vinculadas aos setores industriais e financeiros se dividiram, expressando o curso da desarticulação do sistema produtivo, o setor do agronegócio reapareceu como uma espécie de ilha de prosperidade a conceder maior legitimidade ao poder burguês. Entre as décadas de 1930 e 1970, a burguesia industrial se firmou como dominante nas diferentes frações do capital. (NR: veja o artigo de Adhemar Mineiro, A volta do Pato?)
Com a crise da dívida externa, logo no início dos anos 1980 e, sobretudo, o ingresso passivo e subordinado do Brasil na globalização neoliberal desde 1990, a hegemonia no poder burguês se concentrou na dominância crescente da fração do capital financeiro. Nas décadas de predomínio da política econômica neoliberal, conduzida em prol da abertura da conta de capital, de altas taxas de juros e do câmbio valorizado, a burguesia industrial se metamorfoseou em rentistas do setor financeiro ou comerciante de mercadorias montadas a partir da importação de seus componentes.
No contexto histórico da desindustrialização que solapou a dinâmica econômica e política que cimentava a unidade nacional, o país foi assistindo ao processo de autonomização das regiões geográficas deixadas, cada vez mais, à sua própria sorte. Exposto à competição predatória pela sedução dos investimentos externos, das disputas fiscais e da privatização de ativos e da gestão pública, o poder burguês dominado pela financeirização perdeu a capacidade tanto da defesa do espaço econômico nacional como da negociação da atuação internacional.
Diante da desintegração do sistema produtivo, o espaço econômico nacional foi sendo segmentado numa espécie de arquipélago constituído por ilhas de prosperidade mediadas pelo mar do pauperismo. O congelamento dos ganhos de produtividade expresso pela estagnação da renda per capita nacional foi acompanhado da perda de importância relativa do Brasil no mundo, com o declínio de sua participação relativa no PIB global de 3,2%, em 1980, para 1,6%, em 2020.
A volta à condição de fazendão
Pela aclimatação subalterna à globalização dos mercados, ao Brasil restou a volta ao leito natural da condição de fazendão, reposicionando-se na Divisão Internacional do Trabalho enquanto produtor e exportador de produtos primários. Ou seja, a centralidade do mercado externo é capaz de moldar o figurino da desconstrução de qualquer obstáculo que possa comprometer os negócios associados à importação e à exportação.
O esvaziamento do interesse pelo mercado interno se revelou no aliciamento do Estado aos programas de ajuste fiscal que, em vez de prejudicar, favoreceram o agronegócio. Assim, as ações governamentais se difundiram em operações de salvamento do pagamento de dívidas contraídas junto ao Estado, das desonerações e isenções creditícias e fiscais (lei Kandir para exportação e cota zero para contribuir com PIS/Cofins), de reformulação no código florestal, da liberação no uso de agrotóxico, entre tantas outras medidas de interesses da oligarquia agrária.
No Congresso Nacional, cresceu a hegemonia da bancada ruralista, enquanto nos meios de comunicação comercial, a propagação massiva da linguagem exitosa de que o agro seria pop concedeu o tom da efervescência com que o poder burguês conviveu com modificações intensas no interior das frações do capital. Com o golpe de 2016, deu-se a revelação de que, pela quinta vez no período republicano brasileiro, a força bruta da muralha oligárquica agrarista estava dominante novamente.
A primeira vez que isso aconteceu foi no longínquo ano de 1898, com a ascensão de Campos Salles ao cargo máximo do executivo, quando interrompeu os anseios industrializantes de militares e abolicionistas estabelecidos logo no início da República. Com a política do café com leite, a elite agrária paulista e mineira passou a se revezar no comando das demais esferas do capital ao longo da República Velha (1889-1930).
Pela contrarrevolução de 1932, ocorre o aparecimento da muralha oligárquica agrarista pela segunda vez, capaz de constranger o movimento de modernização presente nas forças da Revolução de 1930. Assim, conseguiu evitar que ocorressem transformações no campo, impedindo a concretização tanto da reforma agrária como da chegada da legislação social e trabalhista aos trabalhadores rurais.
No golpe de Estado de 1964, a muralha da oligarquia agrária se levantou em torno da obstaculização das reformas de base lideradas pelo Partido Trabalhista Brasileiro. Com a ditadura civil-militar (1964-1985), o meio rural registrou importante impulso modernizador, sobretudo com o avanço da fronteira de exploração extrativa mineral e agropecuária.
Nos anos 1980, a quarta manifestação da muralha do agrarismo oligárquico transcorreu mediada pela transição do autoritarismo para a democracia. Com a ascensão da União Democrática Ruralista (UDR), por exemplo, os grandes proprietários rurais se reorganizaram, passando a deter crescente bancada parlamentar no legislativo, em defesa dos seus interesses diretos, exercendo pressão constante sobre os poderes judiciário e executivo.
Diante disso, se dá a possibilidade efetiva de interromper a longa fase de perda de importância relativa do agronegócio na economia brasileira. Se em 1997, o agronegócio respondia por 16% do PIB brasileiro, ante 56% referente ao PIB de 1959, no ano de 2020, alcançou 26% do PIB.
No interior do conflito intercapitalista, o aparato de Estado voltado às políticas públicas terminou potencializando o reaparecimento da muralha oligárquica agrarista. Ao reorganizar e agregar a sua composição regional, o agronegócio avançou o seu maior espaço dentro do poder burguês, encontrando a sua legitimação econômica no comando do PIB e das exportações.
Marcio Pochmann é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. Concorreu duas vezes a prefeitura de Campinas-SP (2012 e 2016). Publicou dezenas de livros sobre Economia, sendo agraciado três vezes com o Prêmio Jabuti.