A obra de Machado de Assis contém inúmeras referências à escravidão, e a crítica está na maneira como o autor retrata seus personagens da classe dominante e a atitude que tinham ante o trabalho servil
José Carlos Ruy
Fonte: Vermelho
Data original da publicação: 24/11/2019
Machado de Assis foi um escritor atento aos problemas de seu tempo, e um arguto observador do comportamento de membros da classe dominante ante estas contradições. Sua obra traz inúmeras e precisas referências, quase documentais, de atitudes comuns da elite financeira, latifundiária e escravista de seu tempo.
O melhor exemplo são as referências à escravidão feitas em sua obra. Aquele era o grande problema da segunda metade do século XIX, período em que a obra machadiana floresceu.
Há críticos que acusam Machado de não ter tido uma atitude abertamente contrária àquele estatuto iníquo, e se surpreendem por ele (que era mestiço de negro e branco) não ter sido um abolicionista militante. A opinião destes críticos comete aquilo a que, em escritos históricos, se dá o nome de anacronismo. É uma forma de não compreender a atitude do escritor em seu próprio tempo e pretender que tivesse a vontade de outro tempo, a vontade de hoje. Essa atitude impede a compreensão completa e radical da obra do escritor ao não permitir entendê-la no quadro das contradições de sua época.
As referências à escravidão na obra de Machado de Assis são muito claras e fortes, e denotam a condenação, pelo autor, daquele regime e dos péssimos e injustos costumes sociais que decorrem dele.
É comum, quando se fala do tema escravidão na obra de Machado de Assis, lembrar-se do conto “Pai contra mãe” (1906), que traz a história de um caçador de escravos fugidos que, para ter dinheiro e poder cuidar de seu filho recém-nascido, captura uma escrava fugida e a devolve ao senhor, ocasião em que ela – que estava grávida – aborta. O tema é pungente, mas o conto vai além dessa narrativa dolorosa. Sua primeira parte traz uma descrição minuciosa, quase jornalística, dos “ofícios e aparelhos” que existam no tempo da escravidão. Machado de Assis escreveu: “Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres”, contra o vício da embriaguez. Máscara que é descrita em detalhes: “Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado”. “Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas”. Descreve também como o “ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.”
Contra os escravos fujões havia o ofício de pegar escravos fugidos, emprego de Cândido Neves, o pai a que o título deste conto se refere.
Sobre as fugas, Machado registra: “Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo [o mercado de escravos no Rio de Janeiro – nota da redação], deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos [uma forma de referir-se aos escravos nascidos no Brasil], pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando”.
As referências agudas à escravidão são inúmeras na obra machadiana. Em certa altura, no romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), por exemplo, Machado descreve uma conversa entre dois personagens, numa recepção festiva, sobre a breve chegada de um navio negreiro, vindo de Angola, com um carregamento de escravos. Refletindo os hábitos de então, deixa claro que era “normal” em rodas sociais as pessoas conversarem sobre o sequestro e o tráfico de seres humanos, e os lucros alcançados com este comércio nefando. Um dos personagens dava ao outro notícia da breve chegada de um carregamento de negros novos, repetindo o que diziam “cartas que recebera de Luanda”; elas garantiam que “podíamos contar, só nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos”.
Outras passagens ilustram a reação senhorial às medidas legais contra a escravidão. Em “Quincas Borba” (1891), ambientado na década de 1870, há o comentário do rico negociante Cristiano de Almeida e Palha condenando o governo pela fala do trono, vista por ele como “uma palavra relativa à propriedade servil”, que podia perturbar os negócios, mesmo que mandasse “respeitar a propriedade atual”.
Nessa mesma obra, Machado se refere à “discussão da lei dos ingênuos” – a Lei do Ventre Livre, de 1871. O comentário é atribuído a Camacho, um deputado e jornalista, para quem “a lei dos ingênuos absolvia a esterilidade e os crimes da situação”. Como muitos senhores pensavam na ocasião, a Lei do Ventre Livre eliminava o “problema” da escravidão pois a partir de então não nasciam mais escravos no Brasil, sendo uma solução adequada aos interesses da classe dominante, escravista, pois não tocava na sacrossanta propriedade privada representada pelos escravos.
