A falência do sistema de registro sindical no Ministério do Trabalho

Cássio Casagrande

Fonte: Jota
Data original da publicação: 23/07/2018

A Polícia Federal revelou na “Operação Registro Espúrio” um esquema ilegal, pelo qual sindicatos pagavam propinas a servidores e políticos para obtenção de registro perante o Ministério do Trabalho. O escândalo oferece uma ótima oportunidade para uma reflexão sobre a necessidade de se abandonar o esquema cartorial de reconhecimento das entidades sindicais no Direito brasileiro, especialmente neste cenário pós-Reforma Trabalhista em que os fundamentos da ordem sindical brasileira foram abalados.

Considerando-se que a Constituição de 1988, perto de completar seus trinta anos, consagrou os princípios da liberdade e da autonomia sindical, deveria causar certa perplexidade o fato de que a existência e sobrevivência dos sindicatos no Brasil ainda dependa do reconhecimento do poder executivo, no exercício de sua competência administrativa. Pior, persiste um modelo que é muito semelhante ao vigente no Estado Novo, quando a ideologia autoritária então prevalecente instituiu o registro sindical como forma de controle político do governo sobre os sindicatos. E o Supremo Tribunal Federal, através da Súmula 677, editada em 2003, acabou por respaldar esse velho sistema.

Mas por que, afinal, esse paradoxal anacronismo subsiste, com a chancela do STF? Para entender a questão, voltemos rapidamente no tempo. Durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte houve consenso de que, findo o regime militar e com os novos ares democráticos, era chegada a hora de pôr fim ao sistema autoritário de organização sindical, em que o Estado, através do poder executivo, intervinha diretamente na vida dos sindicatos desde o momento de sua criação, por meio do controle sobre o registro das entidades no Ministério do Trabalho, que poderia, discricionariamente, deferir ou não sua criação, outorgando a chamada “carta sindical”. Por isso, o artigo 8º, inciso I, da Constituição da República expressamente estabeleceu a liberdade e autonomia como princípios da ordem sindical, ressalvando apenas a possibilidade de “registro no órgão competente”. Ocorre que a Constituição também manteve outros pilares que remontavam ao modelo varguista de organização dos sindicatos: a unicidade e a compulsoriedade das contribuições (art. 8º, incs. II e IV).

Assim, promulgada a Constituição, surgiu o problema de compatibilizar o teor do inciso I com o disposto nos incisos II e IV do mesmo artigo 8º. Há liberdade para criação e organização interna do sindicato, mas quem, afinal, vai definir qual é o sindicato representativo da categoria? Quem vai decidir, consequentemente, qual sindicato tem direito a arrecadar a contribuição compulsória? O “registro” a que alude o inciso I é para esse fim de preservar a unidade e a legitimidade arrecadatória? O Ministério do Trabalho, deparando-se logo no início da vigência da Constituição com essa questão e instado por diversas entidades sindicais a manter o registro, editou em 1990, na gestão do ministro Antonio Magri, Instruções Normativas “em caráter provisório” (IN no. 05, de 15.01.90, depois revogada pela IN no. 09, de 21.03.90), regulamentando o registro, mas retirando-lhe qualquer discricionariedade; permitia-se ainda um prazo para “impugnação” pelos interessados, embora não se reservasse qualquer poder decisório sobre isso à administração, já que os eventuais conflitos deveriam ser dirimidos perante o poder judiciário.

Este ato administrativo foi, contudo, revogado pela Instrução Normativa no. 01, de 27 de agosto de 1991, alterada pela Instrução Normativa n° 02, de 01 de setembro de 1992, onde se estabelecia que a inscrição dos atos de instituição e do estatuto do sindicato deveria ser feita em serviço notarial, no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, até que a matéria fosse regulamentada, sob pena de interferência do Poder Público na organização sindical. Facultava-se, porém, às entidades sindicais o depósito de seus estatutos no AESB – Arquivo de Entidades Sindicais Brasileiras, então criado pelo Ministério do Trabalho e Emprego para fins de cadastro, não constituindo ato concessivo de personalidade sindical.

