A falácia da meritocracia

Meritocracia não é mera questão de esforço pessoal e recompensa. Depende de uma gama gigantesca de conexões. 

André Peixoto de Souza

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 21/02/2022

Em novembro de 2013, Paulo Henrique Félix da Silveira, conhecido como Paulinho, ganhou repercussão mundial através da fotografia capturada por Diego Nigro, que mostrava o menino de nove anos de idade boiando, quase inteiramente submerso, no lixão do canal do Arruda, zona norte do Recife, Pernambuco. Paulinho e seus dois primos também pequenos, na ocasião, ali trabalhavam escolhendo o que de todo o lixo poderia ser reaproveitado (plástico e alumínio) mediante reciclagem. Na cena emblemática é difícil distinguir lixo e cabeça de criança.

Nesse mesmo ano, em Londres, nascia o príncipe George de Cambridge, filho de William e Kate, neto de Charles e Diana, bisneto da rainha Elizabeth II. Desde então, é chamado Sua Alteza Real, e em seu batizado recebeu primeira homenagem oficial, uma moeda comemorativa de ouro e prata com o seu nome estampado.

Paulinho e George estão no mundo e, por conseguinte, estão no mercado. A corrida da vida já começou, o tiro de largada já foi disparado, e quem chegar primeiro, por seus próprios méritos, vence. Eis o princípio da meritocracia. A diferença oculta, no entanto, é que George já chegou – sem precisar dar um único passo. Seu mérito é hereditário; a sua linha de largada é totalmente diferente da linha da qual largou Paulinho na corrida da vida. Portanto, o princípio da meritocracia esconde uma desigualdade ontológica que jamais poderá se coadunar com qualquer critério de justiça social. Jamais.

A expressão “meritocracia” foi criada em 1958 por Michael Young (no livro The rise of the meritocracy) enquanto crítica a essa prática que, segundo o pensador britânico, propagava a exclusão e a desigualdade social. Percebamos, pois, que a palavra-conceito surge como crítica de sua própria ação. A principal denúncia de Young estava no ponto de que o mérito seria um instrumento para atingimento e exercício (e perpetuação) de poder e privilégios. Tudo o mais deriva dessa matriz, como os sofismas da igualdade de oportunidades, o reconhecimento do mérito, a máxima do melhor aproveitamento etc. Afinal, é impossível preconizar igualdade de oportunidades sem perceber ali, naquele exato instante, a ratificação das desigualdades sociais. Ora, basta perceber de onde vem a definição dos critérios para reconhecimento do mérito, de quem vem a estipulação dos prêmios, quem, enfim, concede a titulação meritória àqueles que “venceram”. A partir do instante em que alguém define as regras da meritocracia, coadunando o termo-conceito, o jogo já está posto de maneira tendenciosa e falaciosa.

Vejamos, por exemplo, o mais destacado argumento favorável à meritocracia, ecoado por quem nela acredita – pois é mais uma crença que uma racionalidade: a de que sua prática é melhor que compadrios, nepotismos e hierarquias, como pretensamente se vislumbra em outros sistemas sociais. Percebamos o embuste. Com o estabelecimento, pela classe dominante, das regras meritocráticas (e de toda a premiação dali decorrente), isso se propaga indefinidamente, pois a classe dominante impõe a meritocracia enquanto modelo de realidade e reproduz precisamente aquilo que outrora criticava: a transmissão hereditária dos postos, dos cargos, das melhores posições sociais e econômicas, ad infinitum.

No sentido crítico, o surpreendente texto de Michael Sandel, A tirania do mérito (de 2020), oferece-nos contundente contraponto a esse verdadeiro pilar do liberalismo, a meritocracia, ao apontar as consequências nefastas da competição entre pessoas. Porque, numa competição, haverá ganhadores e perdedores, de cuja cultura se extrai nada menos que a normalização das desigualdades sociais. Sandel aponta que a meritocracia é uma ideia sedutora, baseada na primazia de que todo esforço pessoal é reconhecido e recompensado. Porém, esse fascínio contém duas armadilhas: a falácia já antes mencionada de que a linha de largada é ou deveria ser igual para todos (vide Paulinho e George), e o que ele chama de “lado obscuro da meritocracia”, que seria a hipótese de um prévio ajustamento para essa linha de largada igualitária (ou justa) e a implacável desigualdade social gerada na linha de chegada, mediante classificação de vencedores e perdedores.

