A História do Brasil é cheia de fatos jurídicos e políticos, mas que na vida prática não se efetivam. É, por exemplo, ainda no II Reinado que a publicação da Lei dos Sexagenários e a Lei do Ventre Livre de fato torna pouquíssimos escravizados livres. Aliás, nem mesmo a Lei Áurea, de 1888, livrou o Brasil efetivamente da escravidão. Fatos recentes como o assassinato de João Alberto por seguranças do supermercado Carrefour em Porto Alegre revelam o que todos já sabem: vidas negras ainda são coisificadas. Não obstante, o país ainda convive com a chaga da escravização como forma de trabalho. “A desigualdade, a discriminação, o racismo estão no cerne da escravidão. Assim, torna-se fundamental entender como a desigualdade corta o tecido social, dividindo as populações em superiores (humanas) e inferiores (subumanas)”, aponta a socióloga Giselle Vianna.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ela apresenta sua pesquisa realizada no estado de Mato Grosso, mas com relação muito estreita com outras regiões do país. “Podemos dizer que a nova morfologia do trabalho escravo contemporâneo descrita é uma tendência nacional, apresentando, logicamente, particularidades e exceções em cada territorialidade”, acrescenta. Assim, traz o relato de situações dramáticas em que pessoas são postas em jornadas exaustivas, sem água, banheiro adequado e numa vida quase de cárcere, sem receber o mísero salário. “Em uma madeireira inspecionada em 2005, o GEFM relatou que somente os funcionários ligados à exportação e à compra de madeira tinham seus salários pagos. Há relatos de discriminação contra maranhenses, mulheres, trabalhadores com baixa escolaridade, catadores de raízes, trabalhadores rurais que construíam cercas e derrubavam a mata etc.”, exemplifica.
Para Giselle, a desigualdade é mesmo uma palavra central para entendermos esse Brasil que mantém gente cativa em trabalhos forçados. “O retrato contemporâneo do trabalho escravo no Brasil escancara as profundas desigualdades e o racismo estrutural de nosso país”, reitera. E não pense que a pesquisadora colhe esses relatos apenas em fazendas nos rincões. A Lista Negra do Trabalho Escravo revela que tais condições estão na construção civil, em indústrias têxteis, entre outros setores.
Giselle ainda traz a leitura dessa escravidão de nosso tempo como uma escravização de cunho capitalista, diferente do praticado no Brasil Colônia e mesmo no Império. “O grande desafio é garantir não apenas a liberdade formal capitalista, mas sim a liberdade plena, substantiva, a todos os cidadãos. Ou seja, garantir não só a liberdade de ir e vir e de contratar, mas também direitos fundamentais e dignidade a todos, para que possam tomar decisões verdadeiramente livres, sem o constrangimento da luta por sobrevivência”, aponta.
Giselle Vianna é doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, autora da tese “Ser e Não Ser Livre: a morfologia do trabalho escravo contemporâneo em Mato Grosso”. Também possui mestrado em Sociologia pela Unicamp e graduação em Direito pela Universidade de São Paulo – USP. Entre suas publicações, destacamos “Coerção e liberdade formal na escravidão contemporânea: conceitos em disputa” (In: Celso Naoto Kashiura Jr.; Oswaldo Akamine Jr.; Tarso de Melo. (Org.). Para a Crítica do Direito: reflexões sobre teorias e práticas jurídicas. São Paulo: Outras Expressões, 2015).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como se caracteriza o trabalho escravo contemporâneo no Brasil, especialmente em Mato Grosso?
Giselle Vianna – Minha pesquisa sobre a morfologia do trabalho escravo contemporâneo em Mato Grosso compreendeu o período entre 1995 e 2013 e teve como principal fonte documental a totalidade dos Relatórios de Fiscalização do Trabalho do Grupo Especial de Fiscalização Móvel – GEFM que constataram casos de escravidão naquele estado. A partir destas informações, construí uma base de dados que foi utilizada de forma integrativa com entrevistas, experiência de campo e documentos de outras fontes.
Começando pelos dados dos relatórios, o estudo demonstrou que, em Mato Grosso, a escravidão contemporânea se caracteriza por formas de recrutamento contratuais (97% dos casos analisados), relações de emprego informais (que atingiam a totalidade dos trabalhadores escravizados em 75,56% dos casos) e contratadas indiretamente, seja através de terceirização ou outras formas de subcontratação e intermediação (67% dos casos). No que diz respeito às modalidades de trabalho escravo previstas no art. 149 do Código Penal, destacou-se a presença constante das condições degradantes de trabalho ao longo de todo o período analisado (98,89% dos casos).
Verificou-se, ainda, que as condições degradantes têm sido caracterizadas não por meras violações sanáveis de normas de segurança e saúde do trabalho, mas sim por condições extremas de trabalho e vida: a ausência absoluta de água potável (86,67% dos casos), instalações sanitárias (81,11%) e instalações para refeições (93%) e alojamentos que ofereçam proteção contra intempéries (89,44%). Quanto às demais modalidades previstas no tipo criminal, verificou-se a ocorrência de jornadas exaustivas em 28,33% dos casos; trabalhos forçados em 33,89% e restrição da locomoção dos trabalhadores através de dívida em 35% do total de casos analisados.
Uma violência em transformação
Além disso, os resultados mostram uma queda muito significativa da vigilância armada e das práticas de violência física direta contra os trabalhadores a partir da primeira década do século XXI, notadamente a partir dos anos 2007-2009. Essa tendência foi confirmada por outra fonte, os dados da Comissão Pastoral da Terra, que indicam, no mesmo período, o declínio do número de assassinatos, tentativas de assassinato e ameaças de morte a trabalhadores rurais (que se tornaram abundantes), contrastando com o aumento da violência no campo relacionada à posse da terra (que se tornou cada vez mais escassa).
