Quem olha para o Brasil hoje se espanta com o contraste de um passado recente, quando o país era reconhecido internacionalmente como uma liderança no combate à Fome.
Thiago Lima
Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 09/06/2020
Quem olha para o Brasil hoje se espanta com o contraste de um passado recente, quando o país era reconhecido internacionalmente como uma liderança no combate à Fome. Hoje, em meio à pandemia, o país encontra-se miseravelmente desprovido de recursos, políticas e pessoas no governo federal para enfrentar o desafio quimérico imposto pela COVID-19 e um de seus principais desdobramentos: o crescente número de pessoas famintas. A estimativa do Banco Mundial é de que cerca de 14,7 milhões de brasileiros, cerca de 7% da população nacional, passe Fome até o final de 2020.
Uma estrutura para combate à fome
Desde sua origem colonial o Brasil é um grande exportador de commodities agrícolas. Com a implantação dos complexos agroindustriais a partir dos anos 1960, o país chegou aos anos 1990 como um agropotência do comércio internacional e se tornou um dos maiores exportadores de grãos, soja, frutas e carnes do mundo. Todo este processo, porém, conviveu lado a lado com a Fome crônica e episódios Fome aguda. Por exemplo, o estado do Ceará, no nordeste do Brasil, chegou a criar campos de concentração em 1915 e 1937 para impedir que os flagelados da seca e da Fome no interior do estado chegassem à capital, Fortaleza. Em 2009, José Padilha registrou no documentário Garapa que a Fome aguda continuava a massacrar famílias tanto na zona rural quanto na capital do Ceará no século XXI.
Em 2009, porém, Padilha discutiu, entre outras coisas, a insuficiência de políticas de combate à Fome, como o Bolsa Família. É certo que o Bolsa Família não havia acabado com a Fome no Brasil e que seu alcance teria de ser aumentado e complementado com outras políticas para cumprir esta função. Porém, aquela política pública de transferência condicional de renda, preferencialmente para mães, foi um dos instrumentos que indiscutivelmente contribuíram para a saída do Brasil do Mapa da Fome da FAO, em 2014.
Ao chegar ao poder em 2003, o presidente Luís Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores) estabeleceu que o combate à Fome seria uma prioridade. Sob o programa e posteriormente o princípio de Fome Zero, o governo Lula incentivou a emergência de diversas políticas públicas e tecnologias sociais para lidar com o problema não de forma pontual, como um tema entre outros, mas para enfrentar a questão em sua difícil complexidade. Logo no primeiro ano de mandato o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) foi reativado para assessorar a Presidência na formulação e execução de políticas na área. O CONSEA era composto por 40 membros da sociedade civil e 20 membros do governo, de modo a amplificar a voz de movimentos sociais, lideranças civis e especialistas acadêmicos sobre o tema. Em 2006 a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN) foi aprovada pelo Congresso e deu origem ao Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), cuja missão era assegurar o Direito Humano à Alimentação Adequada. Em 2010, o direito à alimentação foi incluído no artigo 6º da Constituição Federal.
Além desta estrutura institucional, algumas políticas (tecnologias sociais) foram criadas ou fortalecidas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), respectivamente. Tais programas conectam, com coordenação e financiamento do governo, a produção de agricultores familiares com parte das necessidades de alimentação de escolas e outros aparelhos públicos como hospitais. No mundo, as populações rurais são sempre as mais vulneráveis à Fome e no Brasil não é diferente.
O sucesso das políticas brasileiras de combate à Fome chamou a atenção de organizações internacionais, como o Programa Mundial de Alimentos (PMA) e a Organização para a Agricultura e Alimentação (FAO), e de países desenvolvidos e em desenvolvimento. Estes buscavam adquirir conhecimentos com as tecnologias sociais brasileiras de modo a traduzi-las para suas realidades. O Brasil, de sua parte, não perdeu a oportunidade de difundir o seu modelo e ganhar projeção internacional por meio de sua Cooperação Internacional para o Desenvolvimento e da Cooperação Humanitária. Pela primeira vez na história o país se tornara um fornecedor líquido de cooperação internacional, superando a condição de recebedor líquido assistência estrangeira. Na época, o Ministério das Relações Exteriores era comandado pelo experiente Celso Amorim, que alcançou posição de destaque nas negociações internacionais com a bandeira de Fome Zero.