Concluo de Sandel que a própria ideia de competição entre pessoas, núcleo central do (neo)liberalismo econômico, é posta em xeque ao expor visceralmente todos os critérios de desigualdade (e, portanto, de injustiça) na saída e na chegada da corrida meritocrática pela vida. Isso sem falar em variáveis independentes de nossas vontades meritocráticas como sorte (fortuna), talentos, dons naturais, habilidades natas: em primeiro lugar, tê-los; em segundo lugar, tê-los no lugar certo e no tempo [histórico] certo. Nascer na periferia do Recife ou nascer no palácio de Buckingham. Meritocracia não é mera questão de esforço pessoal e recompensa. Depende de uma gama gigantesca de conexões. Ou seja, a vida é injusta desde a origem. Não digo sozinho; digo com Hayek, para usar os contraditórios fundamentos do próprio liberalismo: “No regime de concorrência, as probabilidades de um homem pobre conquistar grande fortuna são muito menores que as daquele que herdou sua riqueza. Nele, porém, tal coisa é possível, visto ser o sistema de concorrência o único em que o enriquecimento depende exclusivamente do indivíduo e não do favor dos poderosos, e em que ninguém pode impedir que alguém tente alcançar esse resultado”. A primeira parte da citação escancara a ideologia por trás da tirania do mérito. Ato falho que revela desejo inconsciente. A segunda parte tenta remediar, mas não consegue. Dizer que o enriquecimento depende do indivíduo e não dos poderosos é auto engano liberal para sustentar o “espírito” capitalista (ver Weber), quando sabemos que essa “liberdade” é direcionada, senão traiçoeira.

Observemos a escola, o locus mais propício ao discurso meritocrático, mais ainda que o lugar corporativo, empresarial, com toda sua agressividade de mercado. A práxis meritocrática vem se perpetuando nos ingressos às escolas, nos cursinhos preparatórios, nos vestibulares, no acesso aos mais distinguidos cursos e Universidades, nos concursos públicos, nos melhores empregos, e, em última instância, na constituição das famílias. Tentemos perceber o continuum que vai de um lugar ao seu mesmo ponto – só que da geração seguinte. Toda a questão se centra no acesso ao ensino.

Basta ler o artigo 206, I da Constituição, que estabelece a principiologia do ensino no Brasil, recebendo como primeiríssimo ponto a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”. Isso se completa com o dever do Estado no que toca à educação nacional, registrado no subsequente artigo 208, V, assim: “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um”. Destaquei a parte final. Então, temos na Constituição a igualdade de condições para acesso à escola, segundo a capacidade de cada um. É de se refletir. Pensemos, por exemplo, no ensino superior em instituições públicas – as mais almejadas, por todas as classes (veja-se o ranking das melhores Universidades brasileiras, anualmente publicado por órgãos públicos e privados). Ora, não há vaga para todos; portanto, alguns entrarão, outros não.

Vestibular e concurso público são, talvez, os melhores exemplos de aplicação da meritocracia na corrida da vida. No estudo e no trabalho. Mas qual o “mérito” de quem obteve êxito no vestibular ou no concurso? Pequenas exceções à parte, parece ser crucial o tempo livre para estudo. É de se imaginar Paulinho e George se preparando para o vestibular, um trabalhando oito horas por dia no lixão, estudando outras seis horas, outro estudando oito ou dez horas por dia, com três refeições servidas e uma equipe de professores particulares à disposição. Nessa evidentemente desigual e injusta competição aparecem as ações afirmativas, a política de cotas, que comporta paradoxo insolúvel: as melhores notas dos cotistas são ainda piores que as piores notas dos não-cotistas. E os não-cotistas se insurgem judicialmente porque suas notas foram melhores e restaram preteridos. Bem, eis a ratificação da necessidade da cota. Não fosse assim, cotistas jamais ingressariam. Sua chance foi retirada lá na origem, lá no lixão do canal do Arruda. Não há como não perceber que o mérito é verdadeiro instrumento de legitimação das desigualdades.

Mas, essa é uma visão externa do problema. Ainda há o polêmico aspecto interno que merece apenas singelo apontamento. Refiro-me aos obsoletos e absurdos sistemas de avaliação, cujos modelos datam do século XII (que ainda aplicamos sem alteração: expediente literalmente medieval), provas e notas, perguntas e respostas, assertivas a serem marcadas com “x”, redações com correção agora automática e robotizada. A escola. Sistema de avaliação, chamada, presença, notas, prêmios de melhor aluno, concurso, monitoria, bolsas de estudo… é muito evidente que somos treinados, desde crianças, num (e para um) mundo meritocrático, cujo plano é a inegável manutenção das desigualdades, fundamento e razão de ser do liberalismo e do capitalismo.

Finalizo com o Hayek liberal, usando mais uma vez o seu próprio peso: “Só existe um princípio geral, uma regra simples que de fato ofereceria uma resposta inequívoca a todas essas perguntas: igualdade, completa e absoluta igualdade de todos os indivíduos em todos os assuntos que estão sujeitos ao controle humano”[1]. Os liberais não se cansam de cair e se prender em suas próprias teias.

A raiz do problema está, a meu ver, na propriedade privada e no direito à herança. Parece-me que seja esse o ponto preciso de interesse do conservadorismo.

Notas

[1] O caminho da servidão, Capítulo 8.

André Peixoto de Souza é advogado e historiador.

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