Quatro pontos para examinar a política econômica oficial, entender por que o ministro mente, quando diz que o dólar alto garante a indústria forte, e começar a formular alternativas reais para proteger a produção brasileira.
Antonio Martins
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 14/02/2020
No Brasil do terraplanismo e dos ministros semialfabetizados, até os recalques viram pretensa ciência. Na quarta-feira, Paulo Guedes trombeteou para uma plateia de empresários o que até agora era vociferado pelos tiozões de churrasco, nas conversas familiares de uma certa classe média, apequenada e rancorosa. Sim, as empregadas domésticas tiveram a ousadia de sonhar com viagens para a Disney, ao invés de se contentarem a “conhecer Cachoeiro do Itapemirim, a terra em que nasceu Roberto Carlos”. O ambiente político e econômico em que se produziu tal atrevimento – o do dólar a R$ 1,80 – é, segundo o ministro, responsável pelos problemas do Brasil contemporâneo, entre eles, “a desindustrialização”. Felizmente, para o bem do país, agora viveríamos uma situação que coloca cada um em seu lugar, e não o desvario das empregadas em aeroportos.
Como o ministro passou, há poucas semanas, férias na Flórida – talvez para rever a terra onde morreu Gugu Liberato –, já sabemos que ele não julga necessário mostrar que também se empenha para que o Brasil economize dólares. Seu papel, tenta fazer crer Guedes, não é dar-se a demagogias, mas zelar para que as condições macroeconômicas, não dando asas às domésticas, não conturbem o ambiente de negócios. Aliás, sabe o ministro, o céu não é de brigadeiro. As contas externas fecharam 2019 muito vermelhas e a expectativa é de um 2020 pior. Novos solavancos externos – que virão, por exemplo, se o coronavírus continuar fechando fábricas e cortando as cadeias globais de produção – podem sacudir o tabuleiro do capitão instalado no Palácio do Planalto e dos generais sem brio que ele colocou ao seu redor.
Ocorre que a macroeconomia de Paulo Guedes é tão rasteira quanto sua ética de segregação e recalque – porque é feita para ocultar, não para esclarecer ou provocar debate. O problema agrava-se porque o exame dos problemas do país desapareceu dos jornais e noticiários, e os próprios partidos de esquerda quase não debatem alternativas para o labirinto em que estamos. Por isso, vale a pena aproveitar a fala do ministro para examinar alguns fatos cruciais sobre a economia brasileira.
1. O dólar alto não faz a indústria forte:
Se o dólar subir, as empregadas ficarão por aqui mesmo, mas o país deixará de se desindustrializar, argumentou Guedes. Será? O gráfico acima mostra que, há dois anos, a moeda de Tio Sam iniciou uma trajetória de alta quase contínua. Saltou de R$ 3,21, no início de fevereiro de 2018, para R$ 4,35 ontem — uma alta de 35,5%. Só no período a partir da posse de Bolsonaro, subiu 14%. Os produtos importados – como os eletrodomésticos e as passagens aéreas internacionais – tornaram-se muito mais caros. Mas nem por isso a indústria nacional avançou. Ao contrário. O IBGE acaba de revelar que, no primeiro ano do mandato do capitão, a produção industrial caiu mais 1,1% e regrediu ao patamar de 2009.
É fácil compreender o motivo. A indústria importante, no mundo atual, exige investimentos pesados, que não são decididos com base nas oscilações diárias dos mercados de moedas. Antes de decidiu construir ou reativar uma fábrica, uma empresa precisa levar em conta um vasto leque de fatores. O preço da moeda nacional é um deles, evidentemente. Se o dólar estiver muito barato, isso reduzirá também os preços dos produtos externos, cotados nesta moeda. Não vai valer a pena produzir aqui aquela geladeira; melhor continuar importando.
Mas este é apenas um fator. Há outros, tão ou mais importantes. A população terá poder de compra para consumir os bens produzidos? O governo protegerá o produtor nacional, se surgir concorrência predatória do exterior? O Estado, em sentido contrário, estimulará o produtor nacional, usando seu poder de compra para empurrá-lo para frente? O país oferecerá a tecnologia necessária para tornar viáveis quase todos os produtos de maior valor? Haverá, nos bancos nacionais, crédito em condições comparáveis às internacionais, para permitir os investimentos?