Não se pode deixar de reconhecer que, se por um lado o Brasil ganhou prestígio com a Diplomacia do Combate à Fome, simultaneamente o país fortaleceu-se como Agropotência do comércio internacional. A projeção nos dois campos foi fundamental para a eleição de José Graziano da Silva e Roberto Azevêdo, já sob o governo de Dilma Rousseff (PT), para as diretorias gerais da FAO e da Organização Mundial do Comércio (OMC), respectivamente. Note-se que a OMC é reconhecidamente uma organização que visa a liberalização comercial e, portanto, a menor interferência do Estado na economia. Por isso, muitas interpretações foram feitas sobre a posição do Brasil nas questões agroalimentares: haveria incoerência em defender simultaneamente a agricultura familiar e o grande agronegócio? Seria uma espécie de esquizofrenia resultante da necessidade de equilíbrio entre as diversas forças políticas no sistema de Presidencialismo de Coalizão? Sem entrar neste debate, o fato é que, em meio a contradição, parecia haver um caminho para a superação da Fome. Isto é, as políticas públicas e as tecnologias sociais, associadas ao bom desempenho econômico, contribuíam efetivamente para a Segurança Alimentar e Nutricional da população.
O desmonte da estrutura
Essas estruturas, políticas públicas e tecnologias sociais começaram a ser desmontadas com o golpe parlamentar que resultou na deposição de Dilma Rousseff (PT) e na ascensão de seu vice-presidente, Michel Temer (MDB). Simbolicamente, no seu primeiro dia de governo como presidente interino, Temer rebaixou o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) para Secretaria. Em julho, formalizou a exclusão do MDA da Câmara de Comércio Exterior, a CAMEX, que é um espaço institucional estratégico no processo de formulação de política de comércio internacional. O MDA era o Ministério que dava voz aos camponeses, opondo-se, portanto, ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que é a casa do grande agronegócio. Ainda na área de Relações Internacionais, Temer extinguiu a Coordenadoria Geral de Ações de Combate à Fome do Ministério das Relações Exteriores em 2016.
Ao assumir a presidência em 2019, Jair Bolsonaro determinou, ainda em janeiro, a extinção do CONSEA. Houve resistência da sociedade civil organizada e de parlamentares, mas em setembro o CONSEA foi eliminado. A medida era a realização prática de discurso de campanha amplamente favorável ao grande agronegócio e extremamente crítico às políticas que favoreciam a agricultura familiar, os Sem-Terra e a preservação ambiental. Seu polêmico e inexperiente Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, tuitou que o Itamaraty não seria mais a casa do MST. Em suma, esses movimentos objetivaram desarticular as estruturas de combate à Fome e sufocar a projeção internacional das ideias, políticas e instrumentos que haviam sido consideradas exitosas pela comunidade internacional.
Enquanto isso, no plano doméstico, o mau desempenho econômico do país entre 2015 e 2018 havia aumentado de 4,5% a 6,5% da população brasileira abaixo da linha de miséria extrema. Paralelamente, direitos trabalhistas e sociais vêm sendo flexibilizados, tornando os empregados formais mais vulneráveis e jogando uma parcela cada vez maior da população para a economia informal. Sob o argumento de que o país atravessa uma crise fiscal e defendo a supremacia do mercado sobre as políticas sociais, Temer e Bolsonaro diminuíram o orçamento de programas voltados ao combate à Fome como o Bolsa Família, o Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa de Cisternas, que visa criar estruturas domiciliares para armazenamento da água da chuva em regiões de seca.
Desta forma, a crise de Fome que já estava presente no Brasil é agravada pela pandemia da COVID-19, não apenas em decorrência da retração econômica intensificada pelas quarentenas e adoecimentos, mas também porque o Estado federal encontra-se propositalmente desestruturado para enfrentar a insegurança alimentar e nutricional sistêmica. As medidas de ajuda social no contexto da pandemia são tardias, tímidas e descoordenadas com outras esferas do governo.
Para dar mais um exemplo: o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) foi enfraquecido de Temer a Bolsonaro e a agenda de combate à Fome acabou atribuída à uma Secretaria que caiu no ostracismo. O desmonte da estrutura institucional tem implicações práticas, em termos de políticas públicas e tecnologias sociais, assim como simbólicas. A bandeira de Fome Zero foi deposta e o mastro vazio foi conservado de pé, deixando claro o que não é prioridade neste governo.
A Fome inspirou traços de alguns dos maiores artistas brasileiros, como as pinturas de Cândido Portinari (1903-1962) e os romances de Graciliano Ramos (1892-1953). E inspirou também o trabalho de Josué de Castro (1908-1973), que em 1946 escreveu o clássico Geografia da Fome. Um dos corolários mais célebres de Josué de Castro é o de que a Fome é a expressão biológica de males sociológicos. Essa assertiva traduz com nitidez o cenário que começa a se formar com o golpe parlamentar de 2016 e que vem se intensificando com a miséria humana que caracteriza o governo de Jair Bolsonaro.
Thiago Lima é professor do Departamento de Relações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública e Cooperação Internacional da UFPB. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais.