Industrializações tardias requerem uma maior participação do Estado, haja vista que a oligopolização do setor externo inibe a entrada de novos participantes.
Daniela Cardoso
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 22/10/2021
Enquanto o Brasil se digladia no populismo entre direita e esquerda, o leste asiático, principalmente em seu expoente sul coreano, se concentra em alavancar seu PIB.
Até a década de 1980, o Brasil possuía PIB e produção industrial superior à da Coreia do Sul (os demais tigres asiáticos sequer eram citados). Contudo, a partir daquela década, tudo começou a mudar.
Um dos principais expoentes desta transformação se chama Estado que, a partir da década de 1960, sob a gestão do general Park Chung-hee, desenhou e promoveu o sistema produtivo orientando investimentos, formando rincões industriais com ausência de multinacionais, fazendo utilização de câmbio desvalorizado, efetuando reforma agrária (onde o público se sobrepôs às elites) e articulando o sistema financeiro com as indústrias.
Vale lembrar que, não fosse a perseverança e insistência do presidente Park Chung-hee em desenvolver a estatal de aço (em oposição ao FMI que não financiou o projeto por não se tratar de uma vantagem comparativa), a Coreia do Sul não teria desenvolvido uma das maiores indústrias siderúrgicas existentes no mundo.
O presidente à época concedeu benefícios fiscais à formação da indústria local, em contrapartida de desenvolvimento tecnológico e metas de exportação a serem alcançadas (oposto ao ocorrido no Brasil). Ao contrário do que preconizam os liberais, o desenvolvimento da indústria automobilística local contou com o auxílio do aumento das tarifas de importação para proteção e desenvolvimento da indústria local.
Essa estratégia baseada no protagonismo do Estado, em um primeiro momento, incrementou o investimento público sul coreano e subsidiou, com benefícios fiscais e linhas de crédito a juros preferenciais, a criação das chaebols, os grandes conglomerados sul coreanos, que impulsionaram o crescimento daquela nação e que, atualmente, representam em torno de 40% do PIB do país.
Industrializações tardias requerem uma maior participação do Estado, haja vista que a oligopolização do setor externo inibe a entrada de novos participantes. Desse modo, sem a distorção de preços relativos promovida pelo governo sul coreano, não haveria como ter produto sul coreano no mercado internacional.
Somente após o desenvolvimento tecnológico é que o país iniciaria políticas econômicas mais liberais. A partir da década de 1980, iniciam-se as privatizações do sistema financeiro que, em sua maioria, é absorvido pelas chaebols.
Importante também mencionar a fundamental importância da participação norte-americana no desenvolvimento regional do leste asiático. Isso porque, a partir do auxílio para a recuperação da economia japonesa pós-Segunda Guerra, os norte-americanos dispenderam vultosos investimentos naquele país que rapidamente se tornou superavitário em sua balança comercial, em especial, com a nação que viera a socorrê-la. O Japão, por sua vez, logo após a recuperação e retomada das relações diplomáticas com a Coreia, na década de 1970, licenciou a tecnologia de seus produtos de menor tecnologia para esse país. Vale lembrar que, em decorrência da posição geográfica do leste asiático, os EUA, após concluído o plano de recuperação da economia japonesa, não apenas permanecem na região como aprofundam suas relações políticas com os demais países, na tentativa de evitar uma expansão soviética. Isso, principalmente, durante a década de 1980, período posterior a duas crises do petróleo e de alta dos juros internacionais. Enquanto o Brasil cessava seu desenvolvimento econômico para se dedicar quase que exclusivamente ao pagamento da dívida externa, o leste asiático, dada sua importância regional (em especial após os norte-americanos perderem a Guerra do Vietnã), permaneceram com seus empréstimos internacionais com taxas de juros diferenciadas. Os bancos públicos sul coreanos se endividavam com os EUA e emprestavam o valor para desenvolvimento da economia local.
Vale lembrar que o processo de reforma agrária na Coreia do Sul foi patrocinado pelos norte-americanos, como estratégia de enfraquecer a oligarquia agrária e fomentar a nova classe industrial. De 1965 a 2015, o Índice de Complexidade Econômica da Coreia do Sul em uma escala de -2 para os menos complexos a 2 para os mais complexos, foi de 1 a quase 1,75.
Em 1985, em decorrência do Acordo de Plaza entre EUA e Japão, que culminou com a valorização da moeda japonesa, os sul coreanos se beneficiaram em decorrência da automática desvalorização da sua moeda, o que auxiliou na expansão dos produtos locais.
