Para resolver a extrema desigualdade do capitalismo dos EUA é necessária uma mudança sistêmica, um fim à estrutura de classes específica do capitalismo que coloca patrões contra os empregados.
Richard D. Wolff
Fonte: Carta Maior, com Counter Punch
Tradução: Isabela Palhares
Data original da publicação: 02/02/2021
Para compreender a magnitude da desigualdade econômica dos EUA nos últimos anos, considere seus dois maiores índices do mercado de ações: o Standard and Poor (S&P) 500 e o Nasdaq. Nos últimos dez anos, os valores das ações listadas neles cresceram de maneira espetacular. O S&P 500 foi de quase 1.300 pontos para quase 3.800 pontos, mais do que quadruplicou. Os tempos eram bons para os 10% dos estadunidenses que são donos de 80% das ações e títulos. Em contraste, o salário semanal médio real subiu quase 10% no mesmo período de dez anos. O salário-mínimo federal real caiu ao passo que a inflação diminuiu os 7.25 dólares por hora, oficialmente fixados e mantidos desde 2009.
Todas as outras métricas relevantes do mesmo modo mostram que a desigualdade econômica nos EUA continuou a piorar no último meio século. Isso aconteceu mesmo com “preocupações” sobre desigualdade expressadas publicamente no decorrer dos anos por muitos políticos do establishment (incluindo alguns na administração Biden), jornalistas e acadêmicos. A desigualdade piorou com as crises do capitalismo depois dos anos 70 e da mesma maneira com os três colapsos capitalistas desse século (2000, 2008 e 2020). E a pandemia mortal não provocou uma reflexão sobre princípios, nem políticas adequadas para encerrar, ou reverter, a contínua redistribuição de renda e riqueza para o topo.
Não é necessária nenhuma economia avançada para compreender que fluem divisões, ressentimento, amargura e raiva dessa brecha cada vez mais ampla entre “os que têm” e “os que não têm”. Entre milhões que buscam por explicações, muitos se tornam presas para aqueles que se mobilizam contra bodes expiatórios. Supremacistas brancos culpam os negros e marrons. Nativistas (que se chamam de “patriotas” ou “nacionalistas”) criticam imigrantes e parceiros comerciais estrangeiros. Fundamentalistas culpam aqueles menos zelosos e especialmente os não-religiosos. Fascistas tentam combinar esses movimentos com microempreendedores financeiramente ameaçados, desempregados, e párias sociais alienados para formar uma poderosa coalizão política. Os fascistas fizeram bom uso de Trump para auxiliar nos seus esforços.
O histórico dos EUA adiciona uma nitidez especial na busca por explicações. O argumento dominante para o capitalismo no século 20 depois da Grande Depressão dos anos 30 foi que ele “produziu uma ótima classe média”. Os salários reais dos EUA cresceram mesmo durante a Depressão. Eram, de maneira geral, maiores do que em qualquer outro lugar no globo, e especialmente em comparação com o salário da União Soviética. Altos salários mostravam a superioridade do capitalismo dos EUA de acordo com os defensores do sistema na política, no jornalismo e na academia. A demolição dessa classe média no final do século 20 e no início do novo século doeu especialmente naqueles que haviam acreditado nas defesas.
E, de fato, a Grande Depressão e suas consequências diminuíram significativamente a desigualdade, permitindo que tal defesa do capitalismo tivesse um pouco de legitimidade. No entanto, para que essa defesa fosse persuasiva, era necessário que dois fatos importantes fossem esquecidos ou escondidos. O primeiro é que a classe trabalhadora dos EUA lutou mais arduamente por grandes ganhos econômicos nos anos 30 do que em qualquer outra época na história. O Congresso de Organizações Industriais (CIO) então organizou milhões em sindicatos utilizando militantes de dois partidos socialistas e um partido comunista. Esses partidos estavam alcançando suas maiores forças numéricas e influências sociais. Foi assim que, juntos, os partidos e os sindicatos ganharam a Previdência Social, o seguro-desemprego federal, um salário-mínimo e um imenso programa federal de emprego: tudo novidade na história dos EUA.
O segundo fato é que os capitalistas nos anos 30 e depois lutaram muito contra cada avanço da classe trabalhadora. O status de “classe média” alcançado por uma grande porção da classe trabalhadora (não todos e, especialmente, não as minorias) aconteceu apesar do capitalismo e dos capitalistas e não por causa deles. Mas foi certamente uma propaganda inteligente o capitalismo levar crédito pelos ganhos da classe trabalhadora que os capitalistas tentaram, mas não conseguiram impedir.
A redução da desigualdade econômica dos EUA conquistada se provou temporária. Foi desfeita depois de 1945. Particularmente depois de 1970, a trajetória normal do capitalismo de aprofundar a desigualdade econômica continuou até o presente momento. De maneira simples, a estrutura básica de produção capitalista – como organiza suas empresas – posicionou os capitalistas de modo a reverterem a redução da desigualdade econômica do New Deal. Boa parte da temporária classe média dos EUA se foi; o resto está se esvaindo rapidamente. No último meio século, o capitalismo estadunidense levou a desigualdade aos extremos que nos cercam. Não é de se surpreender que uma população que já foi persuadida a apoiar o capitalismo por ter criado a classe média, agora encontre razões para questioná-lo.
Em empresas capitalistas, pequenas minorias das pessoas envolvidas ocupam posições de liderança, comando e controle. O dono, a família do dono, o conselho de diretores, ou os principais acionistas compreendem tais minorias: a classe dos patrões. Em oposição a eles está a grande maioria: a classe dos empregados. A classe dos patrões determina, exclusivamente, o que a empresa produz, qual tecnologia usa, onde a produção ocorre, e o que é feito com a receita líquida. A classe dos empregados deve viver com as consequências das decisões dos patrões das quais são excluídos. A classe dos patrões usa sua posição no topo da empresa para distribuir seus lucros em parte para enriquecerem (via dividendos e pacotes de pagamentos a executivos). Usa parte do lucro para comprar e controlar políticas. O objetivo é evitar o sufrágio universal movendo o sistema econômico para além do capitalismo e da desigualdade econômica que ele reproduz.
A profunda desigualdade estadunidense flui diretamente dessa organização de produção capitalista – seu sistema de classes. Ocasionalmente, sob circunstâncias excepcionais, movimentos sociais insubmissos conseguem reverter parte dessa desigualdade. No entanto, se tais movimentos não mudarem a organização de produção capitalista, os capitalistas irão conceder tais reversões somente temporariamente. Para resolver a extrema desigualdade do capitalismo dos EUA é necessária uma mudança sistêmica, um fim à estrutura de classes específica do capitalismo que coloca patrões contra os empregados. Se a organização fosse organizada em empresas democratizadas – um trabalhador, um voto – enquanto cooperativas de trabalho, a desigualdade econômica poderia e seria drasticamente reduzida. Decisões democráticas sobre a distribuição das rendas individuais de todos os participantes em uma empresa provavelmente não permitiriam que uma pequena minoria tivesse uma vasta riqueza às custas da vasta maioria. A mesma lógica que foi dispensada com os reis na política se aplica aos patrões em empresas capitalistas.
Richard David Wolff é um economista marxista americano, conhecido por seu trabalho sobre metodologia econômica e análise de classe.