A luta de classes em torno do Carnaval

Patrimônio imaterial de toda classe trabalhadora, o carnaval precisa ser um evento realmente popular que gere renda para quem mais precisa e valorize os artistas locais.

Victória Pinheiro e Jones Manoel

Fonte: Blog da Boitempo
Data original da publicação: 16/02/2022

O tradicional Carnaval pernambucano contagia nossa população do litoral ao sertão, levando milhões de foliões a se encontrarem nas ruas de mais de 50 cidades para festejar o maior Carnaval de rua do país. No entanto, a tradicionalidade fala também sobre outros setores da vida dos trabalhadores pernambucanos que, além da folia, têm na festa de rua sua principal fonte de renda do ano.

Em um período de 5 anos, o impacto econômico do Carnaval pernambucano cresceu em R$1 bilhão, saindo de R$1,2 bilhão em 2016 para R$2,3 bilhões em 2020. Reflexo do crescimento da festa, que em 2015 movimentava pouco menos que 1 milhão de turistas, crescendo para quase 2 milhões na sua última edição antes da pandemia.

No entanto, apesar da importância cultural e econômica, a face não tão oculta da folia do rei momo é marcada por desfinanciamento, favorecimento de grandes empresas em detrimento dos pequenos comerciantes e trabalhadores informais, atraso no pagamento de artistas locais e favorecimento de grandes artistas de fora do estado. O investimento no Carnaval pernambucano, por parte do governo do estado, girou em torno de R$20 milhões nos últimos 6 anos, com um crescimento de apenas R$6 milhões de 2016 até 2019.

Além do investimento do governo do estado, as próprias prefeituras captam recursos para a festa. Entretanto, nos últimos anos, pudemos observar uma queda expressiva no investimento municipal, como é o caso da prefeitura da cidade do Recife (PCR), que saiu de um investimento de R$35 milhões em 2015 para R$25 milhões em 2020, dos quais R$7 milhões eram oriundos da iniciativa privada; ou como Olinda no ano de 2020, dos R$8 milhões investidos pela prefeitura, 70% vieram da iniciativa privada.

Essa redução no orçamento do Carnaval impacta diretamente a cadeia de trabalhadores artistas, que têm no evento sua principal renda. Uma expressão desse impacto é registrada com a queda expressiva do orçamento destacado para o apoio a agremiações culturais locais. Em 2015, a Prefeitura do Recife destinou R$4,5 milhões para apoiar 264 agremiações, enquanto em 2020 o número de agremiações apoiadas passou para 332, mas o orçamento caiu para R$2,7 milhões. Isso significa que cada vez mais artistas precisam de suporte do Estado, enquanto recebem menos incentivo financeiro num período de forte ataque à cultura popular por parte do governo federal e de aumento acelerado do custo de vida.

Aliado ao baixo investimento, os artistas pernambucanos, sobretudo os de expressividade local, sofrem com o descaso da prefeitura do Recife e do governo do estado na hora de receber pelo seu trabalho. Nós rastreamos uma porção de denúncias que se repetem, pelo menos desde 2013, ainda no governo Eduardo Campos. Naquele ano, diversos artistas deixaram de tocar no Carnaval organizado pela prefeitura do Recife e pelo governo de Pernambuco alegando atraso no pagamento dos cachês.

O cantor China foi um dos primeiros a se posicionar em 2013. O artista publicou uma nota num blog pessoal informando que não participaria do Carnaval de Pernambuco devido a atrasos no pagamento, informou que essa já era uma prática costumeira e que se submetia a receber com meses de atraso, mas que a situação se tornou insustentável quando levou quase um ano para ser remunerado. O movimento de boicote foi aderido por outros artistas conhecidos na cena cultural pernambucana, que publicaram notas afirmando que não tocariam no Carnaval daquele ano pelo mesmo motivo, como foi o caso de Nação Zumbi, Alessandra Leão e Rodrigo Caçapa.

Em resposta às denúncias, a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) responsabilizou os artistas, alegando que o não pagamento se dava por irregularidades na documentação dos mesmos e que os pagamentos estavam quase todos feitos, com exceção desses casos.

No entanto, o que seria responsabilidade dos artistas envolvidos voltou a ser manchete nos jornais do estado. Em 2015, uma matéria do Diário de Pernambuco publicada em 10 de abril, praticamente dois meses após o Carnaval, denunciou que apenas 28% dos artistas que se apresentaram no evento daquele ano foram pagos, enquanto o governo alegava que os pagamentos seguiam um fluxo normal.

