A legalização da precariedade

Fotografia: Reprodução/Alchetron

Lorena Holzmann

A recente aprovação da reforma da legislação trabalhista no Brasil – que seus defensores preferem chamar de modernização – suprime ou altera mais de 100 artigos da CLT – Consolidação das Leis do Trabalho – estatuto que regia as relações entre capital e trabalho desde o início da década de 1940. Apenas parte da classe trabalhadora foi, durante esse período, beneficiada por essa legislação, focada tão somente naqueles relacionados com o empresariado na condição de assalariados, com registro formal na carteira de trabalho. Esse documento se constituiu como uma espécie de passaporte, não só aos direitos laborais, mas também à respeitabilidade e à cidadania. Ter uma carteira de trabalho assinada passou a representar a linha divisória entre o trabalhador honrado e o malandro. Até os anos 1960, esses direitos eram exclusivos dos trabalhadores urbanos.

Ainda que a maioria dos ocupados no Brasil tenha sido, recorrentemente, constituída de empregados (assalariados pelo capital), sempre foi grande, entre essa categoria, o contingente de pessoas que não tinham carteira assinada (em alguns levantamentos censitários ou de maior periodicidade, como, por exemplo as PNADs – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – em torno de um terço dos empregados), e que estavam, portanto, sem acesso aos direitos laborais. Os direitos devidos ao empregado, dessa forma, podiam e foram recorrentemente sonegados a um amplo segmento de trabalhadores brasileiros.

Também, a categoria dos trabalhadores por conta própria manteve-se, ao longo do tempo, em torno de 20% dos ocupados, a grande maioria sem nenhuma formalização de suas atividades laborais e/ou contribuição para a previdência social na condição de autônomo. Assim, esse grande contingente de pessoas esteve privado de uma aposentadoria futura ou a qualquer tipo de auxilio em caso de doença ou outro evento que lhes impedisse de trabalhar, temporária ou definitivamente.

Essas condições foram recorrentes ao longo dos mais de 70 anos de vigência da CLT, indicando a situação precária de quase a metade dos ocupados no país.

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“O homem que virou suco” (João Batista de Andrade, Brasil, 1981) narra a saga de Deraldo, um nordestino vivendo em São Paulo e sobrevivendo da venda de livretos de poesias que compõe. Fotografia: Reprodução/Esquerdiário

O homem que virou suco (João Batista de Andrade, Brasil, 1981) pode ser considerado um painel do trabalho precário no Brasil, informal, sem direitos, submetido ao arbítrio do empregador. Ele narra a saga de Deraldo, um nordestino vivendo em São Paulo e sobrevivendo  da venda de livretos de poesias que compõe. Devido à semelhança física, é confundido com um operário que mata seu patrão estrangeiro (Mister) na cerimônia em que receberia a distinção de Operário Símbolo. Pouco antes da cerimônia, ele fora demitido, pois seus companheiros de trabalho haviam se recusado a partilhar o mesmo espaço de trabalho com ele, que os havia denunciado ao patrão como instigadores de um movimento grevista na empresa de Mister. Precisando fugir da polícia, não podendo expor-se na venda de seus poemas, realizada a céu aberto no centro da cidade, Deraldo passa à clandestinidade, tendo que sobreviver com trabalhos eventuais, sem nenhuma garantia, inclusive de remuneração.

Constitui-se, então, o referido painel, e a manifestação recorrente de recusa de Deraldo à exploração a que é submetido. Como peão na construção civil e nas obras do metrô, carregando sacas num depósito,  faz-tudo na casa burguesa, Deraldo sofre toda a sorte de descriminações,  preconceitos (“Por que todo pau-de-arara é Silva?”, debocha o capataz da obra em que foi trabalhar), exploração, desrespeito. E a todas as situações ultrajantes, reage violentamente, recusando-se à submissão que lhe é exigida. Deraldo tem clara a noção de dignidade que lhe é devida, assim como o respeito a sua condição de fazedor de versos, pois considera a poesia essencial à vida. Dela discorda o dono do boteco na favela, onde Deraldo costuma tomar seu café pela manhã, nem sempre podendo pagá-lo. Para o pequeno comerciante, cuja longa jornada de trabalho é exaustiva e pesada, Deraldo é um vagabundo, pois fazer versos não é trabalho, não produz nada de útil. Entendo que o acirrado debate entre os dois personagens sobre o significado que cada um atribui ao trabalho é uma passagem antológica do cinema brasileiro.