Por outro lado, a pesquisa qualitativa na mesma documentação, aliada aos dados da Saúde Pública e às narrativas das mais de 45 pessoas entrevistadas, revelou que a violência contra os trabalhadores não teria desaparecido, mas sofrido profundas transformações, acompanhando padrões retratados pela Sociologia do Trabalho nos estudos sobre a reestruturação produtiva e a acumulação flexível. A análise documental e as entrevistas com trabalhadores, ativistas e autoridades públicas que atuam no enfrentamento do trabalho escravo revelaram novas práticas de controle e exploração dos trabalhadores, como as ameaças de demissão, as pressões por atingimento de metas inalcançáveis, o assédio moral como ferramenta de gestão.
Evidenciaram, ainda, a intensificação das atividades laborais e extensão das jornadas induzidas por mecanismos remuneratórios e exigências de produtividade, além de novas formas de manipulação do consentimento dos trabalhadores à exploração cada vez mais elevada, num contexto de desemprego e precarização. E, por fim, a presença marcante de situações de adoecimento, sofrimento e mortes, que colocam a integridade física, a saúde e a vida no centro da discussão sobre o trabalho escravo contemporâneo.
O trabalho que adoece
Pesquisas recentes na área da Saúde Coletiva indicam que a economia de Mato Grosso tem gerado significativo crescimento dos agravos à saúde dos trabalhadores. Os estudos de Pignati e Machado (2011) [1] mostraram que, entre 1998 e 2005, o estado assistiu a um aumento da incidência de intoxicações agudas por agrotóxico agrícola, acidentes de trabalho, acidentes com animais peçonhentos, neoplasias e malformações congênitas. Os agravos à saúde dos trabalhadores, segundo os pesquisadores, apresentam uma correlação positiva significante com os indicadores de produção (esforços produtivos agropecuários e demanda de agrotóxicos) no interior mato-grossense.
Além disso, os caminhos da pesquisa mostraram outra realidade que também reflete a situação do país: as formas de escravidão contra as mulheres e população LGBTQIA+, que permanecem ainda praticamente invisíveis.
De modo geral, esse estudo acompanhou os processos de transformação ao longo das últimas décadas, quando as práticas de escravização foram progressivamente abandonando tecnologias de violência física direta e imobilização da força de trabalho, passando a caracterizar-se por novas tecnologias fundadas na mobilidade dos trabalhadores e em coerções sistêmicas, em violências muito menos visíveis. Com a ressalva de que a base de dados de Mato Grosso é eminentemente sobre trabalho rural, podemos dizer que a nova morfologia do trabalho escravo contemporâneo descrita é uma tendência nacional, apresentando, logicamente, particularidades e exceções em cada territorialidade.
IHU On-Line – De que maneira podemos compreender a “modernização conservadora” brasileira e como se deu o processo de transição em direção à consolidação do agronegócio?
Giselle Vianna – A “modernização conservadora” ou “modernização sem modernidade” da agricultura brasileira designa o processo de transformações nas formas de produção agrícola que inseriu o Brasil na ordem mundial globalizada e marcou a industrialização da agricultura nacional. Este processo é caracterizado pelo incremento das forças produtivas e, simultaneamente, pela manutenção ou renovação (e, muitas vezes, pela intensificação) de velhas estruturas de exclusão social, como a concentração de terras e recursos, a desapropriação camponesa, a escravidão, a miséria e a ausência de cidadania.
No artigo “Sociedade e Economia do ‘Agronegócio’ no Brasil” [2], os autores trazem essa discussão sobre a passagem da “agricultura moderna” à “sociedade do agronegócio”, apontando que foi na década de 1970, com a política de “modernização da agricultura” do regime militar, que se passou a falar com mais ênfase numa “agricultura moderna” brasileira e em “empresas rurais” capitalistas, opostas a práticas de agricultura tradicional, apesar da discussão sobre a modernidade e a agricultura ser mais antiga.
Quando observamos o caso do Mato Grosso, fica bem evidente o teor do projeto de modernização conservadora de que estamos falando. O estado de Mato Grosso, que era uma das regiões menos povoadas do país, passou a ter um grande impulso demográfico a partir de 1930 e, sobretudo, a partir da intensificação do incentivo governamental à colonização privada do estado na década de 1960. O objetivo dessas políticas teria sido o de transferir a população expropriada para servir de força de trabalho para grandes empresas agropecuárias e agrominerais naquela região pouco povoada. E o avanço dessa nova fronteira do capital foi um processo muito violento, que desconsiderou totalmente os habitantes e as culturas daquele território. Tanto é assim que as próprias políticas eram conhecidas como “terras sem homens para homens sem terra”.
“Terra sem lei”
Essa foi a época caracterizada por um tipo de trabalho escravo já muito descrito em diversos estudos, que compreendia o aliciamento de um grande número de trabalhadores em regiões pobres, principalmente do Nordeste do país, para trabalharem na derrubada de mata, corte de cana e outras atividades, muitas vezes em total isolamento geográfico, coagidos por dívidas fictícias e pela vigilância armada a permanecerem trabalhando, havendo assassinatos e castigos corporais em caso de fuga. Era um momento em que Mato Grosso apresentava escassez de mão de obra especializada e era considerada uma “terra sem lei”, em que a polícia e o aparato público estavam significativamente a serviço do interesse particular dos grandes proprietários.
