Para enfrentar o capitalismo de rapina e a moralidade do dane-se, expressa por Bolsonaro, esquerda precisa propor novo horizonte.
Fabrício Maciel
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 13/04/2022
Mais um ano eleitoral está em curso e este é sem dúvida um dos momentos mais complicados da história recente do Brasil. Todas as pesquisas apontam para a polarização definida entre Lula e Bolsonaro, o que já deixa claro que um segundo turno sangrento nos espera. A despeito de alguns posicionamentos otimistas de setores da esquerda, há muitos motivos para preocupação e o primeiro deles é que Bolsonaro vem crescendo nas pesquisas. Em tempos de política líquida, adaptando aqui o conhecido conceito de modernidade líquida do grande Zygmunt Bauman, nos quais tudo se decide quase em tempo real, podemos aguardar grandes novidades até as vésperas da eleição. O vale-tudo está apenas começando.
Entretanto, se não quisermos ficar presos ao que costumo chamar de ilusões da conjuntura, provocadas pela dinâmica da política líquida, precisamos reconstruir os cenários estruturais de ordem maior que nos trouxeram até aqui – até para projetar algum futuro menos desesperador. Para tanto, temos que escapar da novelização da política, tarefa para a qual a grande mídia se especializou nos últimos tempos. É claro que a compreensão dos fatos atuais no campo político é relevante para a tentativa de projeção de algum futuro. Entretanto, não podemos ficar presos à romantização dos atores políticos, que esconde sistematicamente a ação do campo econômico e seus efeitos na vida real como um todo.
Com isso, o desafio consiste em saber como chegamos até aqui e para onde podemos ir. Para tanto, precisamos resgatar o que eu gostaria de definir aqui como uma política da dignidade para o Brasil contemporâneo. Tal política necessita da construção de um projeto real de transformação social, que seja encampado pela esquerda e levado a sério até a eleição e principalmente depois dela. O início deste esforço teórico e político precisa necessariamente reconstruir e compreender o que seria o seu oposto, ou seja, o que chamarei aqui de política da indignidade, aquela que vigora no Brasil atual, levada a cabo e aperfeiçoada pelo governo Bolsonaro, chancelada pela moralidade bolsonarista que o mesmo representa.
A política da indignidade tem sido facilmente descrita, mas nem sempre compreendida em sua profundidade. A noção de dignidade, que consta na Constituição brasileira e em outras várias ao redor do mundo, nos remete ao mínimo que uma pessoa precisa para garantir sua integridade física e moral. Ao longo de minhas pesquisas acadêmicas, procurei desenvolver a ideia de trabalho indigno, com o intuito de tematizar aquele tipo de trabalho que, mais do que precário, nos remete a condições humilhantes para a sua realização. Trata-se do trabalho realizado pela ralé brasileira, que vaga entre o desemprego completo e as ocupações humilhantes. Este tipo de trabalho não garante o mínimo de proteção ao corpo e ao espírito, exigido de todas as pessoas na vida moderna.
A política da indignidade no Brasil atual inicia-se com o golpe de 2016 e a chegada ilegítima e imoral de Michel Temer ao poder. Não por acaso, uma das principais marcas de seu governo é a implantação da reforma trabalhista. Essencialmente, ela desarma totalmente os trabalhadores diante dos empregadores, ou seja, trata-se da institucionalização da política da indignidade. Precisamos definir dessa maneira, pois é exatamente o que ela faz, ou seja, a indignidade passa a ser um horizonte real para um número cada vez maior de brasileiras e brasileiros. A indignidade aqui significa o risco efetivo de, a qualquer momento, cair na situação de não se ter o mínimo material e consequentemente moral para a existência de uma pessoa.
A política da indignidade, neste sentido, é um resultado imediato da maximização dos princípios do mercado e da atualização da moralidade meritocrática. Não por acaso, Jair Bolsonaro é o representante ideal dessa moralidade, basta observar atentamente seu discurso de posse e vários outros ao longo de seu governo. Ele é o advogado do novo capitalismo digital e de seu novo espírito, no qual o elogio da livre iniciativa, direcionado especialmente para as classes populares, se torna uma das grandes novidades. Para a constatação dessa afirmativa, basta observar a forma como seu governo se apropria da pauta trabalhista ao longo da pandemia, deixando a esquerda atônita diante do roubo de sua principal bandeira do passado, que atualmente ainda precisa disputar ofegante e cambaleante com a pauta identitária o seu lugar ao sol.
Diante deste trágico cenário, é preciso reconstruir a pauta trabalhista, considerando a nova realidade das classes populares, imposta pelo novo capitalismo de plataformas e sua moralidade ultra-meritocrática. Esta é a principal tarefa de uma política da dignidade, urgente para o Brasil atual.
A tentativa de construção de uma política da dignidade foi um dos maiores esforços da política progressista, não necessariamente de esquerda, ao longo do século XX, em vários países do mundo. Aqui, temos um grande aprendizado a por em prática. No período da Grande Depressão norte-americana, por exemplo, posterior à crise de 1929, entre 1933 e 1937, Franklin Roosevelt implementou o New Deal, ou seja, uma série de programas econômicos e sociais para resgatar a economia nacional e seu povo dos estragos da crise. Trata-se nada menos do que de uma política da dignidade. Não se trata aqui naturalmente de defender os países capitalistas centrais que, obviamente, tiveram condições históricas favoráveis para tanto, mas sim de reconhecer políticas eficazes contra a desigualdade, diante do fracasso do socialismo real do outro lado.
No período posterior à II Guerra mundial, algumas das principais economias do Atlântico Norte como Alemanha, Inglaterra e França vão presenciar os seus Trinta anos gloriosos, entre 1945 e 1975. Trata-se da fase áurea do capitalismo moderno, na qual o Welfare state quase vai nos convencer de que o capitalismo seria a melhor forma de economia e de vida que a humanidade poderia ter. Mais uma vez, diante do fracasso do socialismo real nas mãos do stalinismo, é o que tivemos no momento. O grande aprendizado é que a intervenção consciente e orientada do Estado na vida econômica de toda a nação pode impor regras ao mercado e garantir minimamente a dignidade para a maioria da população. Não é outra a constatação que será feita por grandes pensadores do capitalismo como Karl Polanyi, que hoje influencia com justiça toda uma geração de estudiosos sobre o tema.
Na definição de Robert Castel, um dos principais analistas deste período, que ele define com sociedade salarial, o Estado de bem estar significou a garantia do quase pleno emprego, segurança e seguridade social, o que por consequência assegura a quase cidadania plena para estes países. Não se trata aqui de idealizar os países centrais e ignorar o histórico de imperialismo e colonialismo que possibilitou seu acúmulo de riquezas. Trata-se, mais uma vez, de buscar o aprendizado histórico diante de experiências concretas que possam construir, senão um socialismo utópico ainda distante, apenas um capitalismo social minimamente digno.
Na história moderna do Brasil, que começa com Vargas, nunca conseguimos implantar uma política da dignidade semelhante aos Estados Unidos ou à Europa, por razões históricas de nossa desigualdade estrutural. A dimensão do problema é grande e nada simples. Entretanto, tivermos esforços realistas, dentro do possível, que começam com o próprio Vargas, no sentido de buscar uma política da dignidade. Com efeito, a sociedade do trabalho no Brasil inicia-se com Vargas, quando este tenta equalizar as exigências do capitalismo industrial que chegava ao Brasil, com nossa força produtiva interna. Sem a garantia de um patamar mínimo de dignidade para a classe trabalhadora, que ao mesmo tempo será produtora e consumidora do novo sistema, essa tarefa seria impossível. Aqui, o mínimo de direitos trabalhistas e de respeito – leia-se reconhecimento – foi necessário, como se sabe. Em outros termos, é inviável, indesejável e imoral a permissão de um capitalismo totalmente selvagem e sem regras, sem nenhum respeito ao valor básico da vida humana. O Estado pode e deve agir com eficácia e legitimidade em defesa da dignidade de sua população.
Em nossa história recente, após a reabertura democrática, a experiência do PT na presidência pode dividir opiniões, mas não pode ser ignorada em sua tentativa de implantar sistematicamente uma política da dignidade. Aqui, não se trata simplesmente da defesa de um partido ou grupo político, mas sim de uma análise serena que considere os esforços possíveis do campo político diante dos imperativos econômicos e morais de um capitalismo global que eu caracterizo como indigno. Trata-se, em termos simples, de um sistema perverso que tem como principal marca a naturalização do desvalor humano, ou seja, a naturalização da indignidade de milhões de pessoas.
Como já ficou claro com a experiência histórica de inúmeros países, a única maneira de frear esta máquina global de produção da indignidade é uma política da dignidade por parte do Estado, o que exige uma condução consciente e planejada por parte de grupos progressistas e bem orientados. O governo negacionista de extrema direita de Jair Bolsonaro é exatamente o contrário disso e, diante da compreensão deste fato, a esquerda precisa urgentemente de um projeto de dignidade nacional.
Neste sentido, precisamos vencer um último inimigo teórico e político. Trata-se do antipetismo e de tudo o que ele criou. Desde as primeiras críticas ao primeiro governo Lula, a única linguagem política desenvolvida no Brasil foi o antipetismo, derivada do incômodo de nossas classes dominantes diante da pequena, porém significativa, mudança em nossa desigualdade estrutural encaminhada pela política da dignidade implementada pelo PT. Neste sentido, nós não desenvolvemos uma terceira via progressista de fato, que não se resuma à confusão e dificuldade de articulação de seus protagonistas. Também não desenvolvemos uma direita liberal lúcida e civilizada, que tivesse algum projeto de nação. Presenciamos apenas o germe do bolsonarismo, resultado imediato do antipetismo. Nada mais.
Diante desta nossa grave dificuldade recente, a política da dignidade, pautada por um projeto de dignidade nacional para os mais necessitados, se faz urgente. O caminho pode ficar claro, se olharmos com atenção para a experiência histórica, tanto interna quanto externa ao Brasil. Um Estado nacional que tenha a dignidade como política central é o primeiro passo. Depois, a tarefa consiste na restauração do direito ao trabalho digno e do direito ao mínimo necessário para a garantia da integridade física e moral de todos. Para tanto, é preciso convencer a população, neste exato momento, de que a realização deste projeto é plenamente possível através de um Estado democrático de direito, e não pela via da barbárie do mercado, sustentada pelo bolsonarismo. Se esta for a nossa pauta do dia nos próximos meses, teremos alguma chance de construir um futuro melhor.
Fabrício Maciel é Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos e do PPG em Sociologia Política da UENF. Atualmente, professor visitante na Universidade de Jena, Alemanha. Bolsista de produtividade do CNPq e Jovem Cientista do Nosso Estado, FAPERJ.