José Raimundo Trindade
Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 27/05/2019
Estamos em um momento decisivo da história nacional, às contradições sociais e o esgarçamento das instituições democrático burguesas entraram em um momento de inflexão que poderá estabelecer uma nova condição ultra periférica para a sociedade brasileira no contexto geopolítico mundial ou, a depender da resistência e avanço das forças democráticas, populares e socialistas, estabelecer uma nova condição na sua contraditória participação na divisão internacional do trabalho capitalista.
A luta e disputa em torno da privatização da previdência social revestem-se na maior contenda entre a afirmação nacional ou à neocolonização. Analisar esta disputa e construir o contraditório da economia política constitui a maior tarefa das esquerdas dos últimos 50 anos.
As reformas neoliberais possuem propósitos e mecanismos semelhantes no mundo inteiro. Por meio do ajuste fiscal e redução dos direitos sociais, visam dissolver as estruturas de bem-estar e assim ampliar o espaço do mercado privado. Para o Brasil, essas medidas podem significar quase 30 anos de retrocesso, e expõem o risco de retornarmos a conviver numa conjuntura que além das estratosféricas taxas de desemprego e informalidade, condições precárias de trabalho e uma profunda desigualdade social, tenhamos o desmanche das condições mínimas de solidariedade social, estabelecendo a barbárie absoluta. Experiências semelhantes foram vividas pelo Chile e Argentina, que motivados pelo projeto liberal dos anos 80 e 90 dissolveram seus sistemas de seguridade e substituíram parcial ou integralmente a previdência social por sistemas de capitalização individual, administrados pelo setor privado. A destruição das nossas sociedades latinas parece ser parte de uma condição de poder imperial estadunidense, necessário a sua permanência enquanto força totalitária global.
No caso previdenciário a lógica neoliberal assume uma forma destrutiva total em termos sociais, a proposição estabelecida pelo barqueiro do Mefistófeles, Mister Paulo Guedes, é de uma conta de capitalização num país em que os trabalhadores têm uma renda média de aproximadamente dois mil reais. A capitalização com base em renda tão baixa constitui uma completa irracionalidade. Vale aqui para estabelecer o entendimento supor que de uma renda de dois mil reais o trabalhador destine, por exemplo, 30% para sua poupança de previdência, assim sua renda real mensal cai para R$1.700,00. Supondo que este trabalhador nunca fique desempregado pelos 35 anos desde sua entrada no mercado de trabalho e consiga mensalmente realizar esta poupança forçada que seja capitalizada a uma taxa simples de 6%, teremos um valor acumulado de aproximadamente 130 mil, supondo uma sobrevida de dez anos para o nosso nobre trabalhador “guedista” o mesmo teria uma possível renda de R$ 1.113,00.
Essa ficção é semelhante àquela assinalada por Marx[1] quanto a multiplicação dos juros compostos, a ideia de que um valor determinado seria permanentemente acumulado e tornaria seu detentor um rico proprietário. Essa ilusão vendida pelo “barqueiro” Paulo Guedes somente empolga a Rede Globo e os Banqueiros, uma tosca ilusão que se desfaz ao menor toque. Vale lembrar que o radical de Thiers tratou em sua última e principal obra da ideia tão fantasiosa, quanto estúpida, que se faz em mentes delirantes e apologéticas como a do “barqueiro” Guedes. Marx tratou de um antecessor lunático, porém sempre favorável aos interesses dos financistas de sua época, tal como o nosso “louco de pedra” das finanças. Chamava-se Richard Price, sendo que Marx anotou que a ideia de dinheiro que se auto multiplica, tal como uma árvore frutífera que multiplica suas frutas, se estabelece como “devaneios fabulosos do dr. Price” que supunha que uma nota monetária qualquer aplicada a taxa de juros de 5% na época de Cristo teria hoje se multiplicado em uma soma infinita.
Essa mesma quimera está na cabeça do financista lunático de plantão. O Mr. Guedes acredita que os trabalhadores brasileiros, tal como o Custódio de Machado de Assis[2], são almas que somente vivem do presente, não lhes interessa o passado, muito menos o futuro. O futuro a Deus pertence diria Damares, esta acolita do “barqueiro” Guedes, pois de fato “como todos os corações que se entregam ao regime do eventual o do Custódio era supersticioso” tal como estes senhores e senhoras do poder neofascista estabelecido nas terras de Assis. Talvez valesse a pena desmistificar tanto engodo, mesmo que seja somente para descargo de consciência.
Primeiramente a economia de mercado não funciona com a regularidade que pensa o mentiroso “barqueiro”. Em trinta e cinco anos, o brasileiro médio que começou a trabalhar em 1985 e, portanto, atingiria 35 anos de contribuição em 2019, passou por nove alterações monetárias, sendo que algumas delas (Plano Collor I e URV) implicaram em perdas reais dos estoques monetários dos setores de baixa renda. Vale observar que não estamos falando das perdas inflacionárias, pois, em tese, os valores estariam resguardados em uma conta de poupança; estamos falando em perdas completas de recursos básicos, inclusive guardados na famosa “poupança”, que em não poucos momentos o bando de corvos da burguesia brasileira se assanharam a destruir. Quem no “Olympus” garantiria a impossível sanha abutre dessa burguesia financeira.
Segundo, às condições médias de empregabilidade do trabalhador brasileiro está muito longe desta ficção: 42% dos trabalhadores brasileiros segurados somente conseguem comprovar em média 4,9 meses de contribuição anual, assim quase metade dos atuais contribuintes somente se “capitalizariam” por menos de cinco meses o que reduziria sua possível renda para aproximadamente R$ 460,00. Temos que ressaltar que a proposta mefistofélica além de empobrecer os trabalhadores no presente, os empobrece no futuro. A lógica seria destruir qualquer capacidade básica de reação social, construindo definitivamente uma civilização de párias, um amontoado de “mortos vivos”, cuja miséria passada, presente e futura seria sempre o refastelo de uma minoria encastelada no “Elysium”[3] Miami.
Terceiro, a proposição da capitalização implica uma aposentadoria restrita a 10% dos brasileiros, a lógica é que somente este percentual da população tem condições de manter um pagamento regular e, principalmente, monitorar a gangorra que é o mercado financeiro. Assim, o que o “barqueiro de Mefistófeles” propõe é uma sociedade de incrível exclusão, estabelecendo a ditatura definitiva neoliberal.
Contra isso ou contra a barbárie a se impor, temos que nos erguer! Ou se forem Custódios, migrarem.
Notas:
[1] Marx. Karl. O capital, Livro III. São Paulo: Boitempo, 2017.
[2] Assis, Machado. O empréstimo. In: 50 Contos de Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
[3]Conferir Elysium: https://www.adorocinema.com/filmes/filme-182991/
José Raimundo Trindade é Professor e pesquisador da Universidade Federal do Pará (UFPA).