Naquele ano a festa contou com 576 apresentações culturais em 31 cidades de Pernambuco. Desse total, apenas 164 artistas haviam sido pagos ou estavam em previsão de desembolso na data da matéria. Segundo o jornal, os artistas locais eram os mais prejudicados, ou seja, justamente aqueles que não possuem uma grande estrutura jurídica e financeira por trás de seu trabalho. Uma das entrevistadas pelo jornal foi Marília Vilas Boas, integrante do grupo Coco de Seu Mané, que explicou que o contrato previa o pagamento até quarenta dias após os shows. O grupo, que realizou duas apresentações no evento, já havia enviado toda a documentação necessária, entre notas fiscais e registros fotográficos, para comprovar que os shows aconteceram, mas ainda não havia sido remunerado.

O calote do setor artístico não é privilégio do Carnaval. Outras festividades tradicionais como o São João ou o Festival de Inverno de Garanhuns (FIG) também já foram palco de denúncias do tipo. Em 2016, foi a vez de cantores como Irah Caldeira e Maciel Melo denunciarem que não receberam os cachês referentes a apresentações no São João do interior do estado e no FIG. A denúncia de Irah expôs que o atraso já se estendia por cinco meses e que dependia do cachê para pagar os seus 21 companheiros de banda.

Em mais um ano de denúncias contra o não pagamento de cachês, em janeiro de 2018, Lia de Itamaracá, grande representante da cultura pernambucana, recusou-se a cantar no Carnaval organizado pelo governo do estado, uma vez que não recebeu por shows realizados em junho, julho, outubro e dezembro do ano anterior. A cirandeira expôs que o montante acumulado em atraso era de R$37 mil, o que comprometia a remuneração de todo o complexo artístico que trabalha com ela, por isso seus músicos também se recusaram a tocar enquanto não recebessem o cachê.

No mês de junho daquele ano uma nova denúncia foi feita, dessa vez coordenada pelo grupo coletivo Pernambuco. Eles publicaram um manifesto contra o atraso que foi assinado por grupos como A Banda de Pau e Corda e o Quinteto Violado, e onze artistas como Marrom Brasileiro, Maestro Spok, Nena Queiroga e Almir Rouche, reclamando do desrespeito e da falta de compromisso do governo do estado. Segundo o manifesto, a Fundarpe não se pronunciava a fim de explicar o motivo do atraso tão longo no pagamento dos cachês.

Em novembro de 2018, mais denúncias foram feitas quando o Sindicato dos Músicos Profissionais do Estado de Pernambuco (Sindimupe) divulgou uma nota de repúdio contra os atrasos nos pagamentos dos cachês de artistas do estado, alegando que o montante em atraso correspondia a mais de R$1 milhão. Os artistas envolvidos alegaram que procuraram o governador do estado, mas que nunca foram atendidos ou respondidos.

Os atrasos recorrentes chegaram à Alepe em 2019, quando parlamentares cobraram do governador informações oficiais sobre os valores devidos referentes ao Carnaval e São João de 2018, além do carnaval de 2019. Também foram questionados os motivos pelos quais artistas, grupos, agremiações, quadrilhas juninas, empresas de montagem de palco, de som, iluminação e segurança, entre outras contratadas, ficaram sem receber. No entanto, não houve nenhuma resposta do governo.

Infelizmente, os artistas não são os únicos prejudicados pela gestão que o PSB faz do carnaval pernambucano. Outras categorias que sofrem com as preferências do governo do estado e das prefeituras são os trabalhadores informais, ambulantes e pequenos comerciantes.

Tomando como exemplo a Central do Carnaval, uma estrutura organizada pela Secretaria de Turismo e Lazer da Prefeitura do Recife a fim de ofertar diversos serviços ao público como lanchonetes, balcão de informações, caixas eletrônicos e outros, que recebe mais de 400 mil visitas e movimenta mais de R$460 mil, vemos o tamanho da burocracia para que um comerciante consiga espaço para atuar de forma regular na estrutura. Além de exigir comprovação de experiência na atividade desenvolvida, ao menos em 2014, o edital propunha que a seleção de comerciantes fosse feita “mediante o maior lance, que será a partir de R$900”, numa espécie de leilão.