Apesar da fluidez dessas distinções, o chamado “agronegócio”, que se desenvolve num momento posterior, apresenta como características apontadas por diversos pesquisadores: a vocação mais marcadamente exportadora, a prevalência do aspecto industrial sobre o agrícola, a sua composição com capitais de diferentes origens (além do “capital agrário”), a desnacionalização do setor agroindustrial (entre 1995 e 2005, a participação internacional no setor agroindustrial e de esmagamento de grãos passa de 16% para 57%, segundo Heredia et al. [3]), a concentração econômica e a combinação de elementos de mecanização com a intensificação do uso de insumos químicos e de engenharia genética, com a adoção de um modelo químico-dependente (entre 1991 e 2000, houve um aumento de quase 400% no consumo de agrotóxicos, frente a um aumento de 7,5% na área plantada, segundo Miranda et al, 2007 [4]).
No território mato-grossense, a consolidação da economia agropecuária moderna – com a produção de mercadorias substituindo a “produção de fazendas” –, que culmina no agronegócio, bem como a efetivação da presença do Estado na região ocorrem simultaneamente a um processo mais amplo de reestruturação produtiva, que trouxe repercussões para toda a classe-que-vive-do-trabalho e acrescentou novas nuances também à morfologia do trabalho escravo.
Permanência da escravidão
É neste cenário complexo que as formas de escravizar transfiguram-se: há práticas que persistem quase inalteradas (a exemplo das condições degradantes de alojamento e da água consumida pelos trabalhadores); outras que sofrem declínio (castigos corporais e assassinatos de trabalhadores por pistoleiros e capatazes); e, por fim, também a emergência de novas formas de controle e violência (as ameaças de demissão, o aumento vertiginoso de doenças ocupacionais, a ressignificação do assédio moral como estratégia de gestão, o rebaixamento dos salários e o gerenciamento através de metas, o aumento da mais-valia relativa e absoluta, com a intensificação das atividades laborais e o prolongamento das jornadas e os danos causados por agrotóxico).
Muitos dos efeitos da reestruturação produtiva apontados por estudos sociológicos de Ricardo Antunes também foram constatados em nossa pesquisa empírica. O mais importante de traçarmos esse breve panorama é podermos constatar que a permanência da escravidão no Brasil de hoje não se deve a arcaísmos de certos setores ou a resquícios pré-capitalistas que serão automaticamente extintos com desenvolvimento econômico. Assim, da mesma forma como a proliferação do trabalho escravo no bojo da modernização da agricultura brasileira mostrou que a escravidão não era questão de “atraso” ou “arcaísmo”, a perpetuação do trabalho escravo contemporâneo em Mato Grosso após o período de acumulação de capital da indústria agrícola nascente, em plena consolidação daquele estado como potência do agronegócio, atesta definitivamente que o trabalho escravo integra a reprodução do capital. E não só a escravidão integra o sistema capitalista, como passa a assumir formas cada vez mais características da exploração do trabalho no mercado formalmente livre.
IHU On-Line – O que permanece, do ponto de vista das práticas escravistas coloniais, tanto no período da modernização conservadora quanto agora, no agronegócio?
Giselle Vianna – Comparar práticas escravistas de diferentes momentos históricos e contextos de forma tão breve é sempre delicado. Ainda assim, o que podemos dizer é que, em linhas gerais, o que permanece é o tratamento da pessoa escravizada como “coisa”. Isto é, o tratamento degradante e discriminatório de certas populações, com o objetivo de explorá-las. Na escravidão implementada pela colonização europeia, tratava-se de uma discriminação legalizada; já hoje, temos a discriminação de fato e não de direito.
A condição dos trabalhadores da contemporaneidade, que, ainda quando tratados como coisa, são considerados pelo ordenamento jurídico como sujeitos de direito, traz, a um só tempo, avanços e perversidades. Afinal, enquanto antigamente a morte ou doença de escravos significava perda de capital para seus proprietários, as condições degradantes impostas aos escravos contemporâneos não encontram limites: em caso de doença ou morte, são facilmente descartados e substituídos, principalmente com o advento do desemprego estrutural.
Em seu livro A Abolição, Emília Viotti da Costa [5] mostra que, em meados do século XIX, quando a escravidão perdurava a despeito da proibição do tráfico e os preços dos escravos subiam, muitos proprietários usavam a mão de obra dos trabalhadores nacionais livres (que viviam na periferia dos latifúndios, em pequenas propriedades, dedicando-se à economia de subsistência) para tarefas como a derrubada de mata, que, por oferecerem risco de vida, eram consideradas inadequadas aos escravos. Já na história recente de Mato Grosso, verificamos que a derrubada de mata está entre as principais atividades que empregam trabalho escravo no estado nas últimas décadas, o que mostra justamente essa faceta devastadora da escravidão contemporânea, que atenta contra a própria vida das vítimas.
Vidas importam
Seja pela exaustão causada pelo trabalho e pela ausência de condições para reposição de sua energia, seja pelas doenças e acidentes de trabalho, seja pelos graves sofrimentos psicológicos ocasionados neste ambiente, é a vida que está em jogo no trabalho escravo contemporâneo. É por isso que, no contexto atual, em que se tem discutido nosso modelo de produção e a devastação ambiental, é preciso também debater a devastação de vidas humanas, pois toda vida importa e é insubstituível.
Muitas pessoas apoiam-se na semelhança entre a escravidão de hoje e a escravidão colonial para fortalecer o repúdio às práticas escravagistas atuais. E, realmente, esse é um discurso muito importante, até mesmo para mostrar que a escravidão contemporânea existe e sempre existiu em nossa história.
