A herdeira paulistana Margarida Bonetti está em evidência, mas menos por causa do crime de escravidão pelo qual foi acusada nos Estados Unidos no final do século 20. Investigada pelo FBI por submeter uma mulher à servidão, nos últimos anos ela viveu foragida, em anonimato, em uma velha mansão do bairro de Higienópolis, um dos mais caros da capital São Paulo.
Filha de uma família que já foi das mais poderosas da cidade e que até hoje tem patrimônio considerável, ela teve sua vida anônima e reclusa interrompida pelo lançamento do podcast A Mulher da Casa Abandonada, que investigou o crime e propôs um debate sobre a escravidão moderna no Brasil, inclusive com um episódio inteiramente dedicado a relatar casos semelhantes.
O podcast viralizou, atraindo muita atenção do público, mas o racismo de um caso que teve uma mulher negra escravizada por décadas não é o tema mais discutido. Em vez disso, boa parte da mídia explora a curiosidade em torno da branca rica, figura que simboliza e mentalidade racista da elite tradicional brasileira. E as coberturas são, muitas vezes, coniventes com ela, apesar do crime hediondo que cometeu.
Bonatti foi investigada e procurada pelo FBI por um ato que está na lista de crimes contra a humanidade. No entanto, nos últimos dias, as discussões sobre ela passaram a se concentrar, sobretudo, na fantasia da figura excêntrica, que vive em condições insalubres e tem patrimônio deteriorado. Houve sugestões até mesmo de que ela é vítima de negligência e abandono de incapaz pela família.
“A mídia, em geral, trata as questões raciais de uma forma bastante leviana. Sem respeito à nossa história, ao contexto e a discussões futuras. Quando isso vem à tona, eu sempre lembro de uma música do Emicida que fala ‘a dor do judeu choca e a nossa vira piada’. A reverberação desse caso da casa abandonada em Higienópolis é exatamente isso”, afirma Taís Oliveira, pesquisadora que compõe o Grupo de Pesquisa em Comunicação Antirracista e Pensamento Afrodiaspórico da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom).
Na quarta-feira (20), a Polícia Civil de São Paulo foi até a casa de Margarida Bonetti para investigar as condições em que vive a acusada por trabalho análogo à escravidão. Vizinhos teriam denunciado riscos no imóvel. A herdeira passou por exames médicos e disse que não quer deixar o local.
Do lado de fora da casa, uma multidão de curiosos, jornalistas e influenciadores acompanhava a operação em tempo real com transmissões em perfis nas redes sociais e em programa policiais da TV aberta.
Para Taís Oliveira as repercussões reforçam uma prática padrão do chamado populismo penal midiático. “Todos os dias, pelo menos uns três ou quatro canais da TV aberta, em horário nobre, têm um programa baseado em populismo penal midiático. Julgar, expor, acompanhar ao vivo perseguição, assassinato. Na maioria das vezes é com corpos negros que nem tiveram a oportunidade de passar por um processo legal de investigação para serem julgados.”
Na mesma operação policial que levou uma multidão à mansão deteriorada de Margarida Bonetti, uma famosa da internet, que protagoniza operações midiáticas de resgate de animais, tirou um cachorro da casa sob protestos da moradora.
A cena viralizou rapidamente. O circo armado justamente no dia em que foi ao ar o último episódio do podcast de Chico Felitti não passou despercebido por quem criticou a banalização do mal e a jogada para escanteio do debate sobre racismo e escravidão no Brasil.
“Essa discussão ter se tornado uma trend no Tik Tok, ter virado uma lenda urbana, as pessoas irem lá fotografar a casa, a galera dos direitos animais ir lá discutir os direitos dos cachorros. Obviamente que eu não estou invalidando a importância e a vida de um animal. Muito pelo contrário, é importante também. Mas é curioso quando essa pauta sobressai à temática central desse podcast, que é falar sobre a escravidão moderna, falar que essa mulher está foragida e que está tranquilamente vivendo em Higienópolis”, observa Taís Oliveira.
A pesquisadora destaca ainda outra particularidade das repercussões que reforça a displicência da mídia e da sociedade frente ao racismo e a desigualdade, “Higienópolis, junto com Santa Cecília, República, Glicério, é a região onde temos uma concentração de muitas pessoas em condição de rua. A cracolândia, nessa etapa de estar em vários lugares do centro, também se concentra ali e a casa abandonada da branca racista é o destaque da região.”
Taís Oliveira aponta que evitar a distorção de debates tão importantes passa necessariamente por uma reformulação essencial a toda a sociedade brasileira. Não basta aumentar o número de profissionais pretos e pretas ou simular a representatividade em campanhas antirracistas que não promovem efetiva mudança estrutural. Ela ressalta que até mesmo as instituições brasileiras de pesquisa em comunicação só passaram a criar espaços para a discussão racial há alguns meses.
“Isso significa mover as estruturas. Este ano, temos a oportunidade de apresentar diversos trabalhos, reflexões, pesquisas, discutir nos congressos com os nossos colegas, tanto pesquisadores como formadores de novos profissionais.”
A formação e a inserção de profissionais, inclusive, é um dos pontos de destaque da análise da pesquisadora. Ela lembra que o Brasil passará em breve por uma revisão da política de cotas para as universidades federais, “Isso não pode ficar só na mão do movimento negro”, pontua veementemente.
“Agora é o momento crucial de vermos os aliados participarem dessa conversa ativamente, participarem em prol da renovação e da melhoria da lei. Para que em um futuro muito próximo a gente tenha mais e mais profissionais que vão contribuir com o desenvolvimento de uma sociedade mais plural e diversa e que, futuramente a gente não tenha que sair tanto do foco de pautas como essa.”
É uma mudança que, nas palavras da pesquisadora tem potencial de reorientar o debate e poderia ter beneficiado até mesmo o podcast A Mulher da Casa Abandonada.
“Uma sugestão, por exemplo, seria o Chico Felitti e a produção do podcast convidarem jornalistas pretos para fazer parte dessa pauta, para desenvolver essa pauta, para tensionar aspectos raciais, para pelo menos tentar diminuir a probabilidade desse conteúdo, que é muito rico e importante parra o debate, dispersar do tema central.”
Fonte: ABET, com Brasil de Fato
Data original da publicação: 21/07/2022