Exceto a valorização do dólar, todas as decisões do governo Bolsonaro, desde o início, foram contrárias à produção nacional. Não se trata de um acidente. Há uma política deliberada de destruição, em especial da indústria – presente tanto nas orientações gerais quanto em decisões específicas. Os atos concretos do ministro Paulo Guedes são o contrário do seu discurso, como veremos agora.
2. As políticas de Guedes & Bolsonaro deprimem a indústria brasileira
A tentativa de inviabilizar a produção brasileira avançada, de fazer o país regredir a mero exportador de bens primários está presente nos três eixos centrais das políticas Paulo Guedes e seu capitão: a) redução do poder de compra das maiorias e da margem de negociação dos trabalhadores; b) renúncia aos mecanismos essenciais de comércio exterior que protegeriam os produtores; c) desmonte dos bancos públicos e do sistema de crédito aos investimentos produtivos.
Quebrar o poder de barganha dos trabalhadores era uma antiga reivindicação dos empresários e foi um dos fatores que levou a grande maioria deles a apoiar o golpe de 2016, como exposto num brilhante artigo de Eleutério Prado. Ao longo dos governos do PT, houve de fato uma queda das taxas de lucro das empresas, devida em parte a um aumento pequeno – mas significativo – da média dos salários reais. Havia duas formas de resolver o impasse. Um vasto programa de investimentos públicos permitiria aumentar a produção, gerando consumo mais qualificado, aumentos mais expressivos de salários e, em consequência, novas oportunidades para os empresários. A esquerda no governo não ousou este passo, o que abriu caminho para a solução oposta: aumentar a taxa de lucros por meio de uma redução geral da parcela da produção que termina em mãos dos trabalhadores.
O processo começou no governo Temer e aprofundou-se com Bolsonaro. Uma contrarreforma trabalhista permite que se adotem formas primitivas de exploração, estrangula financeiramente os sindicatos e joga uma parcela cada vez maior dos trabalhadores na informalidade, no terreno do salve-se quem puder. A própria política de valorização do salário-mínimo, que expirou, não foi renovada. A Bolsa-Família está sendo desidradata. A contrarreforma da Previdência reduzirá, ao longo do tempo, o poder de compra dos aposentados. Os empresários de visão muita curta e que já abandonaram a atividade produtiva – os Paulo Skaf da vida – comemoram. Mas não há como evitar uma maldição: uma sociedade em que as maiorias são capazes apenas de sobreviver não tem meios de desenvolver uma indústria avançada.
Além de capacidade de consumo, a indústria depende, num mundo de competição muito intensa, de proteção e estímulos para crescer. É aqui que Guedes & Bolsonaro aplicam o segundo torniquete. Seu governo empenha-se em eliminar as defesas que a política de Comércio Exterior oferece aos Estados para proteger a produção local. Primeiro, por meio de acordos de “livre” comércio. Um deles, muito festejado pelo governo e a mídia, foi fechado com a União Europeia e está em processo de ratificação. Uma de suas consequências principais é permitir que as indústrias europeia, bem mais desenvolvidos que as brasileiros, coloquem seus produtos aqui sem nenhuma barreira. Aliás, tanto Michel Temer quanto Jair Bolsonaro & Paulo Guedes têm defendido a eliminação geral das tarifas que protegem a produção brasileira. Depois, culpam as empregadas.
Sem crédito para investir, nenhuma indústria relevante avança. Pois o terceiro eixo de políticas centrais do ministério da Economia é liquidar a capacidade de financiamento do BNDES. Ao contrário dos bancos comerciais brasileiros, que impõem aos produtores juros dezenas de vezes superiores aos do resto do mundo, este banco público tinha linhas de financiamento que apoiavam os investimentos produtivos. Poderiam ser muito melhor utilizadas que nos governos do PT, quando vigorou uma precária política de apoio aos “campeões nacionais”. Ao invés disso, o BNDES está sendo esvaziado. Suas fontes de crédito secaram, quando foi obrigado a transferir para o Tesouro Nacional os recursos que emprestaria. Está se transformando no oposto do poderia ser. Agora, ajuda a vende a infraestrutura brasileira. Sua missão atual, encomendada explicitamente por Guedes, é assessorar a privatização da água, por meio da venda da Eletrobrás, de suas represas espalhadas pelo país, e das empresas de saneamento estaduais e municipais.