A própria Arena Gastronômica, onde são alocados serviços de alimentação, conta com uma maioria de restaurantes e franquias já estabelecidos economicamente, com público-alvo de classe média. Uma licença para atuar como ambulante em Olinda, que garante que seu produto não será apreendido pela polícia, em 2016, custava entre R$194, para barracas de 2m x 1m, e R$2240, para estandes de 6m x 3m. Em 2020, somente a taxa de validação do cadastro de ambulantes que já atuam no Carnaval de Olinda custava entre R$83,18 (tabuleiro e varal), R$304,15 (toldo) e R$377,80 (food truck e porta e janela), o que inviabiliza uma possível legalização para muitos trabalhadores.

Nesse ponto é importante destacar que Pernambuco bateu recorde de informalidade no ano de 2020, com 48,8% da população ocupada nesse segmento, segundo o IBGE. O que faz com que o debate sobre a burocracia e carestia para atuação no Carnaval seja ainda mais importante.

Historicamente, o governo do estado investe em uma grande estrutura de fiscalização urbana efetuada pela Guarda Municipal e pela Secretaria de Mobilidade e Controle Urbano, que atuam 24h por dia, no período carnavalesco, reprimindo o comércio informal não licenciado. As apreensões de material de trabalho, bebidas, comidas, isopores, carroças, barracas, entre outros, cresce ano após ano, enquanto nenhuma política de legalização em massa do comércio informal é adotada.

Com a chegada da pandemia, a situação das categorias que dependem do carnaval se agravou. Em 2021, o evento foi cancelado e, como política para esse momento, a prefeitura do Recife lançou o programa AME – Auxílio Municipal Emergencial, aprovado por unanimidade na Câmara de Vereadores e sancionado pelo prefeito no dia 16 de fevereiro. O auxílio foi destinado a agremiações e atrações artísticas que se apresentaram no carnaval de 2020 organizado pela prefeitura.

O benefício que deveria amparar a cadeia produtiva e criativa da cultura, uma das mais impactadas pela pandemia e pela necessidade de suspensão de eventos e aglomerações, contou com orçamento de apenas R$4 milhões, dos quais R$1,5 milhão era proveniente da Ambev, maior patrocinadora do Carnaval do Recife, ou seja, a prefeitura em si destinou apenas R$2,5 milhões para o setor artístico e cultural.

Cerca de 160 agremiações e 900 atrações artísticas estavam aptas a receber o benefício, totalizando mais de 27 mil trabalhadores que dependem do auxílio. O cadastro foi realizado por 100% das agremiações e mais de 90% das atrações. Se fossemos dividir igualmente o valor destinado para o AME pela quantidade de trabalhadores envolvidos nas agremiações e atrações aptas a receberem o auxílio, teríamos pouco mais de R$148 por pessoa. Considerando que os valores eram baseados nos cachês recebidos no ano anterior, a tendência é de que os artistas mais precarizados recebam menos.

No âmbito estadual, o edital do Auxílio Emergencial Ciclo Carnavalesco de Pernambuco destinou ainda menos recursos para auxiliar essa categoria, com um investimento de apenas R$3 milhões. A estimativa era alcançar 450 cantores, blocos, agremiações e outros, atendendo cerca de 20 mil pessoas. Para acessar o benefício era preciso comprovar domicílio no estado e ter participado ao menos uma vez da programação do Carnaval de Pernambuco nos anos de 2018, 2019 ou 2020.

O valor do auxílio correspondia a 60% do cachê recebido pelo artista ou grupo nos últimos ciclos carnavalescos, com piso de R$3 mil e teto de R$15 mil. Sendo considerado o “histórico de trabalho artístico” do solicitante para que se avaliasse a presença de elementos das tradições do Carnaval na sua produção.

Outro ponto de controvérsia nas políticas destinadas ao setor das artes e cultura em tempos de pandemia foi a execução da Lei Aldir Blanc no estado. Segundo matéria do G1 de janeiro de 2021, muitos artistas pernambucanos que foram aprovados para receber os benefícios da Lei, que se propõe a ser um auxílio emergencial para os trabalhadores da cultura financiado pelo Governo Federal, não receberam o benefício mesmo após o recurso chegar para o governo estado.

A lei foi sancionada em junho de 2020, mas o dinheiro só saiu do papel em agosto daquele ano. Em setembro, R$74 milhões foram repassados pelo Ministério do Turismo ao Governo do Estado de Pernambuco e no mesmo mês a secretaria de cultura convocou artistas para se cadastrar a fim de receber o auxílio de R$600 mensais, já em outubro o governo do estado abriu inscrições para projetos de cultura. O auxílio e os projetos aprovados começaram a ser pagos em dezembro e deveriam ser finalizados até o fim do ano.

