Carlos Henrique Horn
O contexto: a história que se narra a seguir foi inspirada na reação de alguns economistas e de órgãos da imprensa ao anúncio da inflação brasileira de 2012, medida pelo IPCA-IBGE e que serve como indicador para avaliar se a política de metas de inflação atinge seus objetivos. Aos que não se recordam, a variação do IPCA foi de 5,84% nesse ano. Segundo esses críticos da condução da política monetária pelo Banco Central, notadamente insatisfeitos com a redução da taxa básica de juros para patamares mais próximos dos níveis internacionais, o país não teria atingido a meta do ano, fixada no intervalo entre 2,5% e 6,5%, não fosse pela “contribuição de mudanças metodológicas do IBGE e da redução dos impostos dos carros”. Em nossa história, abordamos o tópico da mudança metodológica.
Esta é uma história de como mudanças de metodologia provocam surtos de irracionalidade econômica. Há muitas décadas, em certo país, criou-se um instituto cujo propósito era o de realizar levantamentos de dados sobre múltiplos aspectos do funcionamento da economia. Seus criadores acreditavam que mensurar os fenômenos ajudaria a compreendê-los e a melhorar a qualidade das decisões do governo. Reuniram-se, então, profissionais com elevada competência para formar o tal instituto.
Uma das iniciativas do instituto foi a de avaliar a evolução dos preços em geral através do que se convencionou chamar de taxa de inflação. Seus técnicos muito debateram sobre métodos adequados e, ao final, decidiram que o melhor seria acompanhar as variações dos preços de cada bem ou serviço consumido pelos habitantes do país, atribuindo a cada produto um peso proporcional à sua importância. É verdade que inúmeros outros detalhes foram examinados até que se definisse o modo final como o instituto calcularia a inflação, mas esses detalhes não chegam a ser tão importantes para a nossa história.
No início, o instituto chegou à conclusão de que se deveriam incluir o chapéu-coco, a bengala, o disco bolachão e a fita cassete no rol dos produtos considerados para o cálculo da inflação. Cada produto teria um peso determinado: chapéu-coco = 12,3%, bengala = 31,7%, disco bolachão = 26,2% e fita cassete = 29,8%. No primeiro ano de cálculo da inflação, os preços de cada produto aumentaram, respectivamente, 10%, 2%, 5% e 12%. O instituto calculou a média dos aumentos de preços, levando em conta a importância atribuída a cada um, e concluiu que a taxa de inflação fora de 6,75%.
O tempo passou, as taxas de juros despencaram, outras coisas aconteceram, e o instituto prosseguiu com o mesmo rigor no seu levantamento de dados para o cálculo da inflação. Só que agora apenas uns tipos mais extravagantes vestiam chapéu-coco, a bengala saíra de moda (mas mantivera outros usos) e o disco bolachão e a fita cassete também deixaram de ter relevância. As pessoas consumiam outros produtos, cujos preços eram muito mais importantes em suas vidas, como, por exemplo, os de TV por assinatura e de produtos para animais domésticos, cruelmente chamados de pets. O instituto decidiu que esses novos produtos deveriam ser considerados no cálculo da inflação, que o chapéu-coco e a fita cassete teriam que ser excluídos e que os pesos da bengala e do disco bolachão deveriam ser menores. Assim, novos produtos e novos pesos vigoraram após a mudança de metodologia: bengala = 5%, disco bolachão = 11%, TV por assinatura = 46,8% e produtos para pets = 37,2%. Na primeira vez em que o instituto calculou a inflação com base na nova metodologia, os preços dos produtos aumentaram, respectivamente, 8%, 12%, 4% e 6%. A média final mostrou uma inflação de 5,8% naquele ano.
Assim que o instituto divulgou o resultado de seus cálculos, muitos sábios treinados no alfabeto grego revoltaram-se e julgaram ser seu dever alertar o povo que a inflação teria sido maior se não tivesse havido a tal mudança na metodologia do instituto. Pior: se o instituto mantivesse o antigo método de cálculo, incluindo chapéu-coco (cujo preço aumentara 5%) e fita cassete (com aumento de 6% no preço) em lugar de TV por assinatura e produtos para pets, a inflação teria sido de 8,1%, bem maior do que o limite que o governo estabelecera para a meta de inflação do ano.
Foi dada ampla repercussão ao alerta dos sábios, sem que ninguém tivesse se preocupado em lhes perguntar o que havia de errado na mudança de metodologia ou se esta não era o procedimento normalmente adotado em institutos similares de outros países. Não houve um único perguntador interessado em saber se havia sentido em considerar chapéu-coco e fita cassete em lugar de TV por assinatura e produtos para pets no cálculo da inflação. Ou se bengala devia manter seu peso antigo. A bem da verdade, alguns poucos cidadãos intrigaram-se com o fato de que as escolas especializadas formavam profissionais que afirmavam e divulgavam criticamente, com ares de seriedade e sem o menor traço de rubor nas suas faces, os impactos da retirada do chapéu-coco no cálculo da inflação. Até hoje aguardam-se respostas.
Carlos Henrique Horn é economista e Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Concluiu o mestrado em Economia na UFRGS, em 1992, e o doutorado em Industrial Relations na London School of Economics and Political Science, da Universidade de Londres, em 2003. A atividade docente e de pesquisa concentra-se na área de economia e relações de trabalho. Desenvolve pesquisas sobre regulação do mercado de trabalho, sistemas nacionais de relações de trabalho e sindicatos e negociações coletivas.