3. Algumas decisões recentes mostram que a destruição acelera-se
Vale a pena examinar com lupa duas das políticas específicas de Guedes&Bolsonaro para o desmonte da indústria brasileira. Elas demonstram que o esforço para reprimarizar a economia é executado não apenas genericamente, mas também com foco em devastar os setores avançados que ainda resistem.
O primeiro é o setor de petróleo. As reservas do Pré-Sal colocarão o país, certamente, entre os maiores produtores. Os recursos financeiros gerados podem servir para dois propósitos. O primeiro é estimular uma produção sofisticada de bens e serviços, que inclusive estimule a mudança da matriz energética e a transição para economia pós-combustíveis fósseis. O segundo é afundar o país, ainda mais, na condição de mero fornecedor de matérias-primas para o mercado mundial.
Um feixe atitudes mostram que o governo Bolsonaro fez uma opção clara pelo atraso. A Petrobras está sendo obrigada a vender suas refinarias, concentrando-se apenas na atividade mais primária: a extração de petróleo. Mas mesmo esta é oferecida a petroleiras estrangeiras. E pior: o governo alterou os leilões em que oferece a exploração do subsolo brasileiro. Antes, quem se dispusesse a extrair petróleo assumia a obrigação de fazê-lo com equipamentos nacionais. O dispositivo estimulava uma indústria sofisticada de plataformas de extração, navios e sondas – e todos os seus componentes.
O gráfico abaixo mostra como isso mudou. Observe que entre 2003 e 2015, as petroleiras estavam obrigadas a usar ente 62% e 70% de equipamentos nacionais na etapa de exploração das jazidas, e cerca de 80% na fase da produção plena. Veja que este percentual caiu abruptamente após o golpe de 2016 – para apenas 18% e 30% respectivamente. Não está no gráfico, mas no governo Bolsonaro houve mais um recuo – para 18% e 25.
Nem o governo, nem os jornais informam a respeito, mas o escândalo é maior porque os equipamentos importados, agora majoritários, entram no país com isenção de impostos, enfraquecendo ainda mais a chance de competição dos produtores nacionais. Isso é assegurado por um programa denominado Repetro, criado por Michel Temer e mantido por Jair Bolsonaro. Só num dos campos do Pré-Sal, estes benefícios – vale lembrar, concedidos pelo Estado brasileiro para favorecer a importação de equipamentos que a indústria nacional produz – custarão ao contribuinte 74,8 bilhões de dólares, segundo cálculos da Câmara dos Deputados.
Os golpes não param por aí. Três textos recentes publicados em Outras Palavras (1 2 3) mostram que Paulo Guedes trabalha para esvaziar outro importantíssimo instrumento de promoção da indústria brasileira: as compras governamentais. Pela legislação vigente, o Estado brasileiro e suas empresas têm o direito de, ao se abastecer, privilegiar os produtores nacionais. Vale, por exemplo, para a compra de medicamentos para o SUS, de programas de computador para toda a administração pública, ou de serviços que vão de consultoria a limpeza de banheiros.
Esta autonomia pode acabar em breve. Ao comparecer ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, em janeiro último, o ministro Paulo Guedes anunciou que o governo Bolsonaro pretende assinar o chamado Acordo de Compras Governamentais. Se isso ocorrer, também as empresas estrangeiras – mesmo as que sequer possuem filial ou CNPJ no Brasil – terão o direito de participar de todas as concorrências públicas, de praticar preços de dumping e de destruir seus possíveis concorrentes internos.