No entanto, ao final de 2020, mais de R$2,5 milhões foram gastos, beneficiando apenas 814 pessoas e R$45 milhões foram reservados para os 2020 projetos aprovados. Até o fim de 2020, a matéria apurou que foram reservados R$48 milhões, sobrando R$26,5 milhões do repasse feito pelo governo federal. Após as cobranças nos atrasos de pagamento e da não utilização integral dos recursos, o governo alega que a burocracia é a culpada, pois se trata de um grande volume de dinheiro para ser empenhado rapidamente pelo governo, jogando a culpa para o governo federal.

O resumo da opera é bem claro. O PSB, seja no governo do estado ou nas prefeituras, desprestigia os artistas e grupos locais, criminaliza o trabalhador, investe cada vez menos no Carnaval, atua na lógica da promoção da “camarotização” da festa e busca tornar a comemoração mais importante do ano em um mero espaço para acumulação privada de capital.

Essa forma de atuação do PSB fica escancarada quando o Carnaval de rua e as festas públicas foram de pronto adiadas, ainda em janeiro de 2022, e as festas privadas e camarotes, só recentemente, foram suspensas formalmente – falamos formalmente, pois, na prática, continuam acontecendo e a fiscalização é quase inexistente.

A luta de classes é feita pela riqueza e pela cultura. O Carnaval é um patrimônio imaterial de toda classe trabalhadora de Pernambuco e precisa ser defendido. Precisamos pautar um evento realmente popular, que gere emprego e renda para quem mais precisa, valorize e fortaleça os artistas locais, tenha a cara do nosso povo e seja uma explosão de alegria nos espaços públicos. Não o Carnaval dos camarotes, das grandes marcas e dos shows milionários, mas o das ladeiras de Olinda, das praças do Recife, dos papangus de Bezerros, do maracatu, caboclinho, afoxé e todos os ritmos da nossa terra.

Jones Manoel é pernambucano, filho da Dona Elza e comunista de carteirinha. Começou sua militância na favela onde nasceu e cresceu, a comunidade da Borborema, construindo um cursinho popular, o Novo Caminho, junto com seu amigo Julio Santos (ele, Julio e outro amigo, Felipe Bezerra, foram os primeiros jovens da história de Borborema a entrar em uma universidade pública). Depois de dois anos com o cursinho popular, passou a militar no movimento estudantil em paralelo ao seu curso de história na UFPE. Pouco tempo depois, ingressou nas fileiras da UJC (a juventude do PCB). Ativo no movimento estudantil até 2016, hoje atua no movimento sindical e na área da educação popular. Mestre em serviço social, atualmente é professor de história, mantém um canal no YouTube e participa do podcast Revolushow. Segue militante do PCB.

Victória Pinheiro é diretora de políticas educacionais da UNE, secretaria de movimento estudantil da UJC-PE, membra da coordenação nacional da UJC e pré-candidata à deputada federal pelo PCB-PE.

One Response

  • O artigo é cheio de equívocos, chavões automatizados, e impessionantes aos menos avisados. Parece desconhecer completamente até mesmo a dinâmica e o empobrecimento, declínio, quase desaparecimento, do carnaval de Recife e de Olinda (hoje, palco pra camadas médias, pra indú$tria cultural, pro turi$$mo, pros arremedos de frevo – que desapareceu, o passo, a dança do frevo de rua, hoje estereotipada em escolinhas de frevo pra exibição que mal imita os passos espontâneos do povo ns ruas de tempos atrás – Waldema Oliveira tem pequeno artigo sobre o empobrecimento da riqueza dos inúmeros passos de frevo – na FUNDAJ Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais -Recife – certamente se encontra o artigo) / Os autores são bem jovens, o que não justifica o desconhecimento da historia do carnaval com festa popular (festa popular não é, por si só, com muita gente) é a que não pensa em nada mais do que bincar, se fantasiar, não raro nem tá aí pros “politicamente correto’, sem o discurso em tabalhadores, “trabalhadores do Brasil” pra lembrar G Vagas, sem pensar em renda, trabalho, governo e poder – sã diferentes goveno de poder – Na historia, quem bem discorre é um Bahktin sobre o declínio da festa popular (declinio, não o total desaparecimento)em erudito e maçante obra. Peter Burke também discorre em livro bem mais agradável.
    Mas , como diria um brilhante irlandês que viveu na Inglaterra e exilado pobre em Paris, numa generalização provocante: os jovens têm certezas, os velhos têm dúvidas.Ou atribuída a Picasso: “Leva-se tempo pra ser Jovem” Pra piorar,um currículo exibicionista, modernoso.
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