Por outro lado, é também importante estudar as especificidades das formas contemporâneas de escravizar, para que possamos ter uma compreensão do fenômeno que nos permita de fato enfrentá-lo. A coisificação dos trabalhadores de hoje não é a mesma que os escravos sofriam antes de 1888, pois estes tinham quase sempre status jurídico de coisa e, inclusive, em torno desta questão muita luta foi travada, inclusive através de processos judiciais.
Assim, a especificidade e produtividade da forma contemporânea de escravizar é justamente o fato de os trabalhadores escravizados, como toda a classe-que-vive-do-trabalho, serem simultaneamente objetos (força de trabalho) e sujeitos (indivíduos com capacidade jurídica de vender sua força de trabalho, de contratar). Daí a importância de estudarmos a categoria sujeito de direito. Afinal, se antes os escravos, considerados “coisas” (objetos), eram capturados em sua corporalidade e vendidos por outrem (sujeito), o típico escravo do capitalismo contemporâneo, considerado objeto e sujeito de direito, é capturado em sua subjetividade, em seu consentimento (através de promessas enganosas e de sua falta de alternativa, de inúmeros constrangimentos, medos e esperanças), colocando-se ele mesmo à venda, sujeito que é.
Neste sentido, os discursos conservadores que pregam que escravidão contemporânea é “obrigar alguém a estar onde não quer” são completamente descabidos. Nos dias de hoje, a exploração se dá muito mais pela manipulação do que pela negação do “querer” dos trabalhadores.
IHU On-Line – Quais são as diferenças entre trabalho escravo e trabalho livre no Brasil? Em quais atividades essa fronteira entre uma e outra coisa é mais fluida?
Giselle Vianna – Num extremo temos as formas de exploração do trabalho consideradas indiscutivelmente como escravidão nas sociedades capitalistas (trabalho ao qual se é constrangido contra a vontade, mediante coação direta e cerceamento da liberdade de locomoção) e, do outro lado, temos as formas de exploração do trabalho socialmente aceitas pelo capitalismo (em que a extração da mais-valia é realizada dentro de certos limites e com a garantia de direitos mínimos estabelecidos por lutas históricas). O terreno entre essas duas realidades, atravessado por grandes disputas políticas de sentido e de institucionalização, é precisamente o das formas de exploração do trabalho que se constituem como escravização (por instrumentalizarem o ser humano, atentando contra sua liberdade, integridade física e/ou dignidade) apesar de se utilizarem de práticas típicas do mercado de trabalho livre, como a liberdade de locomoção, o consentimento, o contrato.
E, nestes casos, não se trata nem de fluidez nem de imprecisão, pois são hipóteses de trabalho escravo previstas em lei e fenômenos conhecidos há décadas. O que há são incompreensões e distorções sobre a própria morfologia do trabalho e da exploração em nossos tempos, que acabam sendo utilizadas em favor dos setores escravagistas.
Kevin Bales (2004) [6] já apontou que o “trabalho escravo por contrato” é a modalidade de escravidão que mais cresce em todo o globo. Além disso, longos debates já demonstraram que o trabalho escravo contemporâneo é um fenômeno inscrito no modo de produção capitalista. Porém, pouco ainda se fez no sentido de articular essas duas análises para que se possa discutir a especificidade capitalista da forma contratual e suas implicações para a compreensão do fenômeno do trabalho escravo contemporâneo.
IHU On-Line – Como “novas” práticas de recrutamento dos trabalhadores se transformaram em dispositivos importantes nesse processo de atrair mão de obra a ser escravizada?
Giselle Vianna – Na lógica do trabalho escravo disciplinado do capitalismo consolidado, o aliciamento ou a livre contratação substituem a captura e o sequestro na entrada para o trabalho escravo. Em nossa base de dados, 97% dos casos de trabalho escravo constatado pelo GEFM em Mato Grosso entre 1995 e 2013 apresentaram “recrutamento não forçado” (através de contratos com certo grau de consentimento e variados graus de promessas enganosas) e não houve casos de sequestros, vendas de seres humanos ou de captura através de agressões físicas. Portanto, até mesmo alguns casos mais antigos, que se desenvolveram em situações de violência direta sofrida pelos trabalhadores, foram caracterizados pela forma não violenta de “entrada no trabalho”.
Já as formas de “permanência” e “saída do trabalho”, estas sim, apresentavam elementos de coerção e violência física e direta até a década de 1990. Porém, vão assumindo dinâmicas novas nos anos recentes.
Em termos esquemáticos, verificamos:
1) “Entrada” (recrutamento da força de trabalho): em todo o período analisado (1995-2013), caracterizou-se por formas contratuais (ainda que fraudulentas) e sem emprego de violência física, tendendo a tornar-se cada vez mais consensual (nos anos mais recentes, nem todos os trabalhadores são aliciados em estados longínquos: muitos se deslocam por conta própria para procurar trabalho em redes já conhecidas).
2) “Permanência” (duração da relação de trabalho propriamente dita): até o início do século XXI, o controle sobre a força de trabalho para mantê-la sob exploração era garantido por uma combinação de mecanismos remuneratórios (endividamento, retenção de salários, formas de remuneração) e uso da força (vigilância armada, ameaças de morte, assassinatos e punições físicas a quem fugisse). Já na última década, passou a ser realizado através do fortalecimento de instrumentos de gestão, imposição de metas, ameaças de descontos salariais, ameaças de demissão e formas de remuneração que manipulam o consentimento dos trabalhadores por mais exploração.