Depois desta decisão administrativa, diversos sindicatos passaram a judicializar a questão, inclusive impetrando mandados de injunção contra o Congresso Nacional, para que este editasse lei indicando qual o órgão responsável por determinar o sindicato legítimo à representação de categorias de trabalhadores em face do critério de unicidade; esses processos ocorreram não apenas em razão da dúvida sobre a permanência do papel tradicional do Ministério do Trabalho, como também porque após a Constituição de 1988 houve um grande boom na criação de novos sindicatos e surgiram diversas disputas intersindicais de representatividade. Vários desses casos chegaram ao STF (MI 144; MI 388; ADI 1121 MC; RE 146.822; RE 134.300), que, entre 1993 e 1996, acabou decidindo, em resumo, que “até que lei venha a dispor a respeito, incumbe ao Ministério do Trabalho proceder ao registro das entidades sindicais e zelar pela observância do princípio da unicidade”. Este entendimento foi consolidado e transformado na Súmula 677, aprovada em 2003, como já referido.

A partir da edição da Súmula 677, o MTE passou a regulamentar administrativamente o processo de registro sindical em várias e sucessivas instruções normativas e portarias, criando regras cada vez mais minudentes e complexos não apenas para o registro, como também para o processo administrativo de impugnação, chegando ao ponto de elaborar um “manual” sobre todo o procedimento. Isto é, na prática, o MTE passou a deter um poder de jurisdição administrativa sobre o processo de registro de novos sindicatos, no qual há razoável exercício de discricionariedade, o que não me parece compatível com o princípio da liberdade sindical.

Acredito que a edição da Súmula 677 foi um grave erro do Supremo Tribunal Federal, especialmente porque entre as decisões jurisdicionais acima referidas (sendo a última de 1996) e a edição da Súmula, em 2003, o Brasil firmou o Protocolo Adicional à Convenção Americana Sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (conhecido como “Protocolo de São Salvador”), integrado à ordem jurídica interna pelo Decreto 3.321, de 31.12.1999, assinado pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso. O Art. 8º desta norma internacional de direitos humanos, integrada, portanto, ao nosso ordenamento jurídico interno, estabelece que os Estados-Partes garantirão “o direito dos trabalhadores de organizar sindicatos e de filiar-se ao de sua escolha, para proteger e promover os seus interesses. Como projeção deste direito, os Estados-Partes permitirão aos sindicatos formar federações e confederações nacionais e associar-se às já existentes, bem como formar organizações sindicais internacionais e associar-se à de sua escolha. Os Estados-Partes também permitirão que os sindicatos, federações e confederações funcionem livremente.”

Ou seja, a partir da internalização, em 1999, do Protocolo de San Salvador, parece de razoável clareza que apenas os próprios trabalhadores podem e devem determinar qual é o sindicato que entendem ser representativo de sua categoria, afastando-se, por conseguinte, qualquer possibilidade de que esta decisão seja proferida pelo estado-administração. Isto é, bastaria o depósito dos atos assembleares e estatutários do sindicato, como associação civil, no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, para lhe conferir plena personalidade jurídica, e eventuais conflitos de representatividade (inclusive para fins de contribuição) devem ser decididos in loco pelos próprios trabalhadores interessados. Aliás, os trabalhadores podem, inclusive, decidir a própria latitude da categoria, já que este conceito não se confunde com o de unicidade. É justamente pela possibilidade de definir o que é uma “categoria profissional” (conceito não explicitado pela Constituição) que o Ministério do Trabalho assume um poder discricionário sobre o registro. A abrangência de uma categoria profissional deveria ser definida pelos próprios trabalhadores, se se pretende levar a sério o conceito de liberdade sindical.

Mas como se daria isso na prática, especialmente na ausência de regulação pelo Congresso Nacional? Penso que podemos encontrar resposta no direito comparado dos EUA e, inclusive, em algumas experiências que já ocorreram aqui no Brasil.