E pensar que, no discurso do ministro Paulo Guedes, o grande problema da indústria brasileira são os sonhos das empregadas domésticas com o dólar a R$ 1,80 e as viagens à Disney…
4. Há um vasto leque de alternativas.
Em textos anteriores, examinamos como uma renovação programática da esquerda brasileira precisa levar em conta temas novos, que não faziam parte do repertório das políticas anticapitalistas há algumas décadas. Falamos, por exemplo, da construção dos Comuns, da Teoria Monetária Moderna, da Renda Universal da Cidadania, da Garantia do Emprego Digno. Porém, uma esquerda capaz de sair da paralisia e voltar a influir no debate dos grandes temas nacionais precisa refletir também sobre temas que faziam parte de seu vocabulário em épocas anteriores. A Política Industrial é um deles.
Há caminhos reais e viáveis para recuperar o terreno perdido em pelo menos três décadas de desindustrialização precoce. Não se trata mais, como ocorreu nos anos 1960 e 70, de adotar uma política generalizada de “substituição das importações”, como se o país precisasse produzir internamente tudo o que consome. Mas, sim, de escolher setores estratégicos, que atendem necessidades nacionais e que podem tanto gerar milhões de ocupações quanto estimular o desenvolvimento tecnológico de ponta.
Pense, por exemplo, no SUS e nas indústrias relacionadas à Saúde, num país de 210 milhões de habitantes. São fármacos, dos mais simples aos mais sofisticados, e equipamentos, muitas vezes de enorme complexidade. Há consumo certo – e nobre – para eles. São hoje quase sempre importados. Produzi-los aqui geraria enorme estímulo à indústria.
Ou pense em três objetivos indispensáveis para construir um país mais justo: a) assegurar mobilidade urbana e no território nacional, construindo metrôs e trens urbanos nas metrópoles e estendendo uma nova rede ferroviária, de alta velocidade e tecnologia; b) realizar uma revolução urbanística nas periferias; c) estender o saneamento a 100% da população, despoluindo ao mesmo tempo a imensa rede de rios e córregos urbanos.
Imagine a dimensão industrial deste desafio. São trens, locomotivas, salas de comando, sensores, trilhos, perfuradoras de túneis, máquinas de construção, dragas, comportas, tubulações. Todo o trabalho extensivo e sofisticado da construção civil e engenharia, onde indústria e serviços se fundem. Milhões de ocupações de todo o tipo.
Mas, além do projeto estratégico, uma indústria genérica pode ser reconstruída, nos múltiplos setores que definham. Alíquotas de importação inteligentes permitiram que o país voltasse a produzir uma infinidade de itens que exigem investimentos modestos e geram muitos empregos em setores já desenvolvidos tecnologiamente. Pense na geladeira, no macarrão, na cerveja, na camiseta – num país com a quinta maior população do planeta.
Há muito motivo para esperança, desde que haja vontade política – e que as empregadas domésticas não sirvam como pretexto para esconder o verdadeiro sentido das políticas de Paulo Guedes e seu capitão.
* * *
A esta altura, vocẽ pode perguntar: onde entra, neste debate, a cozinheira de Lênin?
Líder principal da revolução soviética, Vladimir Ulianov é certamente uma figura controversa. Foi o arquiteto do processo de mobilização social que mais modificou a face do mundo no século XX, e que obrigou o capitalismo a se reformar provisoriamente. Foi, também, o criador de um Estado que desembocou mais tarde no horror dos Gulags.
Mas muito poucos se dão conta de que, há – como ocorre com todos os pensadores que lidaram com as consequências dramáticas de sua reflexão – não um, mais vários Lênin. Um deles é o de O Estado e a Revolução, obra escrita no mesmo momento em que se desenrolavam os acontecimentos de 1917. Nele, segundo alguns estudiosos de sua trajetória, Lênin aproxima-se do anarquismo.
É lá que se faz a defesa mais apaixonada dos Conselhos, ou Sovietes, como fonte de todo poder revolucionário. É neles que se diz que o salário de um dirigente do Estado – qualquer que fosse ele – não pode ser maior que o de um operário qualificado. É em O Estado e a Revolução que Lênin afirma, categoricamente: no socialismo, “uma cozinheira tem de ser capaz de compreender o funcionamento do Estado”.
Os tempos são muito distintos. Mas falta, na pobreza do atual debate político brasileiro, uma pitada do espírito rebelde de O Estado e a Revolução.
Antonio Martins é editor de Outras Palavras.