A defesa da propriedade privada aparece com clareza na posição do Barão de Santa Pia, em “Memorial de Aires” (1908), onde Machado descreve a reação senhorial à iminência da abolição. Santa Pia era um grande senhor de terras no Vale do Paraíba, produtor de café e dono de muitos escravos. Ele escreveu ao irmão, o desembargador Campos, sobre um boato da proximidade da lei de abolição. Em 20 de março, quase dois meses antes da lei de abolição, o Barão pensou em dar alforria coletiva a seus escravos. O irmão quis saber o que o levava a isso, pois “condenava a ideia atribuída ao governo de decretar a abolição”. A resposta do Barão foi um primor da arrogância senhorial e da clara condenação da intervenção do Estado na propriedade privada: “Quero deixar provado que julgo o ato do governo uma espoliação, por intervir no exercício de um direito que só pertence ao proprietário, e do qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso”. Uma independência ante o Estado típica dos atuais neoliberais, e que podia leva à oposição ao Imperador: Santa Pia referiu-se também à reorganização do trabalho que resultaria da abolição, que chamou de “desmantelo que [o governo] vai lançar às fazendas”. E, como comentou o desembargador Campos, seria capaz de convocar outros senhores de terras e escravos a alforriar os escravos já, “e no dia seguinte propor a queda do governo que tentar fazê-lo por lei”. E havia também uma “esperteza” senhorial que a alforria coletiva podia representar. Sobre ela Santa Pia disse: “Estou certo que poucos deles deixarão a fazenda; a maior parte ficará comigo, ganhando o salário que lhes vou marcar, e alguns até sem nada, pelo gosto de morrer onde nasceram”.
A lei de 13 de maio de 1888, que aboliu a escravidão, é tratada sobretudo no romance “Memorial de Aires” (1908), onde os comentários do antigo embaixador, Aires, podem ser lidos como se fossem as opiniões do próprio Machado de Assis. Aires registrou, em seu diário: a “dizem que, abertas as câmaras, aparecerá um projeto de lei. Venha, que é tempo. Ainda me lembra do que lia lá fora, a nosso respeito, por ocasião da famosa proclamação de Lincoln: ‘Eu, Abraão Lincoln, Presidente dos Estados Unidos da América…’ Mais de um jornal fez alusão nominal ao Brasil, dizendo que restava agora que um povo cristão e último imitasse aquele e acabasse também com os seus escravos. Espero que hoje nos louvem. Ainda que tardiamente, é a liberdade, como queriam a sua os conjurados de Tiradentes”. No dia 7 de maio, outro registro diz: “O ministério apresentou hoje à Câmara o projeto de abolição. É a abolição pura e simples. Dizem que em poucos dias será lei”. E, em 13 de maio: “Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do Senado e da sanção da Regente.” E comentou também a reação popular: “Estava na Rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral”, com desfile de muitas carruagens, que “faziam grandes aclamações, em frente ao paço, onde estavam também todos os ministros. Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da História, ou até da Poesia”.
O registro de Machado de Assis se refere, com certeza, ao ato de Rui Barbosa que, quando ministro da Fazenda, em 14 de dezembro de 1890, teria mandado queimar os documentos sobre a escravidão que existiam no ministério , para evitar pedidos de indenização pelos antigos senhores de escravos. Pode ser – e Machado de Assis tem razão: a queima de leis, decretos e avisos não apaga a mancha histórica da escravidão.
Há também, no “Memorial de Aires”, uma sugestão sobre o destino dos ex-escravos. Quando o Barão de Santa Pia morreu, sua filha Fidélia herdou a fazenda com os Iibertos, lá ficaram. E a solução que ela deu à propriedade foi a que teria sido preferida de Machado de Assis: Fidélia deixou a fazenda aos libertos. “Eles que a trabalhem para si”. E Aires registrou: “Aplaudi a mudança do plano, e aliás o novo me parece bem. Se eles [Fidélia e o marido, Tristão] não precisam do valor da fazenda, melhor é dá-la aos libertos.”
Há também, em “Esau e Jacó” (1904), a sugestão de que o fim da escravidão poderia ser o prenúncio de outra revolução, mais larga. Os protagonistas, os gêmeos Pedro e Paulo, avaliaram a abolição de maneira diferente. Para o monarquista Pedro era um ato de justiça; para o republicano Paulo, mais radical, seria o anúncio de outra revolução, como disse num discurso feito na Faculdade de Direito, em São Paulo, em 20 de maio: “A abolição é a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco”.
Machado de Assis não foi certamente um revolucionário social, embora tivesse revolucionado as letras no Brasil. Mas, escritor sensível, percebeu as graves contradições de seu tempo, e as registrou de maneira magistral em sua obra.
José Carlos Ruy é escritor, jornalista e tradutor.