Era o ano de 1788 quando membros do movimento abolicionista britânico publicaram uma ilustração que logo se tornaria uma arma na luta contra a escravidão. O desenho mostrava a planta do Brookes, uma embarcação que transportou milhares de africanos escravizados para a cidade de Liverpool, na Inglaterra. A imagem detalhava, friamente, como era possível alocar mais de 400 seres humanos empilhados na posição horizontal em apertadas tábuas de madeira com pouco mais de um metro de altura no porão do navio.
O Brookes era o típico navio negreiro que vemos atualmente em filmes e livros didáticos, responsáveis por inundar as Américas e o Caribe com seres humanos escravizados. Contudo, as condições desse tipo de transporte ainda eram pouco conhecidas pela sociedade da época, que não tinha televisão, cinema ou mesmo fotografia. Mostrá-las por meio de um registro visual (quase um infográfico) deu grande fôlego ao movimento abolicionista.
Como a imagem se tornou conhecida
Em 1787, o abolicionista Thomas Clarkson, historiador formado em Oxford, com o apoio de membros da comunidade Quaker inglesa, iniciou uma investigação visando expor os horrores do tráfico de pessoas. Juntos, eles e outros abolicionistas britânicos formaram o Comitê para Abolição da Escravidão, que visava fazer lobby junto a membros do Parlamento em favor da causa abolicionistas. No curso da investigação, Clarkson viajou para Liverpool e Bristol, onde visitou portos, entrevistou membros de tripulação e coletou equipamentos utilizados nos navios. Durante essa pesquisa, chegou a planta do Brookes.
O político e banqueiro William Elford foi um dos primeiros a espalhar a ilustração do convés do Brookes, ao lado do livreiro James Phillips e da chamada “Sociedade para Efetuar a Abolição do Comércio de Escravos”, fundada em 1787 por Clarkson e por uma dúzia de homens que trabalhavam numa gráfica de Londres e lutavam pela abolição.
Todos se assustaram com o layout do navio. Estavam lá todas as medidas do horror dos africanos: convés, seções transversais e vistas laterais. Representava-se os africanos escravizados como cargas quaisquer, sem vida ou direitos. Conscientes do poder da imagem, os abolicionistas britânicos sabiam que a planta do Brookes poderia contribuir para a condenação não só dos navios negreiros como de todo o tráfico de escravos.
Com a disseminação do desenho, o debate cresceu cada vez mais e ganhou adeptos de diversos parlamentares abolicionistas. O deputado Charles Fox, um dos principais políticos da Câmara dos Comuns, classificou o comércio de escravos como algo “vergonhoso” e que, portanto, não deveria ser regulamentado, como vinha sendo feito por seus colegas, mas destruído. Fox recebeu o apoio de vários intelectuais, inclusive conservadores, como foi o caso de Edmund Burke. Também foram importantes os relatos do deputado abolicionista William Dolben, que descreveu os horrores vividos pelos africanos, transportados quase sempre com as mãos e os pés acorrentados, submetidos a espaços insalubres.
Reprodução sem dó e os seus efeitos
No total, calcula-se que os abolicionistas britânicos tenham feito aproximadamente 7 mil cópias do documento só no formato pôster. Nos anos seguintes, a imagem foi publicada em livros e jornais da Grã-Bretanha, França e Estados Unidos, tornando-se rapidamente símbolo da brutalidade do comércio de escravos. O crítico de arte Tom Lubbock descreveu o desenho do Brookes como “talvez a imagem mais influente politicamente já feita”.
Os efeitos políticos da imagem não foram sentidos imediatamente – e é difícil saber com precisão o quanto ela afetou as decisões que levariam a abolição da escravidão pelo Império Britânico. O Ato de Wilberforce, que aboliu “a compra, venda, permuta ou transferência de pessoas que deveriam ser usadas como escravas” por parte do Império Britânico só foi aprovada em 1807; e a própria escravidão não foi por lá abolida antes de 1833.
Apesar disso, a ilustração do Brookes teve uma importância significativa, sensibilizou milhares de pessoas dentro e fora da Grã-Bretanha para a causa abolicionista. Segundo Roman Krznaric, Clarkson e seus simpatizantes “planejaram estimular as pessoas para a ação expondo-as aos traumas e sofrimentos experimentados diariamente pelos escravos, de modo que pudessem se pôr no lugar deles e imaginar a realidade de suas vidas”.
Referências Bibliográficas:
CLARKSON, Thomas. Os Gemidos dos Africanos, por causa do traffico da escravatura: ou, Breve exposiçaõ das injurias e dos horrores que accompanham este traffico homicida.[Translated from the English.]. Harvey & Darton, 1823.
DA COSTA BRITO, Ênio José. Leituras Afro-brasileiras: Reconstruindo Memórias Afrodiaspóricas entre o Brasil e o Atlântico. Volume 3. Paco e Littera, 2019.
KRZNARIC, Roman. Sobre a arte de viver: lições da história para uma vida melhor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2013.
WOOD, M. Blind Memory: visual representations of slavery in England and America, 1780-1865. Manchester. Manchester University Press, 2000.
Fonte: Café História
Texto: Bruno Leal Pastor de Carvalho
Data original da publicação: 17/02/2020