Cultura tóxica das empresas implode direitos e gera insegurança ocupacional. 7,6 milhões de brasileiros desistiram de procurar emprego. Resultado: o país tem uma das taxas mais baixas de produtividade.
Marcio Pochmann
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 19/06/2023
A revista inglesa The Economist (A land of frustrated workers: Why are Latin American workers so strikingly unproductive?), pretensa porta-voz dos interesses do capitalismo ocidental, afirmou que a baixa produtividade na economia dos países latino-americanos tornou os trabalhadores inúteis ao sistema de produção e distribuição de riqueza. No caso brasileiro, por exemplo, a produtividade no conjunto da economia desde a pandemia da covid-19 já acumula queda de 27,1% (de 2020 a 2022).
Se forem consideradas as últimas quatro décadas, a produtividade que resulta da relação entre o Produto Interno Bruto (PIB) e o número de horas trabalhadas permaneceu praticamente congelada. A variação média de apenas 0,6% ao ano enuncia uma das mais baixas produtividades do mundo, apontando a realidade da estagnação secular do capitalismo no Brasil.
Na trajetória das 13 décadas passadas sob o domínio do modo de produção capitalista no país, o pior comportamento econômico encontra-se em curso desde o ingresso na globalização. A variação média anual do PIB por habitante desde os anos 1980 até os dias de hoje tem sido a menor, quando comparada aos períodos do nacional desenvolvimentismo entre as décadas de 1930 e 1970 (4,2%) e da República Velha (0,7%) de 1889 a 1930.
Além disso, a presença atual do Brasil no comércio internacional é quase a mesma de 1980, porém com importante alteração na composição dos produtos exportados e importados. Enquanto o Brasil (que representa 2,7% da população do planeta) responde, por exemplo, por 1,3% das exportações mundiais (25a posição no ranking dos países), as vendas externas de produtos manufaturados somam apenas 0,2% das vendas do mundo e as dos produtos primários alcançam 4,7%.
Dessa forma, o saldo positivo no comércio de US$ 61,8 bilhões obtido em 2022 somente foi possível com o superávit nas exportações de produtos primários (cerca de US$ 180 bilhões), diante do saldo negativo acumulado pelo setor manufatureiro (cerca de US$ 128 bilhões). Tudo isso porque o Brasil tem conseguido aproveitar o que ainda resta do superciclo de commodities desencadeado pela industrialização e abertura do mercado chinês desde o início do século 21.
Tal como verificado na experiência do superciclo de commodities durante o salto na industrialização dos EUA, ocorrido na passagem do século 19 para o século 20, o Brasil aproveitou intensamente a expansão de suas exportações provenientes da economia cafeeira, coincidindo com a abolição do trabalho escravo e a instalação da República. Mas a natureza liberal-conservadora da elite política da República Velha manteve uma enorme massa social sobrante no campo, constitutiva das especificidades tanto das classes sociais para Caio Prado Júnior (Formação do Brasil Contemporâneo, 1942), como do circuito inferior da economia urbana para Milton Santos (O espaço dividido, 1979).
Com a Depressão de 1929 que enterrou o liberalismo da época, o país reagiu por meio de uma reviravolta política que desabrochou com o nome de Revolução de 1930. A modernização do capitalismo no Brasil avançou até a década de 1970 demarcada pelo conservadorismo do andar de cima.
A montagem da sociedade urbana e industrial somente passou a ser interrompida nos anos 1980 com a política de ajuste adotada nos Estados Unidos na tentativa de conter a trajetória do declínio hegemônico no mundo. A “pá de cal” aconteceu a partir do governo Collor (1990-92), quando o ingresso passivo e subordinado na globalização abriu “a porteira para passar a boiada e mudar” os rumos do país em direção ao modelo primário-exportador.
A pequenez e a fragilidade do capitalismo no Brasil passaram a se tornar mais transparentes e inquestionáveis. Das duas mil empresas mais importantes do mundo, o país conta com somente 20, o que expõe o quanto o Estado patrimonial continuou a funcionar em cumplicidade com os interesses privados internos e externos.
O entrelaçamento político de setores econômicos dominantes com o Estado segue sendo materializado, sem compromisso de eficiência e emprego decente, por desonerações, isenções e incentivos fiscais e crédito subsidiado às empresas produtivas, bem como pela artificialidade da elevadíssima taxa de juros em benefício do sistema financeiro. Sem o Estado patrimonialista, o setor privado – indisposto à concorrência e de contida capacidade de concorrer internacionalmente –, persegue a máxima da cordialidade identificada desde a formação nacional por Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936), pois muitas vezes se mostra incapaz de operar na esfera privada do mercado separadamente da dependência da esfera pública.
No contexto nacional da estagnação secular, a classe laboral tem sido a vítima, pois é exposta à degradação das condições de trabalho, ao estancamento do emprego assalariado com direitos sociais e trabalhistas e à ausência de mobilidade social ascensional. O resultado disso aparece na crescente multidão de sobrantes aos requisitos do capitalismo.
Sem horizonte de destino, termina se integrando às poucas oportunidades que aparecem. Nem sempre legais, as possibilidades que se abrem à população sobrante ocorrem no âmbito da circulação do dinheiro em atividades operadas pela digitalização da vida social, da economia popular e de subsistência, muitas vezes mediadas pelo fanatismo religioso e banditismo social.
Em certo sentido, isso vem se destacando pela renúncia de parcela da classe trabalhadora ao fetiche capitalista. Nos últimos dez anos, por exemplo, a quantidade de beneficiados pelo sistema da previdência e assistência social cresceu 46,1%, ou seja, 11,9 milhões de novos aposentados e pensionistas que deixaram de fazer parte da pressão por emprego nas atividades capitalistas.
No mesmo sentido da inatividade que tem contribuído para artificialmente reduzir o número de desempregados, constata-se também a queda na taxa de participação da população economicamente ativa no mercado de trabalho. Também nos últimos dez anos, a taxa de participação declinou de 65,9% da população em idade ativa para 61,6%.
Com isso, 7,6 milhões de brasileiros que fazem parte da força de trabalho ativa passaram a estar fora do mercado de trabalho. Segundo a metodologia de apuração, constituem um segmento social à parte, pois não procura trabalho, não trabalha e nem está desempregado.
Possivelmente, esta é a expressão visível da debandada da mão de obra do decadente horizonte capitalista. O elevado grau de exploração imposto pela cultura tóxica das empresas, a insegurança ocupacional, a pressão intensa e a falta de reconhecimento e valorização profissional convergem com a estagnação do capitalismo no Brasil para esvaziar sua capacidade de coesionar o conjunto da sociedade, seja pela violência da disciplina, seja pelo consentimento explorador da remuneração.
Marcio Pochmann é Economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004.