As condições de inserção de Deraldo nas atividades laborais são precárias devido a seu caráter de informalidade, as quais estão submetidos, também, milhões de brasileiros.

Algumas  medidas  foram implementadas no país em anos mais recentes, a fim de incentivar a formalização das condições laborais, como sistemas de tributação de pequenos negócios ou regularização de trabalhadores autônomos prestadores de serviços na condição de empresas de um único integrante, os trabalhadores PJ (pessoa jurídica), constituindo formas legais de inserção no mercado de trabalho, não raramente mascaramento da subordinação à lógica empresarial de prestadores de serviços ou pequenos empreendedores. E sem a cobertura das vantagens asseguradas pela CLT, como descanso semanal e férias remuneradas, 13º salário, contrato por tempo indeterminado, jornada regulamenta por lei, acesso à Justiça do Trabalho, irredutibilidade do salário,  licença maternidade para as mulheres, entre outras.

A “reforma”, recentemente aprovada no Congresso, torna “legais” uma série de situações laborais que representam o aprofundamento da precariedade dos trabalhadores brasileiros, em atendimento aos interesses (irracionais) do empresariado atuando no país.

Comecemos pela supremacia do acordado sobre o legislado e suas  implicações negativas para os trabalhadores. Numa conjuntura de níveis assustadores de desemprego, seu poder de negociação  encontra-se extremamente fragilizado diante do empresariado, ávido consumidor de força-de-trabalho barata. Em troca de um emprego, ainda que mal remunerado, o desempregado tende a aceitar qualquer “proposta” do possível empregador. A tendência não poderá ser como um leilão de “quem aceita menos”? Já há notícias circulando que levam a pensar seriamente na possibilidade desta tendência.

Outra “novidade” legal: trabalho intermitente. Os trabalhadores devem ficar à disposição da empresa, devendo se apresentar quando for chamado, sempre segundo os interesses da empresa, ditados pelas flutuações do mercado. Quando houver maior demanda, maior a necessidade de trabalhadores, um tipo (!) de exército de reserva, esperando a oportunidade de se engajar numa atividade rentável (!). Os dias em que estiver a disposição da empresa não lhe assegurarão, necessariamente, nem o salário mínimo, pois poderá trabalhar poucos dias ao longo do mês, e, como só ganhará pelas horas trabalhadas, nenhuma garantia terá de poder fazer frente às necessidades de sobrevivência pessoal e familiar. Insegurança permanente. Com o agravante de que, se não atender ao chamado da empresa, deverá pagar uma multa equivalente a 50% do que ganharia se o atendesse.

A jornada de trabalho poderá ser flexibilizada, o que dificilmente será feito segundo o interesse do empregado.

O ataque aos direitos já conquistados não tem limites, nem decência. Libera-se o trabalho de mulheres grávidas em atividades e locais considerados insalubres, desde que elas apresentem um atestado médico…. Segundo defensores/defensoras das reformas, tal possibilidade representa liberdade concedidas às mulheres de poderem escolher. Descarado cinismo.

A “reforma” inibe o acesso à justiça do trabalho em demandas relativas a direitos laborais sonegados, fazendo recair sobre o trabalhador os custos dos processos. Há prenúncios, entre os mais pessimistas, do fim da justiça do trabalho.

São mais de 100 artigos da CLT  transformados (para pior) ou extintos pela reforma, necessários, segundo seus defensores, para gerar empregos e garantir a retomada do crescimento pelo aporte de investimentos produtivos, atraídos pela “modernização” das relações entre capital e trabalho. Grande falácia, grande mentira, grande engodo. O que gera crescimento é a retomadas de investimentos na produção de bens e serviços, o requer, obrigatoriamente, que haja CONSUMIDORES, a fim de que se complete o circuito produção-consumo. Henry Ford vislumbrou a necessidade desse circuito há mais de cem anos, e aumentou o salário de seus empregados a valores superiores aos vigentes no mercado americano de então. Transformava, assim, seus empregados em compradores daquilo que produziam.

A isso não chegaram ainda os “capitalistas” brasileiros, que estão a matar a galinha dos ovos de ouro em sua ganância irracional.

O homem que virou suco terá, a partir dessa “reforma”, milhões de parceiros com quem dividir a laranjada.

Informações

Título: O homem que virou suco
Ano: 1981
Duração: 97 min.
País: Brasil
Diretor e Roteirista: João Batista de Andrade
Elenco: Aldo Bueno, Rafael de Carvalho, Ruthinéa de Moraes

Mais informaçõesIMDbWikipédia

Filme completo:

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