3) “Saída” (rompimento do vínculo): até o início dos anos 2000, caracterizou-se pela fuga (que podia ser punida com a morte), sendo substituída recentemente por uma nova lógica presente na narrativa de quase todos os trabalhadores entrevistados durante a pesquisa: o “não aguentar”. A ameaça de morte é substituída pela ameaça de demissão. A luta do trabalhador por sobrevivência já não é fugir dos pistoleiros da fazenda, mas sim permanecer no trabalho, suportando quaisquer condições, para poder manter seu sustento e o de sua família. Sobrevêm estratégias de gestão que convidam os trabalhadores a irem embora caso não aceitem as condições indignas de trabalho, afinal, “são facilmente substituíveis”.
Essas transformações acompanham a transição de formas de domínio direto típicas da frente pioneira (imobilização dos trabalhadores através do uso da força) por uma dominação típica do capitalismo consolidado (mobilização do interesse do trabalhador através do abuso de sua vulnerabilidade).
IHU On-Line – De que maneira o retrato contemporâneo do trabalho escravo no Brasil reflete também a profunda desigualdade do país? Quais as consequências sociais dessa característica?
Giselle Vianna – O retrato contemporâneo do trabalho escravo no Brasil escancara as profundas desigualdades e o racismo estrutural de nosso país. A primeira coisa que deve ser dita é que as condições de trabalho “análogas à escravidão” não são impostas homogeneamente a toda a classe-que-vive-do-trabalho, mas distribuídas diferencialmente em função de fatores de discriminação e reconhecimento social.
Da mesma forma, quando os auditores fiscais do trabalho constatam trabalho escravo num estabelecimento, geralmente o que se verifica não é a totalidade dos trabalhadores submetidos à situação de escravidão, mas sim diferentes grupos de trabalhadores recebendo tratamentos absolutamente díspares. Esse dado é muito importante e pude comprová-lo ao realizar a análise qualitativa e quantitativa nos relatórios de inspeção dos casos de trabalho escravo flagrados em Mato Grosso, desde 1995.
Em inúmeros relatórios analisados, a fiscalização constatou que havia tratamento desigual entre os trabalhadores. Em grande parte dos casos, foi encontrado um grupo de trabalhadores que ficava em alojamento, com água potável, banheiro e recebendo salário em dia; enquanto outro grupo ficava “acampado” no mato em barracos improvisados que não os protegiam contra animais e intempéries, sem água, sem instalações sanitárias e muitas vezes sem remuneração ou até endividados.
Em um dos relatórios, a fiscalização aponta que “os trabalhadores braçais eram tratados como pessoas inferiores”, recebendo condições de trabalho e moradia precárias. Em uma madeireira inspecionada em 2005, o GEFM relatou que somente os funcionários ligados à exportação e à compra de madeira tinham seus salários pagos. Há relatos de discriminação contra maranhenses, mulheres, trabalhadores com baixa escolaridade, catadores de raízes, trabalhadores rurais que construíam cercas e derrubavam a mata etc.
Em outra ação fiscal, verificou-se discriminação entre os trabalhadores fixos, que podiam usar o banheiro de alvenaria, e os do roço, que eram proibidos de usá-lo. Há casos em que as mulheres escravizadas não recebiam água e nem salário porque eram consideradas “apenas ajudantes” de seus maridos, que realizavam o mesmo trabalho que elas, mas eram os únicos a receberem pagamento e condições laborais e água para consumo. É uma lista que não tem fim.
Comprovação de dois tipos de trabalhadores
Um relatório que me chamou muito a atenção foi o de 1996, por ter abordado a temática da discriminação com uma clareza cortante. Esse relatório continha, como anexo, um checklist utilizado durante a inspeção da fazenda, em que apareciam vários itens (por exemplo, “presença de água potável”, “existência e alojamento”) com marcação dúplice: “sim” e “não”. Em sua conclusão, a equipe de auditores fiscais do trabalho escreveu que ali, “como nas demais empresas rurais, há dois tipos de trabalhadores”: aqueles que recebem melhores condições de trabalho e aqueles cujo tratamento é da pior qualidade, em flagrante descumprimento das normas de saúde e segurança e dos preceitos legais que regem as relações de trabalho.
Situação de mulheres e população LGBTQIA+ é dramática
A situação das mulheres e da população LGBTQIA+ é ainda mais drástica, tamanha a discriminação e invisibilidade sofridas. São pessoas que mal aparecem nas estatísticas divulgadas sobre o trabalho escravo, pois muitas vezes não são alcançadas pelas próprias políticas públicas. Na época em que trabalhei na coordenação de fiscalização de trabalho escravo em Mato Grosso, chamou minha atenção a baixa representatividade das mulheres nas estatísticas sobre as vítimas de escravização. Tanto os números do estado de Mato Grosso quanto os nacionais apresentavam o mesmo cenário de predomínio masculino. As mulheres representam aproximadamente 5% das pessoas resgatadas de trabalho considerado “análogo a escravo” nos dados oficiais.
Entretanto, os números divulgados pela OIT em 2012 (ILO Global Estimate of Forced Labour, 2012) apresentam outra realidade. Segundo o estudo, 55% das vítimas de trabalho escravo no mundo são mulheres, isto é, 11,4 milhões em contraposição a 9,5 milhões de homens escravizados. Interessante notar que, segundo o mesmo estudo, a escravização atinge primordialmente as mulheres no campo da exploração sexual, em que elas representam 98% das vítimas, sendo que 74% das pessoas escravizadas para fins sexuais são de país estrangeiro. Já na exploração laboral na economia privada, 40% das vítimas seriam mulheres e 60%, homens. As estimativas publicadas pela OIT em 2016 apontam uma participação ainda maior das mulheres, que representariam 71% do total estimado de vítimas de escravidão no mundo.
Nos anos mais recentes têm sido trilhados pequenos avanços no Brasil, buscando-se o enfrentamento da escravidão presente no trabalho doméstico e na exploração sexual, mas ainda há muito a ser feito. Uma delas é a produção de uma base de dados unificada que incorpore todos os casos de trabalho escravo comprovados, inclusive os ocorridos no contexto do trabalho doméstico e do tráfico de pessoas. Em minha pesquisa, pude constatar nos dados da Secretaria de Segurança Pública e do Tribunal de Justiça (compilados num dossiê pelo Comitê Estadual de Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de Mato Grosso – CETRAP/MT) que em Mato Grosso, entre 2012 e 2018, 92% das pessoas traficadas eram mulheres. E, na maior parte dos casos, o tráfico se realizou para a escravização.
População negra
No tocante à população negra, há dados que ilustram com mais precisão a discriminação e o racismo que alimentam a escravidão. Os dados do Observatório Digital de Trabalho Escravo no Brasil mostram que, enquanto os “brancos” formavam 37,47% da população de Mato Grosso em 2014 (e 47,73% da população nacional), a representatividade da população branca entre as vítimas de trabalho escravo é consideravelmente mais baixa. Das pessoas naturais de Mato Grosso que foram vítimas de trabalho escravo entre 2003 e 2016, aproximadamente 20,9% era branca. Para os residentes em Mato Grosso que figuraram entre as vítimas das mesmas práticas, o percentual não se altera muito: foi de aproximadamente 21,9% no mesmo período.
Esse tema é complexo e extenso, mas considero que o ponto fundamental é entendermos que a desigualdade, a discriminação, o racismo estão no cerne da escravidão. Assim, torna-se fundamental entender como a desigualdade corta o tecido social, dividindo as populações em superiores (humanas) e inferiores (subumanas). É essa divisão que fundamenta a degradação e a exaustão de vidas consideradas menos humanas, menos dignas e, portanto, descartáveis.
Não ao racismo e a todas discriminações
É por isso que não podemos subestimar a gravidade de afirmações de que “índio não é gente”, “quilombola é inútil e tem que ser pesado em arrobas”, “pessoas gays são produto de famílias desajustadas e do consumo de drogas” e “ devem ser agredidas nas ruas”, “mulheres violentadas são culpadas e não vítimas”, ter uma filha mulher é “dar uma fraquejada” e de que não existe racismo, machismo nem homofobia no Brasil. Além de muitas vezes se tratar de afirmações criminosas, os discursos que têm emergido com tanta força nos anos recentes evidenciam que nosso desafio é muito maior do que imaginávamos.
Estamos vivendo um momento histórico muito sensível, em que não só a desigualdade, mas um certo juízo discriminatório legitimador de nossas desigualdades e da própria escravidão foi jogado em nossas caras enquanto realidade atual. Por isso vejo que hoje o desafio é não só continuarmos lutando por mais igualdade efetiva, mas também trabalharmos pela conscientização de que todos os seres humanos são iguais em direitos e dignidade. Isto é, lutarmos também para defender a equidade e a democracia como princípios inegociáveis. E essa tarefa só poderá ser feita saldando-se a dívida que temos como sociedade para com as populações discriminadas e exterminadas historicamente em nosso país.
IHU On-Line – Qual tem sido o papel do Judiciário no que toca à questão do trabalho escravo no Brasil? Qual tem sido o papel de juízes e promotores nesta questão?
Giselle Vianna – O Poder Judiciário e o Ministério Público desempenham papéis fundamentais no enfrentamento do trabalho escravo contemporâneo. É o esforço de cada um dos atores governamentais e da sociedade civil e a união de tais esforços em ações conjuntas que têm possibilitado avanços nesse campo. Daí a importância de entes como a CONATRAE [7], as COETRAE [Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo] ou GAETE [Grupo de Articulação para a Erradicação do Trabalho Escravo] e projetos como o Ação Integrada e o RAICE [Rede de Ação Integrada de Combate à Escravidão]. Ainda assim, a luta contra e a favor da escravidão atravessa cada uma dessas instituições. E o poder Judiciário é, sem dúvida, uma seara de disputas acirradas.
Por um lado, há juízes que desenvolvem trabalhos pioneiros no combate ao trabalho escravo, como a Vara Itinerante do TRT da 8ª região. Por outro, há juízes com visões extremamente conservadoras e limitadas, que entravam o processo de apuração e responsabilização nestes crimes. Um juiz que entrevistei em minha pesquisa de campo me mostrou que a “naturalização do trabalho escravo” é uma das principais teses jurisprudenciais utilizadas para descaracterizar as situações de escravidão encontradas em conflitos que têm desterritorializado populações tradicionais com o avanço do agronegócio sobre a Amazônia.
O argumento da naturalização é muito sintomático, porque é a própria defesa da indignidade das populações vulneráveis. Ou seja, argumenta-se que se uma trabalhadora ou trabalhador não tem água potável em casa ou vive em condições precárias por ser pobre, então já “estaria acostumada(o)” às condições degradantes e poderia ser submetida(o) a tratamento inferior no ambiente de trabalho. É a própria mentalidade escravista que ainda se faz presente em nossa sociedade.
De toda maneira, é preciso dizer que tem sido construída uma jurisprudência salutar e majoritária, que defende aplicação do art. 149 do CP sem restrições, protegendo os trabalhadores contra as facetas complexas da escravidão contemporânea, que é alvo de tantas disputas.
Judicialização dos conflitos
O Ministério Público tem sido importantíssimo para que a gente consiga avançar na judicialização destes conflitos. E há trabalhos exemplares de diversos procuradores que têm se dedicado ao enfrentamento do trabalho escravo através de ações, recursos de TAC e atuação conjunta com a Inspeção do Trabalho. O que minha pesquisa mostrou foi que a rede de enfrentamento do trabalho escravo, com seus eixos de prevenção, repressão e assistência às vítimas, é vital para construirmos uma sociedade mais justa e livre de escravidões e para que os planos de erradicação não fiquem à mercê da conjuntura político-partidária.
É importante lembrar que o papel da sociedade civil, de entidades como a Comissão Pastoral da Terra, é essencial e foi onde toda a pressão popular se iniciou para que o Estado brasileiro admitisse a existência de trabalho escravo no país e criasse uma política pública em 1995. Em seguida, quando a política foi implementada e foram criados os Grupos Especiais de Fiscalização Móvel (GEFM), o papel da Auditoria Fiscal do Trabalho passou a ser fundamental. Muitos dos instrumentos de enfrentamento do trabalho escravo que temos hoje são frutos da dedicação de auditores que tiveram a sensibilidade e a coragem de enfrentar situações extremas e gente muito poderosa para poder defender os direitos dos trabalhadores, muito antes de termos a estrutura institucional que temos hoje.
E tanto as multas impostas aos infratores, quanto a publicação da “Lista Suja” e a própria divulgação pela mídia de informações sobre a escravidão contemporânea advêm muitas vezes das ações fiscais realizadas, seus relatórios que subsidiam denúncias aos outros órgãos e dos autos de infração que são processados administrativamente até o trânsito em julgado.
Se, administrativamente, apesar das pressões em contrário, já houve muitos avanços, um dos maiores desafios que temos atualmente está no Judiciário. E acredito que é com o trabalho articulado de todas as pessoas e instituições que se importam com a causa que vamos conseguir conscientizar, pressionar, criar soluções e caminhos.
IHU On-Line – Recentemente o STF decidiu, depois de anos em suspenso, que a divulgação da lista dos empregadores envolvidos com trabalho escravo é constitucional. O que explica o fato de juízes de instâncias inferiores serem contrários à divulgação da lista, a tal ponto que a matéria foi parar na Corte Suprema?
Giselle Vianna – Conforme reafirmado pelo STF, de fato, o Cadastro de Empregadores Infratores é um meio adequado para dar publicidade à lista de empregadores que se utilizam de trabalho escravo, já que se trata de dar efetividade à Lei de Acesso à Informação através da divulgação do resultado de processos administrativos transitados em julgado, em que foram observadas as garantias do contraditório e da ampla defesa e que são de interesse público, uma vez que dizem respeito a direitos fundamentais. Entretanto, o que realmente explica os posicionamentos contrários à divulgação da lista não está na ordem das argumentações jurídicas (em que se materializam), mas sim no campo dos interesses econômicos e disputas políticas que têm se acirrado em torno dos instrumentos de enfrentamento do trabalho escravo.
A Lista Suja, assim como a nossa legislação sobre o trabalho “análogo a de escravo” (principalmente o conceito previsto no art. 149 do Código Penal), que são consideradas referências internacionais, têm sofrido diversos ataques das alas conservadoras, principalmente nos últimos anos. 2013 marca uma virada importante no Brasil, pois pela primeira vez os trabalhadores “resgatados” de trabalho escravo no meio urbano (53% do total de resgatados naquele ano) superaram, numericamente, os “resgatados” em atividades rurais (47% do total).
Construtoras
Foi justamente no curso dessa quebra de paradigma que as grandes construtoras tornaram-se alvos frequentes de flagrantes de trabalho escravo. Não demorou muito e, em dezembro de 2014, no recesso de final de ano, o setor da construção civil conseguiu a suspensão da publicação da Lista Suja através de Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Abrainc [Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias]. A suspensão perdurou por aproximadamente um ano e, conforme decisão do próprio Supremo, teria fim em maio de 2016, mas a força político-econômica do setor da construção civil, cujas conexões com a máquina pública foram expostas especialmente nesse mesmo período, fez-se sentir na própria estrutura do Poder Executivo, criando-se entraves à concretização dessa medida aparentemente tão simples. Portanto, entre maio de 2016 e março de 2017, a publicação da lista foi interrompida pelo próprio governo federal, sendo retomada somente após derrota judicial em ação proposta pelo Ministério Público do Trabalho.
Em 16 de outubro de 2017, respondendo a pressões de setores econômicos e políticos, o então ministro do Trabalho Ronaldo Nogueira tentou restringir o conceito de “trabalho escravo” através da Portaria nº 1.129. A norma foi alvo de fortíssimas críticas quanto a sua ilegalidade e ao retrocesso que representava para os direitos fundamentais, sofrendo suspensão por liminar do STF e terminando por ser substituída pela Portaria n. 1293 de 29 de dezembro de 2017, que reincorporou a seu texto o conceito de “trabalho em condições análogas a de escravo” vigente desde 2003. Esse intento caminha ao lado de diversos projetos de lei que vinham tentando reduzir a abrangência do conceito de “trabalho análogo ao de escravo”, excluindo-se do tipo penal as modalidades mais características na atualidade: as jornadas exaustivas e o trabalho em condições degradantes.
É neste contexto de disputas sobre o conceito de trabalho escravo e os instrumentos de seu enfrentamento que devem ser entendidos os posicionamentos contrários à Lista Suja e a própria Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ajuizada em 2018 pela Abrainc e julgada em setembro deste ano.