A Coreia do Sul se especializou na cadeia produtiva total a partir de tecnologia patenteada no Japão e, da mesma forma que este, auxiliou no desenvolvimento regional por meio de investimentos intra empresas (externalização das partes periféricas de seus processos produtivos), minimizando o poder de atuação norte-americana na região. Importavam bens de capital do Japão e exportavam bens industrializados mais simples ao Ocidente.
Vale lembrar que, na década de 1960, a renda na Coreia do Sul equivalia à metade da renda brasileira e que o ensino no país é voltado a capacitações, considerando que, diferentemente daqui, o país asiático não possui capital natural; logo, teve que desenvolver o capital humano, sendo o governo de Seul o grande responsável pelo subsídio às universidades que desenvolverem pesquisas para as chaebols.
A abertura dos grandes centros tecnológicos ocorreu entre as décadas de 1980 e 1990, quando o processo educacional já estava concluído (iniciado na década de 1960) e o investimento em pesquisa e desenvolvimento já estava em fase avançada, haja vista que seu início tinha ocorrido há pelo menos dez anos. A partir da década de 1990, assim como o restante da Ásia, a Coreia promove a abertura da conta de capitais, momento no qual ocorre a crise asiática. Segundo o FMI, essa crise decorreu do elevado volume de empréstimos subsidiados a empresas não solventes e ao alto grau de alavancagem.
Já pela visão heterodoxa, a despeito da consequência apontada pelo FMI estar correta e do efeito benéfico sobre o controle inflacionário que a abertura econômica provocou, a causa fundamental da crise remonta ao Estado que falhou na regulação da competição entre as chaebols, o que reduziu a lucratividade das mesmas.
Verdade que a oligopolização, através dos chaebols, concentrou poder econômico e expôs o país na crise de 1997. Todavia, graças ao arcabouço industrial arquitetado pelo Estado, não houve uma maior venda de ativos sul coreanos ao mercado internacional.
Esses movimentos fizeram o governo rever a necessidade da presença do Estado na economia, não mais ativamente como investidor, mas como articulador de mercado, sociedade civil, sistema produtivo e sistema financeiro, não perdendo o foco da sociedade que desejavam ter.
A distinção entre Brasil e Coreia do Sul começa a aparecer na década de 1980, quando a situação externa obriga os dois continentes a adotarem políticas econômicas distintas. A Ásia se financiou pela conta corrente e o Brasil pelo financiamento externo da conta de capital. Enquanto na Ásia o câmbio se manteve desvalorizado para promoção das manufaturas mundialmente, no Brasil apreciou-se o câmbio para controle inflacionário. A valorização cambial na Coreia começaria apenas na década de 1990, em decorrência da abertura financeira.
Como o Brasil não completou o processo de industrialização conseguindo romper a chamada fronteira tecnológica (de produtor de baixa e média tecnologia para indústria high tech), a partir de 1990, quando se inicia o processo de liberalização econômica, as privatizações promovem uma avalanche de grupos internacionais chegando ao país, o que acarretou um aumento da internacionalização dos produtos fabricados em terras nacionais, mas não necessariamente brasileiros. Já na Coreia do Sul a abertura ocorreu apenas após a formação de grandes grupos locais competitivos no mercado internacional.
Do mesmo modo, a Coreia do Sul, assim como os demais ‘tigres asiáticos’, “pactuou”, por anos, a manutenção do câmbio desvalorizado para fomento das exportações regionais. Vale destacar que as desvalorizações cambiais contribuem à medida que estimulam as exportações para contrabalancear os efeitos negativos da abertura econômica.
Parece que dois foram os pressupostos principais da distinção do crescimento econômico do Brasil e da Coreia do Sul: Estado articulador e fomentador da indústria nacional, que não apenas desenvolveu seu país, mas, até hoje, promove o desenvolvimentos de países vizinhos, “os novos tigres asiáticos” e auxílio norte-americano que enxergou na Coreia do Sul uma base geopolítica importante; enquanto no Brasil a inserção foi passiva, distante dos centros decisórios e desarticulado das cadeias produtivas globais.
De todo modo não será a dicotomia “direita X esquerda” que fará o Brasil alterar o modelo do crescimento econômico. A escalada produtiva e o Estado propulsor de desenvolvimento econômico transcendem as ideologias políticas e deve ser pauta comum de qualquer um dos vieses. Enquanto essa “conversa de adulto” não permear as discussões político-partidárias, seremos eternamente um país preso à Armadilha da Renda Média e ampliando as desigualdades presentes em nossa sociedade.
Daniela Cardoso é economista, mestre em Ciências Sociais e professora convidada na pós-graduação da Sociologia e Política – Escola de Humanidades.