A liberdade não veio do céu nem das mãos de Isabel

Elisiane Santos e Ludmila Reis Brito Lopes

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 13/05/2019

É desrespeitoso com a luta histórica dos movimentos negros e incompatível com os princípios constitucionais de igualdade e não discriminação a celebração da assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel no dia 13 de maio.

Tal medida aboliu oficialmente a escravidão no Brasil, quando grande parte da população negra não se mantinha mais nos cativeiros, por força da luta e resistência dos movimentos negros nos quilombos, nas irmandades, nas rebeliões como a Revolta dos Malês, bem como em razão das pressões internacionais, tendo sido o Brasil o último país da América a fazê-lo. A Princesa Isabel, assim, somente cumpriu o papel de formalizar a libertação já insustentável no cenário nacional e internacional à época.

Contudo, a libertação foi realizada sem qualquer política de emprego e educação à população negra, o que resultou na estrutura desigual e perversa que historicamente pautou a sociedade brasileira, relegando aos negros e negras, que construíram o país, o lugar da opressão, da discriminação, da pobreza, do trabalho precário, da criminalização, impondo esforços sobre-humanos às gerações que se seguiram, para reverter a situação de exclusão social que lhes foi imposta pelo Estado racista.

É importante destacar que além de não terem sido assegurados postos de trabalho formais, perpetuando-se a exploração do trabalho nas fazendas e nos serviços domésticos, em condições precárias, não houve medida reparatória até hoje em relação aos três séculos e meio de escravidão, mediante reconhecimento de terras ou pagamento de valores indenizatórios à população negra. As ações afirmativas conquistadas ao longo das últimas décadas constituem medidas necessárias à efetivação de direitos, como o acesso à educação e ao ensino superior. E há ainda necessidade de medidas compensatórias para assegurar a igualdade de oportunidades no trabalho, direito também reconhecido pelo Estatuto da Igualdade Racial[1], Lei 12.288/2010, que prevê a responsabilidade do Estado e da atividade empresarial em promover tais ações.

Portanto, não há motivos a comemorar a abolição formal da escravidão, quando até os dias atuais se luta por políticas de igualdade racial no trabalho, no acesso à educação, na representatividade nos espaços institucionais, na mídia, na publicidade, no cumprimento da Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, quanto ao ensino de cultura afro-brasileira nas escolas, no combate ao racismo em todas as suas formas.

A data é considerada pelo movimento negro como dia nacional de luta contra o racismo, e reconhecida como tal por governos anteriores, como faz certa declaração da falecida ministra Luiza Bairros, responsável à época pela então Secretaria de Políticas de Promoção Racial – SEPPIR, atualmente extinta, em matéria publicada pela Agência Brasil no ano 2014, Lei Áurea não é motivo de comemoração, afirmam movimento negro e Seppir[2].

Não se pode admitir que integrantes do Poder Legislativo, que exercem mandato de representação da sociedade, desconsiderando a verdadeira história de luta pela abolição da escravidão no Brasil, prestem homenagens a uma data que marca opressão e violação de direitos humanos fundamentais à população negra, formalmente liberta, mas sem condições de dignidade e igualdade de oportunidades.

O racismo estrutural persiste no Brasil e ainda há muito a ser feito para que os 54% da população negra, formada por pretos e pardos, tenham pleno acesso aos direitos sociais. Na Câmara Federal, menos de 25% dos deputados são negros[3], e isso que houve elevação da representatividade negra na última eleição. Nos Estados da federação há assembleias legislativas que não tem qualquer representatividade negra[4]. O censo do Poder Judiciário (CNJ, 2013) aponta 15,6% de magistrados entre pretos e pardos[5]. O mesmo se repete em outras estruturas de poder, instituições, empresas públicas e privadas.

Notas:

[1] Art. 39. O poder público promoverá ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à promoção da igualdade nas contratações do setor público e o incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e organizações privadas.

[2] http://www.ebc.com.br/cidadania/2014/05/lei-aurea-nao-e-motivo-de-comemoracao-afirmam-movimento-negro-e-seppir

[3] https://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/564047-NUMERO-DE-DEPUTADOS-NEGROS-CRESCE-QUASE-5.html

[4] https://congressoemfoco.uol.com.br/eleicoes/so-4-dos-eleitos-em-outubro-sao-negros-eram-107-das-candidaturas-em-2018/

[5] http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/86694-pesquisa-do-cnj-quantos-juizes-negros-quantas-mulheres

[6] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/carnaval/2019/noticia/2019/03/08/conheca-os-herois-citados-no-samba-e-no-enredo-da-mangueira-no-carnaval-de-2019.ghtml. O samba-enredo Histórias para Ninar Gente Grande é citado também no título desse artigo, em homenagem aos verdadeiros heróis e heroínas brasileiros e à Estação Primeira de Mangueira.

Elisiane Santos e Ludmila Reis Brito Lopes são procuradoras do Trabalho, integrantes do Coletivo Transforma MP e do Grupo de Trabalho de Raça da COORDIGUALDADE – Coordenadoria Nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho do Ministério Público do Trabalho.

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