Assim, apesar de terem sofrido tantos ataques nos anos recentes, os principais instrumentos de nossa política de erradicação do trabalho escravo ainda sobrevivem, amparados por grandes mobilizações nacionais e internacionais, que mostraram a força das redes construídas em torno dos planos de erradicação do trabalho escravo, a penetração das campanhas informativas, educacionais e preventivas, bem como o amadurecimento da compreensão sobre o fenômeno e a necessidade de seu enfrentamento.
IHU On-Line – Quais são os desafios para assegurarmos às pessoas, ao mesmo tempo, o direito à vida e à liberdade, de tal modo que não sejam obrigadas a suportar situações humilhantes de escravidão para poderem viver?
Giselle Vianna – Essa é uma excelente pergunta e, em seu enunciado, você já expôs o que, ao meu ver, é o ponto de partida para construirmos relações mais dignas e justas. Trata-se de ampliar a consciência sobre um tema que não é inteiramente novo: a relação entre a liberdade e o direito à vida.
O grande desafio é garantir não apenas a liberdade formal capitalista, mas sim a liberdade plena, substantiva, a todos os cidadãos. Ou seja, garantir não só a liberdade de ir e vir e de contratar (a mera liberdade dos trabalhadores expropriados de venderem a própria força de trabalho), mas também direitos fundamentais e dignidade a todos, para que possam tomar decisões verdadeiramente livres, sem o constrangimento da luta por sobrevivência. Sem a garantia de vida digna, a promessa de liberdade substantiva não pode ser cumprida. Por isso, o caminho que o país vem trilhando nos últimos anos, de desconstrução dos direitos humanos e do pluralismo, é também o caminho do aprofundamento da escravidão.
O sujeito que sai de casa ‘livre e obrigado’
O trabalho escravo contemporâneo se sustenta justamente sobre estes dois pilares: a liberdade meramente formal combinada com a vulnerabilidade social. Em outras palavras, o consentimento de trabalhadores extremamente vulneráveis às propostas de trabalho dos aliciadores é um ponto central da forma contemporânea de escravizar. É o ser humano dotado de liberdade de locomoção que “sai obrigado” de sua casa, premido por sua miséria e incentivado pela fraude. São trabalhadores escravizados através de um contrato consensual que esconde as coerções econômicas da miséria vivida por suas famílias e das relações reais de produção em que se inserem.
Ora, quem “sai obrigado” para um trabalho e, uma vez trabalhando sob intensa exploração, ainda “é obrigado a ficar lá mesmo nessas condições”, decerto não é obrigado pelo direito. E nesta contradição reside a força da escravidão contemporânea: ser juridicamente livre e economicamente escravo.
Falas de trabalhadores
Esse ponto fundamental, que é a própria forma de escravizar da contemporaneidade, não pode ser enfrentado em sua integralidade através do debate jurídico. Daí a importância das fontes orais, que revelam os significados mais profundos destas relações sociais, evidenciando a realidade da contradição sobre a qual a exploração se estrutura, se atualiza e se mantém.
Por isso, gostaria de citar as falas de dois trabalhadores que conheci durante a pesquisa de campo e com quem aprendi muito. Uma delas é a seguinte:
“A escravidão não é só de corrente, não é só ‘se você não trabalhar você vai morrer hoje’. Não é só o preso que tem que trabalhar. Mesmo estando soltos estamos presos. Estamos presos no trabalho, porque se a gente sair vai morrer de fome. A gente é obrigado a ficar lá mesmo nessas condições para não deixar a família passar fome”.
A segunda fala é de um trabalhador que viveu duas situações de trabalho escravo. Quando lhe perguntei se ele havia se sentido livre ou preso naquelas ocasiões, ele me respondeu: “Você se sente livre e não é livre”. Eis a ambivalência da liberdade formal, desvendada pela sabedoria de quem a viveu. Com essa frase gostaria de encerrar a entrevista agradecendo as perguntas e a oportunidade de debater um assunto tão importante.
Notas
[1] – PIGNATI, Wanderlei Antonio; MACHADO, Jorge Mesquita Huet. O agronegócio e seus impactos na saúde dos trabalhadores e da população do estado de Mato Grosso. In: GOMEZ, Carlos Minayo; MACHADO, Jorge Mesquita Huet; PENA. Paulo Gilvane Lopes; GPG (Orgs.). Saúde do trabalhador na sociedade brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2011. [2] – HEREDIA, Beatriz; PALMEIRA, Moacir; LEITE, Sérgio Pereira. Sociedade e economia do “agronegócio” no Brasil. RBCS. Vol. 25, n. 74, out, 2010. [3] – HEREDIA, Beatriz; PALMEIRA, Moacir; LEITE, Sérgio Pereira. Sociedade e economia do “agronegócio” no Brasil. RBCS. Vol. 25, n. 74, out, 2010. [4] – MIRANDA, Ary Carvalho de; MOREIRA, Josino Costa; CARVALHO, René de; PERES, Frederico. Neoliberalismo, uso de agrotóxicos e a crise da soberania alimentar no Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, v. 12, n. 1, 2007, p. 7-14. [5] – COSTA, Emília Viotti da. A abolição. São Paulo: Editora Unesp, 2010. [6] – BALES, Kevin. New slavery: a reference handbook. Contemporary World Issues. Santa Barbara, California: ABC CLIO, 2004. [7] – A Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), criada em 2003, é órgão colegiado responsável por coordenar o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, composto por representantes governamentais, de entidades da sociedade civil e por observadores.Fonte: IHU On-Line
Texto: João Vitor Santos
Data original da publicação: 27/11/2020