A luta das trabalhadoras domésticas e o legado de Dona Laudelina

Fotografia: Wikimedia Commons

É preciso reconhecer que a marginalização do acervo de lutas das trabalhadoras domésticas corresponde à abdicação de uma força motriz poderosa no enfrentamento radical ao heteropatriarcado, ao capitalismo e ao racismo.

Isadora Brandão

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 11/05/2021

O dia 27 de abril marcou o Dia Nacional da Trabalhadora Doméstica. Quero aproveitar o marco para relembrar a vida e militância de Dona Laudelina de Campos Mello (1904-1991), bem como saudar a luta das trabalhadoras domésticas no Brasil. 

Embora a data tenha transcorrido sem grande alarde, nosso país possui o maior contingente de trabalhadoras domésticas do mundo e o emprego doméstico segue sendo a principal fonte de emprego para a força de trabalho feminina, dados que revelam a magnitude e relevância indiscutível do tema.

Relembrar o repertório de lutas e saberes das trabalhadoras domésticas, estas mulheres negras que têm sido responsáveis por nos sustentar enquanto nação, é afirmar que a sua práxis carrega um norte ético-político que deve guiar as nossas ações, reconfigurar a nossa leitura de mundo e moldar as nossas utopias de emancipação. 

Nascida na cidade de Poços de Caldas (MG), Dona Laudelina de Campos Melo é uma das principais expoentes da luta das trabalhadoras domésticas no Brasil. Em 1936, ela fundou a primeira Associação Profissional dos Empregados Domésticos de Santos, que tinha como principal objetivo alcançar o direito à sindicalização.

Dona Laudelina trabalhou como babá desde os 7 anos. Quando fundou a associação, já tinha uma trajetória de militância junto a associações políticas e comunitárias negras. Ela chegou a se filiar ao Partido Comunista e integrou, a partir da década de 20, os quadros da Frente Negra Brasileira. Ela narra o que a precipitou para as lutas sociais de seu tempo: “Quando eu nasci não existia mais escravidão, mas eu via muita mulher trabalhando em casa de família em troca de um teto e comida e foi justamente contra essa forma de servidão disfarçada que briguei a minha vida inteira”. [1]

Posteriormente, Dona Laudelina fundou a Associação dos Empregados Domésticos de Campinas, para onde se mudou por volta de 1955. Ali, travou uma importante batalha contra a discriminação de mulheres negras no acesso ao emprego doméstico. Ela narra essa experiência: “Foi logo que eu vim para Campinas. De manhã, comprava o jornal Correio Popular; tava “precisa-se de uma empregada, prefere-se portuguesa; precisa-se de uma cozinheira de forno e fogão, prefere-se branca. Falei vou acabar com essa coisa.” [2]

Os esforços de re(existência) empreendidos pelas trabalhadoras domésticas ao longo dos anos têm envolvido articulações e tensões com os movimentos feminista, negro e sindical, pois as realidades dessas trabalhadoras frequentemente são negadas pelos pressupostos que informam o pertencimento pleno àqueles grupos, respectivamente, a branquitude, a masculinidade e um perfil específico de trabalhador: homem, branco, adulto, qualificado e sindicalizado. 

No Brasil, as trabalhadoras domésticas têm a face de uma mulher negra. São elas que abrem a cidade, ocupando as fileiras dos transportes públicos sucateados e superlotados, nas primeiras horas do dia, num trânsito diário das periferias em direção aos centros. Elas são responsáveis por proporcionar o bem-estar das famílias posicionadas do outro lado da fronteira social e de cor: produzem o alimento diário, garantem a roupa lavada e passada, asseguram a higiene dos lares, educam as crianças e cuidam dos mais velhos, dedicando às famílias de seus patrões tempo que não podem gozar junto às próprias famílias. São expostas a jornadas de trabalho extenuantes, a produtos químicos sem a proteção adequada, ao assédio moral e a violações sexuais.

Apesar de essencial à sustentabilidade da vida humana, o real estatuto do trabalho doméstico e as mulheres que o realizam permanecem invisíveis.

Por meio da invisibilização, se oculta como a desvalorização e sub-remuneração desse trabalho permite a redução dos custos com a reprodução da força de trabalho e a ampliação da margem de lucro do capital. Tal estratégia também permite a desresponsabilização do Estado no que tange aos investimentos em serviços públicos relacionados à socialização do trabalho reprodutivo, a exemplo de creches, lavanderias e refeitórios públicos. Essa dinâmica é extremamente útil ao projeto neoliberal, que procede com mulheres negras como se fossem fonte inesgotável de trabalho e capital, ainda que isso lhes custe a vida. 

Este paradoxo ficou latente com a pandemia mundial de COVID-19. Famílias que não abriram mão dos serviços domésticos, desacatando as recomendações de distanciamento social, foram responsáveis por ampliar a exposição das trabalhadoras domésticas e seus familiares à infeccção pelo vírus.

No estado do Rio de Janeiro, a primeira morte registrada foi de uma trabalhadora doméstica de 63 anos, que percorria semanalmente 120 km de sua casa até o Alto Leblon. A vítima contraiu o vírus da patroa, que voltara de viagem da Itália. Também nos chocou a morte do menino Miguel, que caiu do 9º andar do prédio onde a mãe, empregada doméstica, trabalhava, após ter sido ser deixado aos cuidados da patroa, mais ocupada em fazer as unhas. A professora da UFRB, Luciana Brito, ao analisar o episódio, o enquadrou como sintoma dos “delírios escravistas coloniais da sociedade brasileira”, referindo-se ao “sentimento que faz uma pessoa se rodear de serviçais num contexto de pandemia e isolamento social”[3]

Conquanto o trabalho doméstico seja essencial, em nenhum momento se cogitou institucionalmente conferir prioridade às trabalhadoras domésticas no acesso ao auxílio emergencial – para possibilitar o cumprimento do isolamento – ou à vacinação –permitindo a frequência ao trabalho.

A confluência do racismo e do sexismo ao longo da história do colonialismo e da colonialidade em nosso país tem estabelecido um padrão de inacesso das trabalhadoras domésticas a direitos sociais básicos e às políticas públicas. [4]

A CLT excetuou as trabalhadoras domésticas de seu âmbito de proteção, relegando-as à esfera do direito civil, do controle policial e sanitário. A primeira Lei a conferir mínima cidadania às trabalhadoras domésticas, de 1972, foi incapaz de superar tal  déficit de proteção legal. A Constituição de 88 respaldou o seu tratamento como trabalhadoras de segunda categoria, eis que dentre os 34 direitos assegurados aos trabalhadores em geral, apenas 9 deles foram estendidos a elas. A Emenda Constitucional nº 72/2013 prometeu a almejada equiparação, no entanto, parcela dos novos direitos reconhecidos tiveram a sua efetivação condicionada à edição de lei posterior. A lei complementar 150/2015 finalmente regulamentou a EC 72/2013, porém estabeleceu um critério para distinção entre mensalistas e diaristas, excluindo do seu campo de incidência aquelas que trabalham até dois dias na semana. Desse modo, a legislação, ao mesmo tempo em que tornou mais tangível a concretização dos direitos sociais das trabalhadoras domésticas, excluiu o imenso contingente das diaristas do seu feixe de proteção.

A trajetória de luta das trabalhadoras domésticas revela como as interseccionalidades de raça e gênero afetam o reconhecimento de direitos, mas sua importância extrapola o campo jurídico. 

Ela nos ensina que o racismo, o patriarcalismo e o capitalismo são sistemas de opressão interligados e que o trabalho doméstico e de cuidados deve ocupar um lugar central em qualquer projeto de Bem-Viver.

Ela evidencia que o “colonialismo” não acabou, a não ser em uma dimensão estritamente formal, pois continuamos vivendo sob a égide de uma colonialidade marcada por instituições racistas que estabelecem uma política de vidas descartáveis, ainda que seu trabalho seja indispensável. 

Por fim, ela disseca o nosso “racismo cordial” ao revelar como o apelo à suposta intimidade, afetividade e confiança é útil à sonegação de direitos e à preservação de desigualdades. Quem nunca ouviu a famosa frase patronal: “ela é como se fosse da família” ? Ciente dessa premissa, Luiza Batista, presidenta da FENATRAD, em entrevista recentemente publicada, declara: “Não queremos ser da família”. [5]

É preciso reconhecer que a marginalização do acervo de lutas das trabalhadoras domésticas corresponde à abdicação de uma força motriz poderosa no enfrentamento radical ao heteropatriarcado, ao capitalismo e ao racismo. 

Viva a luta das trabalhadoras domésticas! Viva Dona Laudelina!

Notas

[1] Documentário “Laudelina: suas lutas e conquistas”, disponível no Youtube.

[2] Bernardino-Costa, Joaze. Sindicato das trabalhadoras domésticas no Brasil: teorias da descolonização e saberes subalternos. Tese de Doutorado. Instituto de Ciências Sociais – UnB. 2007.

[3] Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52932110?at_custom1=%5Bpost+type%5D&at_campaign=64&at_custom2=facebook_page&at_medium=custom7&at_custom4=D441F3DE-A71F-11EA-A0D5-E1DCC28169F1&at_custom3=BBC+Brasil&fbclid=IwAR0CD6_auctWHOQHSJJPrqTcb95HtwKGPqMLu85WJZsx4i7JiJibmZ14ALU

[4] Brandão, Isadora. “Da invisibilização ao reconhecimento institucional: limites da proteção jurídica das trabalhadoras domésticas”. Letramento.2019.

[5] Disponível em: https://fenatrad.org.br/2021/04/27/27-de-abril-dia-da-trabalhadora-domestica-nao-queremos-ser-da-familia-diz-luiza-batista-presidenta-da-fenatrad/

Isadora Brandão é defensora pública do Estado de São Paulo.

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