Os Estados Unidos também possuem um sistema de unicidade sindical, na medida em que o National Labor Relations Act estabelece que apenas um único sindicato pode negociar os contratos coletivos em nome dos trabalhadores de uma determinada categoria. Porém, contrariamente ao sistema brasileiro, não ocorre uma definição apriorística e formal de qual seja a categoria ou mesmo de qual é o sindicato legitimado a representá-la. A legislação norte-americana estabelece uma política de intervenção pública mínima e eventual, apenas em face de conflitos concretos. Assim, o Conselho Nacional de Relações do Trabalho (National Labor Relations Board) pode determinar administrativamente, por critérios técnicos, a latitude da categoria (bargaining unit) e, no caso de conflitos de representatividade (quando, por exemplo, dois sindicatos disputam uma mesma base), a autoridade do governo pode organizar e promover eleição dentre os trabalhadores interessados, para que eles próprios indiquem qual é o sindicato que os representa.

Aqui no Brasil, alguns conflitos intersindicais são resolvidos administrativamente não de acordo com critérios de “representatividade”, mas sim de “anterioridade”. Esse sistema, além de interferir na liberdade e na autonomia dos sindicatos, e de oportunizar esquemas de corrupção, é, sobretudo, ineficiente, pois “leva (o registro) quem chega antes”. As autoridades não fazem qualquer verificação sobre “representatividade efetiva” dos sindicatos requerentes. Assim, o Ministério do Trabalho (ou mesmo a Justiça do Trabalho no caso de judicialização da controvérsia) pode “premiar” com o registro um sindicato “de fachada”, sem representatividade, que apresente os documentos necessários antes de outro que seja de fato legítimo e conte com apoio de grande parte de uma categoria de trabalhadores, mas que não esteja muito bem organizado ou assessorado.

Mesmo com as péssimas normas atuais e com a constante omissão do Congresso Nacional sobre o tema, é possível encontrar soluções jurídicas mais criativas, especialmente se orientadas pelo Protocolo de San Salvador e inspirados no direito comparado, como vimos acima pelo exemplo do modelo norte-americano. Algumas experiências judiciais no Brasil, em primeiro grau de jurisdição, podem ser modelares.

Uma delas ocorreu na 7ª. Vara do Trabalho de Santos, nos autos da ação 001475-07.2015.5.02.0447, processo em que o Sindicato Nacional dos Marinheiros disputava com o Sindicato Nacional dos Trabalhadores Aquaviários do Guarujá e Região o direito de representar os trabalhadores marítimos do litoral do Estado de São Paulo. Ao invés de pura e simplesmente decidir burocraticamente a partir de análise documental qual o sindicato legítimo a representar a categoria, o juiz designado para o caso logrou conciliar as partes, para que, sob supervisão do Ministério Público, organizassem eleição entre os trabalhadores da categoria, de modo que esses se manifestassem indicando o sindicato que entendiam melhor representá-los. A eleição foi realizada e o juiz ao final do processo julgou o caso em favor do sindicato que recebeu mais votos dos trabalhadores.

É verdade que a Reforma Trabalhista, ao extinguir a contribuição sindical compulsória (mas mantendo-a condicionada às autorizações individuais ou mesmo coletivas em assembleias, conforme várias decisões judiciais já proferidas), trouxe novas incertezas sobre a necessidade, de fato, de que uma autoridade administrativa “certifique” qual é o sindicato representativo da categoria para fins arrecadatórios. Mas esse momento de crise de sustentabilidade financeira dos sindicatos é, também, uma ótima oportunidade para que o modelo de representação sindical, como um todo, seja repensado.

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Agradeço ao Procurador do Trabalho João Carlos Teixeira, especialista em temas sindicais, por ter me dado vários insights relevantes sobre algumas das ideias aqui apresentadas e que foram objeto, também, de aula que ministrei na Escola Superior do Ministério Público da União, no mês de maio.

Cássio Casagrande é doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.

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