A falsa igualdade em uma epidemia

Fotografia: Agência Brasil

Somos seres que, dentro do sistema capitalista, acentuado pelo neoliberalismo fundamentalista do mundo do século XXI, temos condições muito diferenciadas de sobrevivência.

Céli Pinto

Fonte: Sul21
Data original da publicação: 25/03/2020

A ideia de que todos os seres humanos estão igualmente expostos ao COVID-19 é mais uma construção de um sistema que, por sua natureza, está calcado na desigualdade. E que, nesta quadra da história, elevou a desigualdade a uma potência máxima.

É verdade que, como nos ensina Judith Butler, nós, seres humanos (e os não humanos também), somos todos igualmente vulneráveis. Para sobrevivermos, necessitamos de um conjunto de condições que nos possibilitem uma vida “vivível”, por um período variado de tempo, até nossa morte inexorável.

Entretanto, isto não nos faz iguais, ao contrário. Somos seres que, dentro do sistema capitalista, acentuado pelo neoliberalismo fundamentalista do mundo do século XXI, temos condições muito diferenciadas de sobrevivência. Elas variam de acordo com a classe, a raça, o gênero, a orientação sexual, as necessidades especiais com as quais nascemos ou adquirimos ao longo da vida, a região do mundo em que vivemos, os governos nacionais sob os quais somos governados.

O capitalismo não foi o único sistema na história da humanidade que explorou a desigualdade, mas certamente foi o que a constituiu como base de sua condição de existência. Neste contexto, as condições de sobrevivermos à vulnerabilidade varia de forma radical, conforme as provisões disponíveis a diferentes grupos.

O liberalismo, mesmo em sua mais sofisticada versão filosófica, se estrutura a partir de uma falsa igualdade, apropriada pelo capitalismo de diferentes formas ao longo da história. Nos momentos em que os menos iguais ameaçam a reprodução do sistema, a burguesia reconhece a ilusão da igualdade e proporciona condições para que a força de trabalho se reproduza, inclusive de forma bastante confortável em alguns países. O boom capitalista do pós-guerra no hemisfério norte é um bom exemplo.

Mas o neoliberalismo profundo e em crise, o qual nos toca viver, reforça a ideia de igualdade para poder se livrar dos desiguais. E tratá-los como iguais é condenar os menos iguais a vidas não vivíveis. Em momentos de crise, como uma pandemia mundial, isso pode significar literalmente a morte.

A ideologia de que todos somos iguais é profundamente perversa. Ao mesmo tempo que justifica privilégios dos 1% mais ricos, convence os 99% que vencer é uma questão de força de vontade e de resiliência. É interessante buscar no dicionário a definição de resiliência, palavra tão em moda na mídia diária e mesmo no nosso vocabulário cotidiano. Vem da física a primeira definição: “propriedade de um corpo de recuperar a sua forma original após sofrer choque ou deformação”. Em sentido figurado, o dicionário define: “capacidade de superar, de recuperar de adversidades.

As definições são provocativas, tanto a primeira como a figurada. Se tomarmos a primeira e aplicarmos aos seres humanos, duas questões aparecem com cores fortes: a a experiência, seja ela qual for, transforma a pessoa humana, não há possibilidade psíquica de voltar ao que se era antes. De outra forma, isso significa que, em termos mais concretos, uma criança que fica sem ter alimentação necessária, ou um adulto que se torna desempregado e não tem como se sustentar nem aos que dele dependem, que passa a viver de caridade ou, em última instância, precisa roubar para comer, não voltará ao seu estado inicial quando o tsunami passar.

Entretanto, o que sustenta governos injustos, o que sustenta a submissão a um capitalismo grotesco, o que sustenta governos eleitos de extrema-direita é a ilusão da igualdade. Quando governos de extrema-direita se elegem com base em um discurso moralista contra a corrupção, apelam para o princípio da igualdade e apontam o corrupto como o único privilegiado e diferente, criam a ilusão de que todos os outros, tanto a burguesia financeira como o desempregado, são iguais, vítimas de quem teria rompido o principio da igualdade.

Na atual seríssima crise sanitária, o perverso princípio da igualdade tem sido ainda mais perverso. A mídia e os políticos determinam quarentenas, fecham milhares de postos de trabalho, repetem ad nauseam que ninguém pode sair de casa, que os idosos devem ficar em casa, que lavem as mãos sem parar, que higienizem as comprar com álcool. Ora, as determinações são para todos e, na grande maioria das vezes, acertadas, mas assustadoramente injustas porque tomam os desiguais como iguais. Em um país com grande contingente de pessoas que está vivendo na economia informal, como eles viverão? Os empreendedores do igualitarismo neoliberal, desde o vendedor de bala nos semáforos aos motoristas de aplicativos, passando por uma gama interminável de gente, vão viver de quê? As pessoas de mais de 60 anos devem ficar em casa, mas quantas cuidadoras de idosos das classes altas têm mais de 60 anos? Quantas faxineiras e empregadas domésticas têm mais de 60 anos? Quantas mulheres de mais de 60 anos mantêm creches informais nas comunidades pobres? São todas mulheres, são todas idosas e muitas vezes arrimo de suas famílias. Como ficarão em casa? E, se ficarem em casa, como é a casa em que moram as camadas populares do país? Quantas pessoas habitam cada pequena casa, muitas vezes improvisada? Há água encanada? Há sistema de esgoto? E o dinheiro para comida, para o álcool, para o sabonete, de onde virá?

Mas são todos iguais, conforme repete a mídia todo o dia e dizem os governantes. Todos têm de fazer sacrifício, ao ponto de o indivíduo que ocupa a presidência da república no Brasil editar uma medida provisória dando direito ao empregador de suspender o salário por 4 meses (decisão retirada em seguida, porque era escancarada demais). Ele precisa salvar a economia e cada um deve fazer sua cota de sacrifício. Só que, para uns, isso significa não ter os lucros esperados ou não ir à Europa neste ano, para outros, significa perder a vida.

A pandemia é grave ao redor do Planeta. Não é possível fazer previsões de quantos morrerão, nem de como as economias e o quadro político se comportará em cada país. Mas parece claro que haverá uma grande eliminação dos que não têm garantidas as condições de dar conta das vulnerabilidades que lhe são inerentes como seres vivos, como seres humanos. Resta a esperança de que os que sobreviverem não sejam resilientes e voltem à forma anterior à crise, mas que ponham em xeque este perverso princípio de igualdade liberal capaz de sustentar, mesmo nos momentos mais trágicos da vida humana, os interesses de 1% em prejuízo de 99%.

Céli Pinto é professora emérita da UFRGS, cientista política e professora convidada do PPG de História da UFRGS.

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