Há pelo menos duas situações emblemática pelas quais se pode dimensionar o flagelo da fome que o Brasil vive hoje. A primeira, que tem sido recorrente, é a busca de muitas pessoas por ossos, sebos e pelancas em açougues como forma de garantir pelo menos algum tipo de proteína na alimentação. A segunda é a recomendação do Procon de Santa Catarina, emitida na semana passada, para que esses estabelecimentos não vendam ossos e sim doem esses restos como ato de caridade. Esse é um cenário que foi revelado pela pandemia. “A intensidade da incidência da pandemia que tornou mais da metade dos domicílios em condição de insegurança alimentar, impacto muito além do esperado e que comprova a irresponsabilidade do Governo Federal não apenas em lidar com a crise sanitária, como também com a crise alimentar cuja ocorrência já era esperada desde o início da pandemia”, observa o professor Renato Maluf.
No entanto, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Maluf enfatiza que a crise de extrema segurança alimentar que vivemos não pode ser apenas atribuída a pandemia. “As desigualdades sociais são uma característica da formação social brasileira que não foram, obviamente, causadas pela pandemia”, destaca. “Ao contrário, elas explicam por que a pandemia afeta desigualmente os setores sociais, com maior incidência e letalidade naqueles mais vulnerabilizados”, completa.
Para ele, uma faceta dessa desigualdade pode ser medida nos estados das regiões Sul e Sudeste, que tem sido apontadas como área de recuperação econômica e desenvolvimento, os ditos ‘estados ricos’ da federação. “As regiões Nordeste e Norte apresentam os percentuais mais elevados de insegurança alimentar por fatores conhecidos. Porém, em termos absolutos, o número de indivíduos em segurança alimentar grave (onde há fome) é igual no Nordeste e no Sudeste/Sul tido como rico, o que revela a importância das desigualdades geradas pelo padrão de desenvolvimento brasileiro” analisa.
Esses é um dos dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, que ainda vai além e revela que fome tem se alastrado, inclusive, da cidade para o campo. “Esse é um dos paradoxos brasileiros, um dos maiores produtores e exportadores mundiais de produtos agroalimentares que, porém, não dá condições de segurança alimentar nem mesmo às famílias rurais”, pontua Maluf.
Renato Sérgio Maluf é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Metodista de Piracicaba – Unimep, mestre e doutor em Economia Política Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Ainda realizou pós-doutoramento na Oxford University, Reino Unido, e na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, além de estágio Sênior na City University of London. Atualmente é coordenador do Centro de Referência em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – Ceresan/UFRRJ e integrante do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura – Oppa/UFRRJ.
Confira a entrevista.
IHU – Como compreender as causas que fazem da fome um problema recorrente no Brasil?
Renato Maluf – As principais causas se localizam no elevado grau das desigualdades sociais que caracterizam historicamente a sociedade brasileira resultantes de vários determinantes, tais como estrutura agrária, desigualdades socioespaciais no ambiente urbano e discriminações de gênero e étnicas. A isso se soma a ausência de políticas públicas permanentes orientadas pela promoção e proteção de direitos humanos, ao lado dos recorrentes ataques a direitos sociais estabelecidos no mundo do trabalho e em relação a grupos sociais vulnerabilizados.
IHU – Em algum momento em nossa história, efetivamente erradicamos a fome?
Renato Maluf – Na história recente, o Brasil teve significativa redução na incidência da fome que, embora não erradicada plenamente, ficou circunscrita a grupos sociais ou determinados territórios, em patamar não muito diferente ao que se observa mesmo em sociedades do Norte. Isso foi resultado de um conjunto de políticas públicas intersetoriais e com participação social iniciado em 2003, mas que passam por processo gradativo de desmonte desde o golpe parlamentar de 2016.
IHU – Qual o principal recado que temos de entender a partir da análise dos dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil?
Renato Maluf – O agravamento da insegurança alimentar tem raízes nas crises econômica e política iniciadas em 2015/2016, com o crescimento do desemprego, precarização do trabalho, baixa remuneração e retração do apoio à agricultura familiar. A crise sanitária da pandemia da Covid–19 veio a agravar um quadro já preocupante.
IHU – O que mais lhe impactou nos dados do Inquérito?
Renato Maluf – A intensidade da incidência da pandemia que tornou mais da metade dos domicílios em condição de insegurança alimentar, impacto muito além do esperado e que comprova a irresponsabilidade do Governo Federal não apenas em lidar com a crise sanitária, como também com a crise alimentar cuja ocorrência já era esperada desde o início da pandemia. Claro que essa incidência foi bastante desigual quanto aos grupos sociais mais vulnerabilizados.
IHU – Segundo o Inquérito, quais as regiões mais impactadas? O que explica a maior vulnerabilidade dessas regiões?
Renato Maluf – As regiões Nordeste e Norte apresentam os percentuais mais elevados de insegurança alimentar por fatores conhecidos. Porém, em termos absolutos, o número de indivíduos em insegurança alimentar grave (onde há fome) é igual no Nordeste e no Sudeste/Sul tido como rico, o que revela a importância das desigualdades geradas pelo padrão de desenvolvimento brasileiro.
IHU – Outro dado que impressiona no Inquérito é que grande parte dos lares onde há insegurança alimentar são chefiados por mulheres negras e com pouca escolarização. O que isso revela para o senhor e quais os desafios para conceber estratégias de enfrentamentos dessa situação?
Renato Maluf – Esse dado apenas confirma o que já se sabe sobre a condição de gênero e a cor da pele/raça, ao lado da escolaridade, serem fatores de vulnerabilidade na sociedade brasileira. O reconhecimento deles e sua incorporação no desenho de ações e políticas públicas é possível, porém, se defronta com aspectos marcantes da formação social brasileira.
IHU – A fome sempre foi associado a marginalização em comunidades de periferias nos grandes certos urbanos. Mas o Inquérito revela que a fome tem aumentado em áreas rurais. De que forma podemos interpretar esse dado?
Renato Maluf – Esse é um dos paradoxos brasileiros, um dos maiores produtores e exportadores mundiais de produtos agroalimentares que, porém, não dá condições de segurança alimentar nem mesmo às famílias rurais que em princípio deveriam ser capazes de ao menos produzir seu próprio alimento.
IHU – Muitos têm apontado que a ampliação das desigualdades no Brasil e aumentos de situações de insegurança alimentar é em decorrência da pandemia. O senhor concorda?
Renato Maluf – Como dito antes, as desigualdades sociais são uma característica da formação social brasileira que não foram, obviamente, causadas pela pandemia. Ao contrário, elas explicam por que a pandemia afeta desigualmente os setores sociais, com maior incidência e letalidade naqueles mais vulnerabilizados.
IHU – Qual a importância de uma renda básica universal no combate à fome?
Renato Maluf – Trata-se de um instrumento fundamental para assegurar o direito elementar que qualquer ser humano deve ter, independentemente de sua condição, que é o de se alimentar adequadamente.
IHU – Que experiências do Estado brasileiro o senhor considera importantes – e que poderiam ser retomadas – na erradicação da fome? E quais os maiores erros nas estratégias de combate a fome no Brasil?
Renato Maluf – Temos conhecimento e experiência acumulada em vários campos que podem ser retomadas, porém, passando por uma avaliação do alcance possível delas e da adequação dos instrumentos. No entanto, um dos principais desafios atuais é a disputa de narrativas em torno dos alimentos e da alimentação com os representantes dos setores hegemônicos (agronegócio e corporações) nos governos, meios de comunicação e também na academia.
Fonte: IHU On-Line
Texto: João Vitor Santos
Data original da publicação: 13/10/2021