A gritante inconstitucionalidade da Portaria nº 620 do Ministério do Trabalho

Fotografia: Tânia Rego/Agência Brasil

Medidas de negação como a Portaria nº 620 do Ministério do Trabalho e Previdência são causadoras de insegurança jurídica no âmbito das relações de trabalho.

Luiz Antonio Colussi

Fonte: Conjur
Data original da publicação: 06/11/2021

Na véspera do feriado de Finados, quando nos preparávamos para homenagear aqueles que se foram e deixaram ensinamentos e saudades — entre eles as mais de 600 mil vítimas da Covid-19 no Brasil —, o mundo do Direito do Trabalho deparou-se com a Portaria nº 620 do Ministério do Trabalho e Previdência, que considera discriminatória a não contratação e manutenção, bem como a dispensa, do empregado que não tenha se vacinado.

O texto já causaria imensa perplexidade se não estivéssemos em tempos da pandemia do novo coronavírus. Isso porque a vacina e a sua exigência, como regra geral, não são objeto de grandes debates no âmbito do Direito do Trabalho. Trata-se de consenso a sua necessidade para determinadas atividades, assim como não há notícia de ter-se cogitado a infringência a direito e liberdade individual pela regra inserida no artigo 67 da Lei nº 8.213/91, que exige, para recebimento do salário-família, a apresentação do atestado anual de vacinação, pelo empregado, de seu filho.

Durante um período de mais de um ano e meio de dores profundas e possivelmente não passíveis de cicatrização, em que além dos mais de meio milhão de mortos, temos vítimas com sequelas físicas e psicológicas permanentes e incuráveis, a Portaria nº 620 do Ministério do Trabalho e Previdência causa, além de um estado de assombro, uma sensação de irresponsabilidade em relação às normas que regem o Direito do Trabalho, diante da sua flagrante, e também gritante, inconstitucionalidade.

Trata-se de uma lição básica, que se aprende nas primeiras aulas de Direito Constitucional na Faculdade de Direito, a de que somente a União pode legislar em matéria de Direito do Trabalho (artigo 22, inciso I, da Constituição Federal). Assim, a Portaria nº 620 do Ministério do Trabalho e Previdência é inconstitucional sob o aspecto formal, pois a norma que ela estabelece deveria ser disposta, se fosse o caso, em uma legislação federal, com o todo o processo legislativo necessário de construção e de debate. Ainda, a portaria do Ministério do Trabalho e Previdência não pode dispor acerca de criação ou restrição de direitos, tendo por finalidade, apenas, orientar os órgãos da administração.

O Ministério do Trabalho e da Previdência trilhou o caminho da inconstitucionalidade e a Carta Magna não admite estradas tortuosas, tampouco passos obscuros. Tal caminho escolhido mostra à sociedade brasileira, de forma clara, que o governo federal não teria meios de construir um consenso político no Parlamento a respeito da matéria.

A essência da Portaria nº 620 do Ministério do Trabalho e Previdência é de que seria discriminatória a não admissão ou a dispensa do empregado por não ter se vacinado, ocasionando o direito à reintegração e à indenização, levando à conclusão de que a vacinação é um direito individual, o que não é uma verdade, quando se trata de ambiente de trabalho, pois a vacina deve ser vista sob o prisma do interesse público, da coletividade.

Dessa forma, a exigência de vacinação pelo empregado é um meio de ato de salvaguarda do meio de trabalho hígido e saudável, ao que o empregador está obrigado constitucionalmente (artigo 7º, inciso XXII), o que é também obrigação do poder público, de acordo com os artigos 200, inciso VIII, e 225 da Constituição Federal.

É certo que, em se tratando de regras sanitárias em matéria de saúde pública, o interesse público prevalece em detrimento do individual. Por isso, as premissas em que se baseiam a Portaria nº 620 do Ministério do Trabalho e Previdência são inconstitucionais, também, sob o aspecto material.

Ademais, na possível falta de regra de Direito do Trabalho a respeito da matéria, segundo o artigo 8º da Consolidação das Leis do Trabalho, as autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho decidirão sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.

Por fim, o Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.586/DF, firmou entendimento de que a vacinação obrigatória é constitucional, de modo que é possível exigir o atestado de vacinação para adentrar em ambientes públicos e coletivos.

Ainda, no Recurso Especial 1.267.879, cuja decisão é o Tema 1.103 de repercussão geral, restou definido acerca da matéria, o que é transcrito a seguir para a sua plena compreensão:

“É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações; ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei; ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar”.

Sem dúvida, no momento em que vivemos, devemos deixar de negar a necessidade de medidas sanitárias para coibir o avanço e o prosseguimento da pandemia do novo coronavírus, como a vacinação de forma ampla, a utilização de máscara e de álcool em gel, com o fim de sempre fazer prevalecer o interesse público, para que possamos sair dessa situação caótica em que nos encontramos, em vários aspectos: humano, social, sanitário, financeiro e econômico.

Medidas de negação como a Portaria nº 620 do Ministério do Trabalho e Previdência são causadoras de insegurança jurídica no âmbito das relações de trabalho, o que é capaz de ocasionar conflitos desnecessários.

Assim, a única conclusão a que se pode chegar é de que a Portaria nº 620 do Ministério do Trabalho e Previdência é inconstitucional e, portanto, sem quaisquer efeitos jurídicos.

Luiz Antonio Colussi é presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), juiz do Trabalho no TRT da 4ª Região (RS), sendo titular da 9ª Vara do Trabalho de Porto Alegre e mestre em Direito pela UPF-Unisinos.

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